Controle universal do ensino dos Espíritos

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Por Allan Kardec, Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864 > Abril

Já abordamos esta questão em nosso último número, a propósito de um artigo especial (Da perfeição dos seres criados), mas ela é de tal importância, tem consequências de tal magnitude para o futuro do Espiritismo, que julgamos dever tratá-la de modo mais completo.

Se a Doutrina Espírita fosse uma concepção puramente humana, não teria como garantia senão as luzes de quem a tivesse concebido. Ora, ninguém aqui poderia ter a pretensão fundada de possuir, ele só, a verdade absoluta. Se os Espíritos que a revelaram se tivessem manifestado a um só homem, nada garantiria a sua origem, pois seria preciso crer sob palavra naquele que dissesse ter recebido seu ensino. Admitindo de sua parte uma perfeita sinceridade, quando muito poderia convencer as pessoas de seu ambiente. Poderia ter sectários, mas não conseguiria jamais atrair todo mundo.

Quis Deus que a nova revelação chegasse aos homens por uma via mais rápida e mais autêntica. Eis por que encarregou os Espíritos de levá-la de um a outro polo, manifestando-se por toda parte, sem dar a ninguém o privilégio exclusivo de ouvir a sua palavra. Um homem pode ser enganado, pode mesmo enganar-se, mas assim não poderia ser quando milhões de homens veem e ouvem a mesma coisa. É uma garantia para cada um e para todos. Ademais, pode-se fazer um homem desaparecer, mas não se pode fazer desaparecerem as massas; pode-se queimar livros, mas não se pode queimar os Espíritos. Ora, se se queimassem todos os livros, a fonte da doutrina não ficaria menos inesgotável, porque ela não está na Terra, surge por toda parte e cada um pode aproveitá-la. Na falta de homens para a espalhar, haverá sempre os Espíritos que atingem todo o mundo e que ninguém pode atingir.

Na realidade, são os próprios Espíritos que fazem a propaganda, auxiliados por inumeráveis médiuns que suscitam por todos os lados. Se eles tivessem tido um intérprete único, por mais favorecido que fosse, o Espiritismo mal seria conhecido. Esse intérprete mesmo, fosse de que classe fosse, teria sido objeto de prevenções por parte de muita gente. Nem todas as nações os teriam aceito, ao passo que os Espíritos, comunicando-se por toda parte, a todos os povos, a todas as seitas e a todos os partidos, são aceitos por todos.

 

O Espiritismo não tem nacionalidade. Ele é alheio a todos os cultos particulares; ele não é imposto por nenhuma classe da Sociedade, pois cada um pode receber instruções de parentes e amigos de além-túmulo. Era preciso que ele assim fosse, para que pudesse chamar todos os homens à fraternidade. Se ele não se tivesse colocado em terreno neutro, teria mantido dissensões, em vez de apaziguá-las.

Essa universalidade do ensino dos Espíritos constitui a força do Espiritismo. Aí também está a causa de sua propagação tão rápida, ao passo que a voz de um só homem, mesmo com o auxílio da imprensa, teria levado séculos para chegar a todos os ouvidos, eis que milhares de vozes se fazem ouvir simultaneamente em todos os pontos da Terra, para proclamar os mesmos princípios e transmiti-los aos mais ignorantes, como aos mais sábios, a fim de que ninguém fique deserdado. É uma vantagem de que não gozou nenhuma das doutrinas até hoje aparecidas. Se, pois, o Espiritismo é uma verdade, ele não teme nem a má vontade dos homens nem as revoluções morais nem os desmoronamentos físicos do globo, porque nenhuma dessas coisas pode atingir os Espíritos.

Mas esta não é a única vantagem resultante dessa posição excepcional. O Espiritismo aí encontra uma onipotente garantia contra os cismas que poderiam suscitar a ambição de certas pessoas ou as contradições de certos Espíritos. Seguramente essas contradições são um escolho, mas que leva em si o remédio ao lado do mal.

Sabe-se que os Espíritos, por força da diferença existente em suas capacidades, estão longe de estar individualmente na posse de toda a verdade; que nem a todos é dado penetrar certos mistérios; que seu saber é proporcional à sua depuração; que os Espíritos vulgares não sabem mais que os homens e até menos que certos homens; que entre eles, como entre estes, há presunçosos e pseudossábios que creem saber o que não sabem; sistemáticos que tomam suas ideias como verdades; enfim, que os Espíritos da ordem mais elevada, os que estão completamente desmaterializados, são os únicos que se despojaram das ideias e preconceitos terrenos. Mas sabe-se, também, que os Espíritos enganadores não têm escrúpulo em esconder-se sob nomes de empréstimo, para fazerem aceitas as suas utopias. Disso resulta que, para tudo quanto esteja fora do ensino exclusivamente moral, as revelações que cada um pode obter têm um caráter individual sem autenticidade; que elas devem ser consideradas como opinião pessoal de tal ou qual Espírito, e que seria imprudente aceitá-las e promulgá-las levianamente como verdades absolutas.

