COVID19: Os tempos são chegados. Mas, sem alucinações, por favor!
Marcelo Henrique
“Qual pode ser a autoridade do ensinamento dos Espíritos, se eles não são infalíveis e superiores à Humanidade?” (Allan Kardec, “A Gênese”, Capítulo I, Item 1).
O ser humano – que para nós, espíritas, é um Espírito encarnado, isto é, o ser imaterial e eterno que, inúmeras vezes, volta à existência corporal para continuar sua trajetória de aprendizado e progresso – ao se deparar com os conteúdos da Doutrina dos Espíritos, se vê diante de um universo antes desconhecido.
Dá-se o mesmo com as demais áreas do conhecimento humano, entre as quais se destacam as filosofias e as ciências. Deixo de fora as religiões (crenças) porquanto estas se baseiam, fortemente, no conteúdo sobrenatural e na não-razoabilidade das explicações decorrentes dos mistérios e dos dogmas religiosos. São importantes, estas últimas, na trajetória do ser, mas elas vão sendo deixadas de lado à medida que o indivíduo, o ser espiritual, desvencilha-se delas associando suas crenças à interpretação racional dos fatos.
A vida física – e suas inúmeras dificuldades – nos endereça, por vezes, à tentativa de entendimento das distintas situações, sejam as que nos atingem diretamente, seja aquelas que ocupam os noticiários da imprensa e das redes sociais. Não é difícil, assim, imaginar que o estudante (e não o estudioso) da Doutrina dos Espíritos se apresse em tentar buscar “respostas” ou “justificativas” para contextos e ocorrências. Também é muito comum aqueles que são versados nas “letras espíritas”, seja por meio de textos seja pela (agora mais comum) apresentação de temas pela verbalização, gravada em vídeos, apresentarem a chamada “visão espírita” disso ou daquilo. Para não deixar nada de fora, coloco neste segmento, também, os palestrantes e dirigentes de instituições ditas espíritas que também se prestam a interpretar “de modo espírita” os fatos do mundo em que estamos vivendo.
Há uma “necessidade” muito grande de “explicar” as coisas do “modo espírita”, não é mesmo? E, em assim sendo, é justamente neste contexto que se deve ter muita cautela, evitar a pressa e a simplificação perigosa dos fatos e evitar-se os achismos e, pior, as explicações “sobrenaturais” ou “fantásticas”. Kardec, mesmo, alertou seguidamente, estabelecendo a linha demarcatória entre o conteúdo das crenças e religiões e o do Espiritismo, posto que este último não se ocupa, jamais, do fantástico ou do sobrenatural. Do contrário, fornece a Doutrina dos Espíritos a interpretação natural, lógico-racional dos fenômenos e das leis espirituais. Vide, a propósito, a excelente dissertação “O maravilhoso e o sobrenatural”, contida na Revue Spirite, de Setembro de 1860, em que se lê: “o Espiritismo nos dá a chave de uma porção de coisas inexplicadas e inexplicáveis por qualquer outro meio e que em tempos remotos puderam passar por prodígios”.
Em paralelo, nunca se teve tanta polarização política como nos dias de hoje, levando ao estabelecimento de muros quase intransponíveis entre partidários – não necessariamente conhecedores a fundo – de ideologias sócio-políticas. E isto, mesclado com a chamada “crença pessoal” e, também, a “lente” de interpretação de cada um acerca do que leu ou ouviu em termos de conteúdo espírita, amplifica por demais a “ânsia” de interpretação dos fatos que ocorrem em nosso planeta.
Nos últimos dias – mais acentuadamente a partir da confirmação dos primeiros casos de Corona Vírus (COVID19) em terras brasileiras – tem-se estado em contato com inúmeros textos, seja os desenvolvidos pelos próprios espíritas, em artigos ou em manifestações nas redes sociais, sejam os alegadamente provindos de “fontes mediúnicas”, isto é, presentes em textos supostamente “psicografados” em reuniões das instituições espíritas. Grande parte deste conteúdo, já nos primeiros parágrafos, destoa completamente das diretrizes e dos princípios espiritistas, contendo, inclusive, “explicações” que não resistem ao mero cotejo com itens básicos contidos na primeira obra de Allan Kardec, “O livro dos Espíritos”.
