[ Conto ] E ela veio…

A vitória da ciência sobre a enfermidade letal.

Marcelo Henrique

Como todos os dias, antes de dormir, o menino esperava ansiosamente para ouvir, do pai ou da mãe, uma cativante história. Já havia visitado a pré-história, com os dinossauros, já tinha participado de visitas a castelos medievais, experimentado viagens em caravelas, submarinos, aviões e foguetes. Também tinha conversado, mentalmente, com seres mitológicos ou pessoas simples, do cotidiano…
Ao final de um dia de muitas descobertas e vivências, o garoto ainda tinha tempo para outros aprendizados. E, certamente, os enredos e os personagens seriam seus companheiros, após adormecer. Não foram poucas as vezes em que o sono chegou antes do final da história. No outro dia, ele queria a continuidade.

Naquele dia, foi diferente…

Ele ficou desperto o tempo todo. E também por alguns minutos após o pai despedir-se com o “boa noite” e um beijo na testa.

Desta vez, curioso com coisas que tinha ouvido no colégio, dos coleguinhas, o filho pediu para que lhe fosse contado algo que tinha acontecido há décadas atrás…
Era um tempo meio esquisito. As pessoas corriam tanto… E não havia nada a persegui-las, como nos desenhos animados, nos enredos de super-heróis, nem em corridas automobilísticas do videogame. O relógio parecia, para tais pessoas, estar sempre atrasado. E era preciso “recuperar” o tempo…

 

A roda-viva era diária, levando mulheres e homens à exaustão. E não eram somente os adultos. Também as crianças pareciam esgotadas. Nos finais de semana, nos feriados e, até, nas férias do trabalho ou da escola, o cansaço persistia. Ah, é claro! Havia sorrisos, entretenimentos, abraços e carinhos. Mas, mesmo assim, nem isso parecia suficiente.

O fato é que era um mundo de maravilhas, mas também de desperdícios. De abundância, mas, igualmente, de pobreza. O mundo havia crescido, e crescido tanto, com as expansões dos negócios e das atividades, que já não havia fronteiras – nem limites. Algumas instituições tornaram-se gigantescas, com tentáculos a asfixiar quase o mundo todo.

De rotina em rotina, as pessoas iam “vivendo”. Contando as horas para o descanso e, neste, imaginando como ia ser, novamente, a obrigação do trabalho, do estudo, os compromissos. Podia-se dizer que, naqueles dias, dos três tempos verbais possíveis, o passado, o presente e o futuro, o que todos pareciam conjugar e viver era aquilo que se situava mais distante: seja no ontem, seja no amanhã. O hoje, o imediato, o real, o na palma das mãos parecia ser o que não se vivia…

E, por falar em “palma das mãos”, também, ali, nelas, estava o TODO, aquilo que era necessário, por vezes imprescindível, do qual ninguém conseguia se desvencilhar ou abandonar, tal era a facilidade e a rapidez dos dedos: o celular. Nele, todos os sonhos. Todos os diálogos. Todas as buscas. Todos os confortos. Todos os sentimentos. Quer dizer, nem todos!

Aquele extraordinário invento já ocupava a posição principal da vida de cada um. Era como um(a) amigo(a) pra todas as horas, ou um(a) confidente, um(a) parceiro(a), até um(a) amante… O mais incrível é que aquele pequenino “ser” era praticamente perfeito. Ele filtrava as imperfeições do mundo, das relações, das pessoas, como se fosse um aplicativo para “melhorar” uma fotografia.
O pai continuava a história, ante os vívidos, atentos e preocupados olhos da criança amada…

Então, disse ele, um dia, uma grande revolução operou nas vidas de todos. Um agente externo e, ao mesmo tempo, interno, invisível a olho nu, mas muito poderoso, impôs sua regência sobre as vidas individuais e coletivas. De repente, toda a Humanidade estava submetida aos seus efeitos. E eles foram devastadores.

Foi incontável o número de mortos. Havia estatísticas e relatórios, mas, todos, imprecisos. Misturou-se de tal forma na vida e na saúde (ou nas doenças) das pessoas, que os órgãos clínicos não puderam contabilizar a totalidade da extensão daquele agente. E nem foi possível investigar grande parte dos óbitos. Não havia tempo, nem meios suficientes, disponíveis.

 

Mas, em cada sobrenome que o agente se infiltrou e se instalou, houveram baixas. Todas elas significativas. Não houve uma só família que ficasse imune ou protegida. Sem nacionalidade, sem cor, sem etnia, sem características físicas, sem residência, sem profissão, sem classe social, sem delimitação de padrões econômicos ou sociais, ali ele se espalhou. E provocou desconfortos, dores, angústias, sofrimentos e… mortes!

 

Foram muitas. Milhares. Milhões. Nunca sob a face do planeta, nem na guerra mais sangrenta, nem no cataclisma mais poderoso, contaram-se tantas covas…
O menino queria saber mais, muito mais… Mas, nada perguntou, porque não queria que o paizinho esquecesse nenhum detalhe.

Mas não era uma história apenas sobre aquele acontecimento decisivo e definitivo. Pois, muito antes, e sucessivamente, a ganância, a pressa, a intolerância, a busca desenfreada pelo sucesso já tinham se tornado ações naturais – e aceitáveis – de todas aquelas pessoas.

