Em tempos de solidão
Por Joana Abranches
Num momento em que epidemias e pandemias roubam a cena nos noticiários, uma doença silenciosa, há algum tempo sutilmente instalada no meio de nós, continua causando estragos não menos danosos que as enfermidades anunciadas. Sim, na sociedade dos “sem tempo”, do individualismo e das relações descartáveis, um dos males do século é a solidão.
Aqui e ali, jovens e “adolescentes retardatários” – contingente cada vez maior de pessoas entre os 20 e os 40 anos de comportamento infantilizado – se acotovelam em noitadas regadas a muito chopp, vodca e ou drogas sintéticas. Nos barzinhos e danceterias, entram em bandos, “ficam” com muitos e saem com muito pouco… Mais sozinhos e perdidos do que nunca. Daí a imprescindível reincidência cotidiana no enganoso jogo do frequentar. Frequentar significa a chance de estar na vitrine e encontrar companhia. Companhia qualquer, que no dia seguinte jaz exibida como troféu em orkuts e blogues, nas fotos repetitivas dos sorrisos forçados sempre emoldurados pelo copo ou pela latinha exibidos orgulhosamente numa das mãos, enquanto a outra automaticamente faz sinal de positivo, ou outro qualquer – conforme a tribo – pra ilustrar a pseudo-alegria de mais uma noite vazia e igual.
Por outro lado, os assumidamente maduros formam a imensa fila dos solteiros, separados e viúvos que procuram relacionamentos sólidos, parceiros afetuosos e leais, mas que, em maioria, se precipitam em relacionamentos arriscados, diante da incomoda sensação de que o tempo está passando, o corpo envelhecendo e as chances diminuindo em razão da ditadura do corpo perfeito e da eterna juventude, excludente e implacável, numa sociedade que há muito vem super valorizando o supérfluo em detrimento do essencial. O desespero faz com que joguem no escuro, seduzidos pela primeira impressão ou por mentiras virtuais em que se quer muito acreditar, mas na verdade seduzidos pela própria carência e premência de ostentar um parceiro. É a lógica de resultados, absorvida por inteiro, a se transportar de forma perversa para a vida pessoal, nela também – e principalmente – fazendo seus reféns. Estar só é sinônimo de incompetência afetiva ou falta dos atrativos exigidos pelo mercado. Viramos coisa, objeto, que independente do conteúdo, se consome ou se rejeita conforme a embalagem e o marketing. O subproduto, claro, é a solidão.
Solidão acompanhada e não menos solitária. Compartilhada pela TV, pelo cachorrinho de estimação, pelas horas a fio nos sites de relacionamento ou pela espera ansiosa de um simples email. Solitude que dói quando se é mais um, igual a todos e – por consequência – invisível; Quando a gente se olha e não se vê ou vê no outro a idealização fugidia de algo que nunca virá a ser. A dor de possuir o que não se tem, desnudar-se a quem não quer ver… A dor de perceber-se descartável, embora humano.
Mas a dor maior será talvez a do equívoco da finitude, a ausência do sentido real da existência, da transcendência, do ser espiritual que pulsa e anseia – sem se dar conta – por algo além da vã materialidade. No fundo, “ser feliz é tudo o que se quer”, mas felicidade é também dar felicidade, o que só virá quando o individualismo der lugar à generosidade e as aparências à essência. Só virá, de fato, quando deixar de ser “um sonho que se sonha só”.
Não nascemos pra viver sozinhos, é verdade. Além do mais, fomos secularmente aculturados para o acasalamento inevitável e complementar. Assim, faz parte do existir compartilhar a vida com alguém especial – às vezes nem tão especial assim – mas cuja presença representa um cobertor emocional para que não se morra de frio quando as crianças crescem e se vão, quando nossos pais já não estão mais por aqui, ou quando aqueles irmãos, amigos e primos, antes inseparáveis, tomam outros rumos. Em tese, o parceiro é a garantia de alguém que fica, quando todos partiram.
Porém, em tempos bicudos de frustrações afetivas, precisamos encontrar alternativas que atenuem a incomoda sensação de abandono que vez por outra teima em nos assaltar… A saída é dar razão de ser à vida. Focar menos no que não se tem e mais no que se pode ser. Colocar as mãos num trabalho gratificante e a cabeça em ideais superiores que certamente preencherão nossos dias. Repartir o que tenhamos em abundancia para oferecer, inclusive afeto. Enquanto o “amor da nossa vida” não chega, concentremo-nos no amor que podemos dar e receber da vida. Adotemos outras famílias, novos amigos, programas saudáveis e divertidos, trabalho voluntário, intimidade com Deus. Voltar a estudar, reencontrar um velho amigo também solitário, desengavetar aquele antigo projeto… Estar por inteiro no mundo, sem metades perdidas e com direito a uma auto-estima pra lá de achada… Eis o segredo para que se possa estar contente com a própria companhia quando não houver mais ninguém por perto; para que se possa perceber o quanto é prazeroso abrir a porta de casa após um dia daqueles, dar de cara com a gente no espelho da sala vazia e, sem nenhum ranço de auto-piedade, poder dizer pra si mesmo sem medo de ser feliz: – Eta sossego danado de bom!
* Joana Abranches – Assistente Social e Presidente da Sociedade Espírita Amor Fraterno – Vitória/ES
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