Abate Humanitário – Desfazendo Ilusões
Simone de Nardi
Para mim, a vida de um carneiro não é menos valiosa que a de um ser humano. Quanto mais indefesa a criatura, mais ela necessita da proteção dos homens contra a crueldade dos homens.
Mahatma Gandhi
Através dos tempos, vemos que a alienação dos seres humanos, seja pela sociedade, pela religião ou pela família, se vista com olhos libertos, causaria calafrios. Assim é com o assunto que nos fez escrever esse artigo, diga-se de passagem, delicadíssimo de ser tratado: Abate Humanitário.
Essas duas palavras são ditas com grande naturalidade pela grande maioria dos seres humanos , como se o ato que as designa, fosse a coisa mais simples e caridosa da face da Terra, nenhum deles se atentando, porém, à gravidade que elas nos trazem. Abate, por si só, já nos traz a lembrança de fim, de abatimento, de morte, de dor e de sofrimento. Humanitário quer nos trazer a visão de bondade, de caridade, de indulgência, muitas das qualidades que, ao se falar em “ser humano”, os seres humanos trouxeram para si mesmos. Nós somos humanos acabou se transformando em “Nós somos bons, não somos cruéis”, humanidade virou sinônimo de “caridade”, por isso aquele que alegue que o “Abate humanitário” é uma coisa boa e “humana”, acabou por inverter a noção que os seres humanos possuem de si mesmos, e nós vamos descobrir o porquê.
Há alguns anos, antes de me tornar vegetariana, antes de ir buscar a verdade sobre a carne, eu igualmente achava que esse tal “abate humanitário” era mesmo uma coisa “humana”, e de certa forma era, porque essa ilusão me “isentava da culpa” pela morte de milhões de animais, ao menos era isso que eu queria pensar . Então eu abri meus olhos após conversar com inúmeras pessoas e aos poucos fui despertando, mas isso só acontece quando desejamos, quando queremos e vamos construindo novos conhecimentos e descobrindo os horrores que moldam a verdadeira “face humana” em sua imensa contradição.
Os nomes que inventamos para o ato de matar animais, nada mais são do que tentativas e mais tentativas de fugirmos da nossa responsabilidade em relação a eles. Somos cruéis, mas queremos esconder de todos os humanos que nós, humanos, agimos com crueldade para com esses irmãos. Ludibriamos a nós, mas não ao Universo, não aos animais. Olhando a realidade, vemos apenas que criamos os animais como objetos descartáveis, esses mesmos a quem chamamos de “nossos irmãos”, depois criamos técnicas modernas, medicamentos fortíssimos para “protegê-los” de doenças, para no fim, os matarmos sem um pingo de arrependimento, alegando que não sofreram nada. Fingimos desconhecer que a morte por imposição é assassinato, temos medo dela, mas gostamos de pensar que os animais caminham alegremente em direção ao cutelo. Gostamos também de imaginar que a curta vida que eles levam até o “abate humanitário” é prazerosa e cheia de alegria, mesmo quando cruzamos com aqueles caminhões abarrotados de minúsculas gaiolas onde os frangos permanecem espremidos. Por outro lado, não queremos nem ouvir falar de como é o “abate humanitário”, esse sinônimo de “grandeza” humana, pois lá no fundo, bem lá no fundo sabemos que não há qualquer sinal de bondade no ato de matar um ser vivo: “Ai daquele que ousar acabar com nossa doce ilusão, é um pária dentre os párias, porque quer tirar o “nosso direito” de acreditar que os animais levam uma vida tranquila e morrem tranquilamente para que nos alimentemos com seus corpos. Quem fala isso no mínimo deve estar obsediado, uma coisa que fazemos há séculos não pode ser ruim, os animais não sofrem, não sofrem…”
Será? É claro que é mais fácil acreditar nisso para continuar levando a vida numa boa, acreditando que o conceito de humanidade é um conceito que deva sempre nos fazer acreditar em coisas boas. Grande ilusão a nossa. Nós, humanos, estamos devastando o planeta; nós, humanos, matamos nossos semelhantes e achamos divertido matar animais por esporte. Negligenciamos nossa responsabilidade em relação aos animais quando alguém tenta nos contar a verdade, porque é difícil conviver com o fato de que nossa humanidade é muitas vezes perniciosa.
Nenhum animal segue feliz para o abate, nenhum animal deseja morrer, e nenhum deles leva uma vida boa antes de seguir para a morte. O sofrimento se inicia já no nascimento desses nossos irmãos, se estende pelo crescimento forçado separado das mães, nas castrações sem anestesia, na alimentação forçada, nas gaiolas imundas e apertadas, no transporte que nos recusamos a ver quando passam diante de nós, e na espera da morte após verem seus semelhantes tombarem.
Essa é a nossa humanidade, nossa verdadeira humanidade que causa dores e sofrimentos indescritíveis aos animais porque não conseguimos pensar no próximo, e sim, apenas em nós mesmos. Esse é o “abate humanitário”, onde a palavra “humano” é sinônimo de crueldade, de patas quebradas, de bicos cortados, dentes arrancados, filhotes imobilizados, corpos dilacerados, entre tantas outras torturas pelas quais passam os animais antes de seu “abate”.
Se podemos conviver com essa verdade, é sinal de que ainda temos muitos caminhos a percorrer; se não podemos, é porque chegou a hora de tomarmos uma atitude. Esconder o que ocorre aos animais é mascarar a verdade, o que não nos isenta da responsabilidade por suas mortes. Nós temos dois caminhos: continuar fingindo que nada sabemos sobre o que ocorre aos animais e chamá-los de “irmãos”, sem reconhecer realmente o conceito de “Irmão”, ou receber a verdade de coração aberto, esforçando-se por vencer as barreiras que nos tornam onívoros e reconhecendo o conceito de “Irmão” como conceito de amor e caridade para com todas as criaturas que passaram pelas mãos Divinas.
A vida dos animais depende de escolhermos um desses caminhos.
30/06/2010
[Simone De Nardi , nascida em São Paulo. É Graduada em Filosofia. Escreve livros, poemas, contos e pequenas peças espíritas nas horas vagas. Junto com alguns amigos, formou um grupo de voluntários que sai nas noites de domingo para distribuir amor, agasalhos e alimentos aos moradores de rua. Mantém um grupo de discussão e um blog sobre a Doutrina, também voltado à consciência e preservação do meio ambiente e amor aos animais].