 

O primeiro controle é, sem sombra de dúvida, o da razão, ao qual é preciso submeter, sem exceção, tudo quanto vem dos Espíritos. Toda teoria em manifesta contradição com o bom-senso, com uma lógica rigorosa e com os dados positivos que se possui, por mais respeitável que seja a sua assinatura, deve ser rejeitada. Mas esse controle é incompleto em muitos casos, por força da insuficiência das luzes de certas pessoas e da tendência de muitos a tomar seu próprio julgamento por único árbitro da verdade. Em tal caso, que fazem os homens que não têm absoluta confiança em si próprios? Seguem a opinião da maioria, e a opinião da maioria é o seu guia. Assim deve ser a respeito do ensino dos Espíritos, que nos fornecem, eles próprios, os meios.

A concordância no ensino dos Espíritos é, pois, o melhor controle, mas ainda é preciso que ocorra em certas condições. A menos segura de todas é quando um médium interroga, ele próprio, vários Espíritos, sobre um ponto duvidoso. É evidente que se estiver sob o império de uma obsessão, e se ele tratar com um Espírito enganador, esse Espírito lhe pode dizer a mesma coisa com nomes diversos.

Também não há garantia suficiente na conformidade obtida pelos médiuns de um mesmo centro, porque eles podem sofrer a mesma influência. A única séria garantia está na concordância que existe entre as revelações espontâneas feitas por intermédio de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em diversas regiões.

Compreende-se que aqui não se trata de comunicações relativas a interesses secundários, mas do que se liga aos princípios mesmos da doutrina. Prova a experiência que quando um princípio novo deve ter a sua solução, é ensinado espontaneamente em diversos pontos ao mesmo tempo e de maneira idêntica, senão na forma, ao menos no fundo. Se, pois, a um Espírito agrada formular um sistema excêntrico, baseado em suas próprias ideias e fora da verdade, podemos estar certos de que o sistema ficará circunscrito e cairá ante a unanimidade das instruções dadas por toda parte, como já houve vários exemplos.

É essa unanimidade que faz caírem todos os sistemas parciais nascidos na origem do Espiritismo, quando cada um explicava os fenômenos à sua maneira, e antes que fossem conhecidas as leis que regem as relações entre o mundo visível e o invisível.

Tal a base em que nos apoiamos quando formulamos um princípio da doutrina. Não o damos como verdadeiro por estar em conformidade com as nossas ideias; não nos colocamos absolutamente como árbitro supremo da verdade, e a ninguém dizemos: “Crede nisto porque o dizemos.” Nossa opinião, aos nossos olhos, não passa de uma opinião pessoal que pode ser justa ou falsa, pelo simples fato de não sermos mais infalível que qualquer outro. Também não é por que um princípio nos é ensinado que para nós é a verdade, mas porque recebeu a sanção da concordância.

Esse controle universal é uma garantia para a futura unidade do Espiritismo e anulará todas as teorias contraditórias. É aí que, no futuro, será procurado o critério da verdade. O que fez o sucesso da doutrina formulada no Livro dos Espíritos e no Livro dos médiuns é que por toda parte cada um pôde receber dos Espíritos, diretamente, a confirmação do que eles encerram. Se de todos os lados os Espíritos tivessem vindo contradizê-los, de há muito esses livros teriam tido a sorte de todas as concepções fantásticas. O próprio apoio da imprensa não os teria salvo do naufrágio, ao passo que, privados desse apoio, nem por isto deixaram de fazer um caminho rápido, porque tiveram o dos Espíritos, cuja boa vontade compensou com sobra a má vontade dos homens. Assim será com todas as ideias emanadas dos Espíritos ou dos homens que não puderem suportar a prova desse controle cujo poder ninguém pode contestar.

 

Suponhamos, pois, que praza a certos Espíritos ditar, sob um título qualquer, um livro em sentido contrário. Suponhamos mesmo que, numa intenção hostil, e visando desacreditar a doutrina, a malevolência suscitasse comunicações apócrifas. Que influência poderiam ter esses escritos, se são desmentidos de todos os lados pelos Espíritos? É da adesão destes últimos que seria necessário assegurar-se, antes de lançar um sistema em seu nome. Do sistema de um só ao de todos há uma distância da unidade ao infinito.

Que podem todos os argumentos dos detratores sobre a opinião das massas, quando milhões de vozes amigas, partidas do espaço, vêm de todos os pontos do globo e no seio de cada família para contraditá-las? Sob esse ponto, a experiência já não confirmou a teoria? O que se tornaram todas as publicações que se diziam vir aniquilar o Espiritismo? Qual a que lhe deteve a marcha? Até hoje a questão não tinha sido encarada sob este ponto de vista, sem dúvida um dos mais sérios. Cada um contou consigo, mas não com os Espíritos.

Ressalta de tudo isto uma verdade capital: Qualquer pessoa que quisesse oporse à corrente das ideias estabelecidas e sancionadas, poderia bem causar uma pequena perturbação local e momentânea, mas nunca dominar o conjunto, mesmo no presente e ainda menos no futuro.

