A pós-verdade e o Espiritismo

Por Manoel Fernandes Neto

Quando as crenças valem mais do que as ideias.


Pós-verdade é a palavra do ano. Bom para o mundo, essencial para compreendermos um fenômeno que molda a sociedade atual. O termo foi escolhido pela Universidade de Oxford, como faz todos os anos. No ano passado, a palavra escolhida foi emoji (1). A de 2016 tem muito a ver com o que vivemos neste cotidiano interligado e simulado, de proliferação de supostas verdades. Pós-verdade é o que todos acreditam de “ouvir falar”, como se aquilo publicado por um amigo querido livrasse o boato de todos seus males. Mas vivemos em um mundo de amigos queridos suspeitos.

Espiritismo para o mundo, o mundo para o espiritismo, que foi também solapado pela pós-verdade. Muito por responsabilidade dos espíritas, que espalham crenças por redes sociais, e-mails e grupos de todos os calibres no WhatsApp. A verdade não é mais relevante. Diferente da origem da doutrina, são aceitas dez mentiras antes de uma única verdade (2). Os motivos são muitos. Enquanto redes de boatos políticos, financeiros e empresariais são estrategicamente criadas para confundir e alcançar um objetivo específico, como ocorreu na eleição de Donald Trump ou nos plebiscitos do Brexit e da negação do plano de Paz na Colômbia, os boatos e pseudoverdades dentro do movimento espírita ocorrem por incapacidade – ou preguiça – de pesquisar. Uma pós-verdade simplória; um altar magnificente para as crenças pessoais: “se eu acredito, é”.

Ainda está para ser estudado o que leva uma pessoa a repassar nas redes uma informação de algo que não tem certeza. Yuval Noah Harari traz em seu livro, “Sapiens – Uma breve história da humanidade”, a “teoria da fofoca”, que mostrou o seu poder e colaborou com o domínio da Terra pelo Homo Sapiens (3). Mas, com certeza, não é somente este o motivo da proliferação da pós-verdade. Trazemos, em nosso íntimo, o orgulho, o prazer de sermos o primeiro a saber, compartilhar; os dedos nervosos no touch ou no mouse são mais rápidos do que a razão apregoada por Allan Kardec. Muitos ainda justificam: “na dúvida, compartilhei”.

Aliás, foi pela capacidade de checagem das centenas de embustes de pretensos médiuns que Allan Kardec manteve a revista espírita com honestidade intelectual durante 11 anos, até sua morte. A publicação sempre esteve aberta na discussão, com debate saudável diante de situações duvidosas, separando o que era real da imaginação fértil de aproveitadores. Após o desencarne de Kardec, por um deslize do novo editor, a revista espírita publicou falsas fotos de manifestação de espíritos, de autoria de um confesso Edouard Buguet, o que levou a publicação ao banco dos réus em processo judicial que testou a reputação da doutrina.

O espiritismo sobreviveu no mundo e com força no Brasil. Entre os espíritas, de forma geral, excetuando-se os enganos a que estamos sujeitos, boatos e pretensas verdades estão por todas as partes. Pode ser uma falsa manifestação ou meme com frase do Papa Francisco, aclamado e cultuado por Roustainguistas(4) desinformados; pode ser uma falsa carta psicografada pelo médium Divaldo Franco, tipo textão, alertando os espíritas do grande precipício em que está o Brasil, à beira da guerra civil, e que todos devem orar juntos, perfilados, de joelhos, uma mensagem negada pelo próprio Divaldo a partir da página da Mansão do Caminho.

Crenças pessoais. É disto que falamos quando unimos pós-verdade e espiritismo. Em um mundo estranho, em que criminalizam os anseios de quem quer mudanças ou, ainda, cobram imposto até sobre a quantidade de sol, as filosofias que valorizam a razão, a lógica e o respeito aos seres vivos devem ser preservadas. O Iluminismo não pode sucumbir diante do conformismo e de uma falsa isenção. O espiritismo deve estar neste grupo e desarmar este sistema de crenças atávicas. A pós-verdade também se alimenta dos ingênuos, dos preguiçosos, dos que querem que as coisas fiquem do mesmo jeito; eles temem as mudanças, as revoluções, as utopias; eles temem, pasmem, o já incansavelmente repetido slogan de um novo mundo possível. O da Regeneração, para os Espíritas.

Mas como diz o poeta, “que será de nós. Se estivermos cansados. Da verdade. Do amor.” (5)

Referências 

1- Emojis são as figuras, “carinhas”, com significados emocionais.

2- Referência à citação de Allan Kardec da comunicação do espírito Erasto "… deixai-me repetir o que já aconselhei aos espíritas parisienses: é melhor repelir dez verdades, momentaneamente, do que admitir uma só mentira, uma única teoria falsa".

3- Em seu livro “Sapiens – Um breve história da humanidade”, Yuval Noah Harari faz referência à teoria da fofoca, citando vários autores. Diz ele: “As novas habilidades linguísticas que os sapiens modernos adquiriram há cerca de 70 milênios permitiram que fofocasse, por horas a fio. Graças a informações precisas sobre quem era digno de confiança, pequenos grupos puderam se expandir para bandos maiores, e os Sapiens puderam desenvolver tipos de cooperação mais sólidos e mais sofisticados.”

4- Referência a Jean-Baptiste Roustaing, contemporâneo de Allan Kardec e autor de livros que apresentam um espiritismo com ênfase na religião.

5- Contos da Lua Vaga (Beto Guedes – Álbum Contos da Lua Vaga -1981).  

 

Para saber mais:

Dicionário Oxford dedica sua palavra do ano, ‘pós-verdade’, a Trump e Brexit

O que é ‘pós-verdade’, a palavra do ano segundo a Universidade de Oxford

Escritor de notícias falsas no Facebook: “Acredito que Trump está na Casa Branca por minha causa”


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