O que acontece, via de regra, é que quem lê, embora já tenha alguma “embocadura” ou “constância” dita espírita, seja pela leitura de romances, a frequência a reuniões de exposição doutrinária (palestras) e, até, pasmem, reuniões de estudo ou, até – o que é ainda mais grave – de prática mediúnica, não é submetido aos FILTROS DOUTRINÁRIOS.
Mas, o que seria isso? Acho que nunca ouvi falar de “filtro doutrinário”. Isso existe? – é o que você, leitor, deve estar se perguntando.
Sim, caríssimos! O Espiritismo possui, sim, filtros doutrinários. E foi Kardec quem os estabeleceu ao cunhar e legar para a Humanidade (daquele tempo e a de tempos vindouros, como o nosso) o conjunto de princípios e fundamentos da Doutrina dos Espíritos. Para tal, não retirou da sua própria cabeça os elementos que dão corpo ao Espiritismo. Selecionou, interpretou, complementou, introduziu, referenciou, estabeleceu contornos e correlações entre as milhares de comunicações que recebeu, produzidas pelo intercâmbio mediúnico com as Inteligências Invisíveis e, selecionando-as, descartou aquelas que eram: 1) contrárias à lógica, à racionalidade e ao bom senso; 2) moralmente úteis, mas vinculadas ao pensamento de crenças ou filosofias que reconheciam dogmas ou verdades indiscutíveis, incompatíveis com a base espírita; e, 3) as que pudessem ser contrárias aos próprios elementos constitutivos da doutrina, como os princípios em que ela se fundamenta.
Somente após isto e, ainda mais, reconhecendo como válidas aquelas que sobrevivessem à comparação com outras, obtidas independentemente, em lugares e momentos diferentes, por médiuns distintos, assinadas por Espíritos ímpares, concordes entre si e em relação aos já citados princípios espiritistas, que podemos resumir em: Deus, Espírito, Reencarnação (Pluralidade das Existências), Comunicabilidade entre os Espíritos (Mediunidade), Pluralidade dos Mundos Habitados, Progresso Espiritual e Livre-Arbítrio. Faço uma ressalva de que a enunciação dos princípios pode não ser de concordância de todos pois há os que colocam o Progresso e o Livre Arbítrio “apenas” como Leis Espirituais (e não princípios). Isto é secundário, cremos. O que se destaca é que não se tem, no conjunto de 32 obras publicadas, em vida, por Kardec, nenhuma mensagem que afronte, seja um, sejam vários dos princípios espiritistas.
Não é o que vemos, infelizmente, em palestras ou textos (artigos ou psicografias) que se intitulam espíritas, sobretudo neste momento tão delicado da existência da Humanidade terrena, diante, por exemplo, além dos demais infortúnios, dificuldades e problemas individuais e coletivos dos seres que estagiam neste orbe, a proliferação do COVID19.
É preciso sensatez e responsabilidade! Por coerência e fidelidade ao Espiritismo!
Assim sendo, diante dos fatos e com a visão que suplanta a mera (e efêmera) impressão que os olhos materiais consagram, escudados no conteúdo basilar do Espiritismo, diante do COVID19, é possível afirmar:
1. A existência físico-material compõe-se de provas e expiações, sendo, ambas, em conjunto, oportunidades necessárias ao aprimoramento (progresso) espiritual dos indivíduos (“O livro dos Espíritos”, Livro Segundo, Capítulo V, “Escolha das Provas” e Livro Quarto, Capítulo I, “Penas e Gozos Terrenos”; “O evangelho segundo o Espiritismo”, Capítulo III, Mundos de Expiações e Provas”);
2. As dificuldades da vida física – inclusive as doenças ou enfermidades que existem e as novas que são diagnosticadas – compreendem o conjunto de elementos que permitem a indivíduos e coletividades o exercício da inteligência para a superação daquelas, a partir do enfrentamento biológico-clínico e da adaptação de governos e coletividades às novas situações que ocorrerem (“O livro dos Espíritos”, Parte Terceira, Capítulo V, “Lei de Conservação”; “O evangelho segundo o Espiritismo”, Capítulo V, “Causas Atuais das Aflições” e Capítulo XXVIII, Item V, “Preces pelos doentes e pelos obsidiados”; “A Gênese, Capítulo III, “Origem do bem e do mal”);