Ressalta, ainda, que as instruções dadas pelos Espíritos sobre pontos da doutrina ainda não elucidados não poderiam constituir lei enquanto ficassem isoladas, e que consequentemente não devem ser aceitas senão com todas as reservas e a título de informação.

Daí a necessidade de dar à sua publicação a maior prudência, e, caso se julgasse dever publicá-las, importa não apresentá-las senão como opiniões individuais, mais ou menos prováveis, mas tendo, em todo o caso, necessidade de confirmação. É essa confirmação que se deve esperar, antes de apresentar um princípio como verdade absoluta, se não se quiser ser acusado de leviandade ou de irrefletida credulidade.

Em suas revelações, os Espíritos superiores procedem com extrema sabedoria. Eles só abordam as grandes questões da doutrina gradativamente, à medida que a inteligência se torna apta a compreender verdades de uma ordem mais elevada, e que as circunstâncias sejam propícias à emissão de uma ideia nova. Eis por que, desde o começo, não disseram tudo, e até hoje não o disseram, jamais cedendo à impaciência de criaturas muito apressadas que querem colher os frutos antes de sua maturação. Seria, pois, supérfluo querer precipitar o tempo marcado a cada coisa pela Providência, porque então os Espíritos realmente sérios positivamente recusam o seu concurso. Os Espíritos levianos, no entanto, pouco se incomodando com a verdade, a tudo respondem. É por essa razão que sobre todas as questões prematuras, sempre há respostas contraditórias.

Os princípios acima não são fruto de uma teoria pessoal, mas a consequência forçosa das condições em que se manifestam os Espíritos. É evidente que se um Espírito diz uma coisa de um lado, enquanto milhões dizem o contrário alhures, a presunção de verdade não pode estar com aquele que é o único ou quase o único de sua opinião. Ora, pretender ser o único a ter razão contra todos seria tão ilógico da parte de um Espírito quanto da parte de um homem. Os Espíritos verdadeiramente sábios, se não se sentem suficientemente esclarecidos sobre uma questão, jamais a resolvem de maneira absoluta; declaram não tratá-la senão de seu ponto de vista, e aconselham mesmo a esperar a sua confirmação.

Por mais bela, justa e grande que seja uma ideia, é impossível que, desde o começo, alie todas as opiniões. Os conflitos daí resultantes são consequência inevitável do movimento que se opera; são mesmo necessários para melhor destacar a verdade, e é útil que ocorram no começo, para que as ideias falsas sejam mais prontamente descartadas. Os espíritas que concebessem alguns temores devem, pois, ficar perfeitamente seguros. Todas as pretensões isoladas cairão pela força das coisas, ante o grande e poderoso critério do controle universal. Não é à opinião de um homem que eles se aliarão, é a voz unânime dos Espíritos. Não é um homem, nem nós mais que outro, que fundará a ortodoxia espírita; também não é um Espírito vindo impor-se a quem quer que seja: é a universalidade dos Espíritos, comunicando-se em toda a Terra, por ordem de Deus. Aí está o caráter essencial da Doutrina Espírita. Aí está a sua força e a sua autoridade. Deus quis que a sua lei se assentasse numa base inabalável, por isso não a assentou sobre a cabeça frágil de um só.

 

É perante esse poderoso areópago que não conhece nem os grupelhos nem as rivalidades invejosas nem as seitas nem as nações, que virão quebrar-se todas as oposições, todas as ambições, todas as pretensões à supremacia individual; que nós mesmos nos quebraríamos se quiséssemos substituir os seus soberanos desígnios por nossas próprias ideias. Ele é o único que resolverá todas as questões litigiosas; que fará calarem-se as dissidências e dará ou não razão a quem de direito. Ante esse imponente acordo de todas as vozes do céu, que pode a opinião de um homem ou de um Espírito? Menos que a gota d’água que se perde no oceano. Menos que a voz da criança, abafada pela tempestade.

A opinião universal, eis o juiz supremo, o que se pronuncia em última instância. Ela se forma de todas as opiniões individuais; se uma delas for verdadeira, terá apenas o seu peso relativo na balança; se for falsa, não pode triunfar sobre todas as outras. Nesse imenso concurso, as individualidades se apagam, e aí está um novo revés para o orgulho humano.

Esse conjunto harmonioso já se desenha. Ora, este século não passará sem que ele resplandeça em todo o seu brilho, de maneira a fixar todas as incertezas, porque até lá, vozes poderosas terão recebido a missão de se fazer ouvir para aliar os homens sob a mesma bandeira, desde que o campo seja suficientemente trabalhado.

Enquanto espera, aquele que flutua entre dois sistemas opostos pode observar em que sentido se forma a opinião geral. Essa é a indicação correta do sentido em que se pronuncia a maioria dos Espíritos sobre os diversos pontos nos quais eles se comunicam. É um sinal não menos certo de qual dos dois sistemas triunfará.

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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