Algumas palavras sobre o aborto de Pernambuco
Jorge Hessen
No Brasil, todos os anos, há 30.000 gestações de menores de 14 anos. Recentemente, na pequena Alagoinha, uma cidade de 14 mil habitantes, no interior do Estado de Pernambuco, um religioso aplicou o dispositivo canônico (1) contra a mãe de uma menina de 9 anos e da equipe médica que submeteu a menina a um aborto de gêmeos em razão de ter sido vítima de estupro. O episódio levantou muitas celeumas, inclusive com repercussão na imprensa internacional. A menina já estava com 4 meses de gestação. O pai dos bebês seria o padrasto, um rapaz de 23 anos, que vivia com a mãe da gestante. O inusitado do fato é que o religioso não aplicou dispositivo canônico contra o estuprador.
Fugindo do ranço da espetacularização midiática, é importante citar que mais de 90% da população brasileira é contrária à legalização do aborto, segundo pesquisa do IBOPE. O Espiritismo também é contra, admitindo-o, apenas, quando a mãe corre risco de morte. Vejamos o caso da menina: se a gravidez dos gêmeos seguisse seu curso, cada bebê deveria nascer pesando mais de 2,5 quilos, o que implicaria a gestação chegar ao final de 9 meses com mais de 5 quilos. A razão demonstra que as conseqüências dessa gestação seriam catastróficas. E, mais ainda, uma gravidez ocasionada pelo estupro, é indiscutivelmente traumática e dolorosa. Seria uma insensatez imensurável se a espiritualidade promovesse uma programação reencarnatória de dois espíritos, ao mesmo tempo, no ventre de uma criança de apenas 9 anos de idade. Ou será que a equipe médica foi mais racional que os especialistas em reencarnação do além-túmulo? Nesse caso, nem me venham com a tagarelice do desgastado chavão "a menina está pagando um débito do passado".
No Brasil, é comum a absolvição dos criminosos, pela "benevolência" dos homens, e as penalidades das leis, não raro, recaírem sobre as vítimas, em autêntica inversão. Quem defende a vida da vítima de 9 anos? Quem restituirá os prejuízos advindos da prática violenta cometida pelo padrasto? Essa Igreja, com todo respeito a seus líderes, necessita rever alguns conceitos, modernizar as idéias e se adequar ao mundo contemporâneo. Os seguidores dessa Igreja, tal como ela é, aferrada a sua lógica interna, seus princípios medievais, dogmas e cânones, pouco podem fazer. Embora existam sacerdotes dignos de respeito e admiração, defensores dos anseios das pessoas humildes com as quais convivem, a burocracia hierárquica jamais lhes concederá voz ativa.
Ao promulgar a sentença canônica, será que o religioso teria conhecimentos tão abalizados, superiores aos dos médicos ginecologistas que, enobrecidos pelo conhecimento acadêmico, lidam, diariamente, com o fenômeno biológico da maternidade? A bem da verdade, no caso poderia haver uma obstrução do parto, causado pela desproporção cefalopélvica, que ocorre quando a abertura pélvica da mãe é pequena para permitir que a cabeça do bebê passe durante o parto. A septicemia (infecção generalizada), o descolamento da placenta por conta da hipertensão arterial, a hipertensão ocasionada pela gravidez, inclusive pré-eclampsia e eclampsia, se não tratados, podem provocar parada cardíaca ou derrame, resultando em morte, tanto para a mãe como para o bebê.
Que nas hostes espíritas não ocorra o vexame da intolerância, perseguição, boicotes, torturas e perversidades que as muitas religiões têm praticado ao longo da história, sobretudo diante de fatos semelhantes aos que ora analisamos. Será que a bestialidade do estupro poderia ter sido evitada com a intervenção espiritual? Será que os espíritos responsáveis pelo controle das encarnações erraram ao permitir que uma criança, de apenas 9 anos, engravidasse? Considerando que uma mãe, ou quem quer que seja, cometerá crime, sempre, ao tirar a vida a uma criança antes do seu nascimento, não me permito acreditar que existiam espíritos ligados aos dois corpos em formação. Pois é! Não há como acreditar em "programação espiritual" para que alguém reencarne e tenha que passar pela penúria de engravidar, por ato de violência de um padrasto, e ter filhos aos 9 anos de idade.
Os espíritas, principalmente, sabem que a interrupção da gravidez, com a destruição do produto da concepção, é crime. O Código Penal brasileiro não contempla a figura do aborto legal, todavia torna impunível o fato típico e antijurídico dessas circunstâncias. Não existe "aborto legal", exceto onde houver risco à vida da mulher, que, nesse caso da menina, foi um aborto necessário, segundo minha opinião. Na resposta dada à questão 359, em O Livro dos Espíritos, fica clara a situação: "Preferível é se sacrificar o ser que ainda não existe a sacrificar-se o que já existe." (2)
Há casos e casos, há exceções, há atenuantes que não vamos discutir aqui. É mais do que lógico que o aborto não pode ser banalizado a partir do caso da pequena pernambucana. Devemos lutar pela vida, sempre, em qualquer circunstância, mas prudência e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Apesar de o Brasil carregar um troféu nada confortável de ser o campeão mundial do aborto, não creio que o caso da menininha estuprada em Pernambuco sirva de exemplo para propagação do aborto como método contraceptivo.
Jorge Hessen
E-Mail: [email protected]
Site: http://jorgehessen.net
FONTES:
1- O cânon 1398 – "excomunhão" – palavra que tem sua origem no latim \’ex-communione\’ e designa a ação ou resultado de excomungar, isto é, expulsar da Igreja Católica. Suspensão de parte da totalidade de bens espirituais de alguém como pena por delito religioso
2- Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos. RJ: Ed FEB, 2003, perg. 359
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