Até mesmo os céus tinham se tornado escuros, esfumaçados, turvos. Era impossível enxergar as estrelas, mesmo numa noite mais clara de verão. E, durante o dia, um belíssimo pôr-do-sol do outono parecia enevoado, escondido… Somente em voos sobre as nuvens ou em vídeos de propaganda bem concebidas, a magnificência da abóbada celeste era vista com todo o seu esplendor.
Com as facilidades dos veículos, até mesmo os mais individualizados, como patinetes e bicicletas elétricas nos centros urbanos, havíamos esquecido de andar e, também, de nos exercitarmos ao ar livre. O fato é que a grama, de há muito, tinha sido trocada por cimento e asfalto. Áreas de lazer e parques haviam encolhido até desaparecer!

O consumo desenfreado já produzira muitos efeitos deletérios. Os oceanos, mares, rios, por exemplo, estavam inundados de plásticos e outros dejetos. A flora e a fauna marinhas pedindo socorro!

Durante as refeições, quase ninguém mais parava para apreciar o gosto e o sabor dos alimentos e os efeitos das bebidas. Alimentavam-se com o celular ao lado, ou defronte os televisores, porque não podíamos deixar de saber das últimas novidades. E, até, programas mais enfadonhos, como os sangrentos noticiários ou os pronunciamentos de líderes e autoridades careciam da nossa permanente atenção.

 

E, diante de tantos ruídos, era muito difícil escutar o próprio pensamento, ou as batidas ritmadas de cada coração.

Inconvenientes eram aqueles que questionavam esses “novos” hábitos, porque pessoas, instituições, países “tinham” de crescer, e o planeta é que deveria aceitar isso. Para o progresso, talvez fosse mais “conveniente” morrer…

Então, em 2020, aquele pequenino e gigantesco inimigo atravessou nossos caminhos, inundou de preocupações os cotidianos, começou a produzir danos de variada monta. E os governos, então, alertaram, depois recomendaram para, por fim, imporem o isolamento e os distanciamentos recíprocos e a paralisação de muitas atividades, principalmente as econômicas.

Recolhidas, as pessoas, mesmo entre os receios, a impotência e a desesperança, redescobriram-se. Remontaram aos seus instintos, sua natureza humana originária. Reaprenderam a sorrir e a sonhar, imaginando como seria o mundo quando a tempestade passasse e pudessem retornar às suas vivências e rotinas.

Distanciados fisicamente dos beijos, abraços e apertos de mão, voltaram a usar os celulares para interagir, com vídeo, com os amados distantes. Lembraram-se de ligar para aquele parente distante, aquele amigo de infância, aquele colega de trabalho aposentado. A mãe, o pai, o avô que só viam uma ou duas vezes ao ano, ou nem isso, passaram a ser contatados semanalmente, ou com intervalos de poucos dias, entre uma vídeo-chamada e outra…

A Terra, então, começou a respirar. Céus e praias, assim como ambientes urbanos, começaram a receber “visitantes”, antes escondidos e temerosos, protegendo-se de predadores.
Foi possível cantar, dançar, gargalhar sem culpa ou medo, outros voltaram (ou aprenderam) a cozinhar. Armários e caixas foram esvaziadas, fotos antigas foram revistas, discos empoeirados foram postos para tocar. E as pessoas descobriram tanta coisa supérflua e inútil haviam guardado por tanto tempo. E a generosidade se fez.

Quantas roupas e calçados foram novamente utilizados por quem não tinha quase nada. Quantos objetos amarelados foram limpos e destinados para quem deles precisasse. Quantos mantimentos, condimentos, remédios, ervas foram compartilhados.

Vizinhos que não se falavam passaram a perguntar uns pelos outros e a oferecer solidariedade gratuita. Grupos de whatsapp foram constituídos exclusivamente para propiciar ajuda e compreensão naquelas horas tão amargas e difíceis.

As notícias ruins foram escanteadas e outras, boas, surgiram aparentemente do nada. Na verdade, elas sempre ali estiveram, ou represadas ou submergidas, diante da lama dos problemas e das catástrofes. Mas é claro que as preocupações com o inimigo também ocupavam o tempo e a mente das pessoas, porquanto era impossível ser, perante ele, insensível.

E o tempo foi passando, com as pessoas se reinventando e buscando outras formas de viver…

Até que, um dia, a cura se fez, a vacina foi disponibilizada e, novamente, as pessoas puderam deixar seus abrigos e retornar, aos poucos, para as atividades de sempre.
E quando saíram, algo importante havia acontecido. Aquele mundo não era mais o mundo que todos haviam deixado, para buscar a proteção do isolamento. Ainda que as construções e paisagens fossem as mesmas, havia algo muito diferente no ar.

E todas, praticamente, preferiram o mundo “novo”, o que haviam encontrado, pós-pandemia, do que o mundo “de antes”. Aquele que havia sido deixado para trás… Os velhos hábitos, extintos, propiciaram a descoberta de um novo caminho, que escolheram trilhar.

Neste mundo novo, os mais simples atos de bondade, fraternidade e solidariedade passaram a ser valorizados, e os sentimentos passaram a ser mais importantes do que qualquer bem ou recurso financeiro.

Foi preciso um vírus para trazer as pessoas de volta a si mesmas, para descobrirem o valor da saúde, do trabalho, dos amigos, dos amores, após a doença, o desemprego, a solidão ou a tristeza de perderem alguém muito caro.

E o menino foi, então, dormir, pois a história havia chegado ao final. E, em seus sonhos de criança, durante o sono, ele plasmou um mundo ainda melhor. Exatamente como aqueles que, durante a pandemia, rezavam, imaginavam e desejavam a vitória da ciência sobre a enfermidade letal.

E ela veio…

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.

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