3. Na atuação das pessoas de boa vontade, encarnadas, em diversos setores da vida física, dedicando-se a minorar dores e deficiências e a encontrar alternativas, inclusive econômico-financeiras, percebe-se a aproximação das Inteligências Invisíveis, orientando e influenciando as primeiras para a resolução de problemas e a superação de dificuldades (“O livro dos Espíritos”, Parte Segunda, Capítulo IX, “Influência dos Espíritos em nossos pensamentos e atos”);
4. Especialmente no segmento da biologia e da medicina, pesquisadores e cientistas dedicados aos seus ofícios e misteres, sem a ganância e a predominância dos interesses meramente materiais, mas imbuídos de princípios de solidariedade e fraternidade, constituem-se em Espíritos mais adiantados que, cumpridos os objetivos, credenciam-se espiritualmente na marcha do progresso espiritual, inclusive para a encarnação futura em planos mais adiantados que os nossos (“O livro dos Espíritos”, Parte Segunda, Capítulo VII, “Influência do organismo”, Capítulo X, “Ocupações e Missões dos Espíritos” e Parte Terceira, Capítulo XII, “Da Perfeição Moral”; “A Gênese”, Capítulo XXVIII, “A Geração Nova”; “Revue Spirite”, Janeiro, 1863, “Barbárie na Civilização”);
5. Nas mais diversas situações do cotidiano, distinguem-se indivíduos despertos e solidários à dor alheia, buscando minimizá-la e assisti-la, diferentemente daqueles que meramente se comprazem com a necessidade alheia e visam proveitos materiais ou sociais, em cima dos infortúnios individuais ou coletivos (“O livro dos Espíritos”, Parte Terceira, Capítulo XI, “Lei de Justiça, Amor e Caridade”; “O evangelho segundo o Espiritismo”, Capítulo XV, “Fora da Caridade não há Salvação”);
6. A noção espírita de Deus distancia-se do conceito antropomórfico do Criador, presente em grande parte das religiões e crenças, porquanto se acha, no Espiritismo, distante das ideias de pecado, culpa, pena e castigo, ou, em contraponto, das de benesses, perdões, graça e salvação (“O livro dos Espíritos”, Parte Primeira, Capítulo I, “Deus”, Parte Terceira, Capítulos I e XI, “A Lei Divina ou Natural” e “Lei de Justiça, Amor e Caridade”, Parte Quarta, Capítulos I e II, “Penas e Gozos Terrestres” e “Penas e Gozos Futuros”);
7. Os problemas da existência física e os contornos da materialidade não são objeto da ação (terapêutica ou resolutiva) dos Espíritos desencarnados, como se a eles incumbisse o papel de solucionar as questões que fazem parte da própria contingência material, em que a manutenção da vida individual e coletiva, a preservação do meio ambiente e as variantes do progresso econômico-social, são decorrentes das ações humanas, dos seres encarnados, onde cada um responde (positiva ou negativamente) e se responsabiliza (espiritualmente) por ações ou omissões (“O livro dos Espíritos”, Parte Terceira, Capítulos V, VI e VIII, “Lei de Conservação”, “Lei de Destruição” e “Lei do Progresso”);
8. Caso a problemática de saúde que o planeta experiencia neste momento, com o COVID19, seja decorrente da natural mutação genética e das questões sócio-ambientais dos distintos países e aglomerados humanos, as Leis Espirituais serão naturalmente aplicadas a todos, inclusive em termos de futuras existências, onde, para a contingência em questão, pode-se lembrar da assertiva atribuída a Jesus de Nazaré: “a cada um segundo suas obras” (“O evangelho segundo o Espiritismo”, Capítulo XVI, “Parábola dos Talentos”; “O Céu e o Inferno”, Primeira Parte, Capítulo III, “O Céu”; “A Gênese”, Capítulos I e XVII, “Caráter da Revelação Espírita” e “Predições do Evangelho”);
9. Entretanto, se, como se cogita, as dificuldades, inclusive as sequelas físicas e psicológicas e os óbitos decorrentes da contaminação pelo vírus forem resultado de experimentos genéticos provocados ou proliferação criminosa do material originário, pode-se relembrar a passagem igualmente atribuída a Jesus, e contida em “O evangelho segundo o Espiritismo”, acerca dos “escândalos necessários”, justamente porque, perante a Justiça Divina nada ou ninguém passa imune (“O evangelho segundo o Espiritismo”, Capítulo XII); e, finalmente,
10. Que o cenário atual nos sirva de inspiração para o exercício não só do raciocínio lógico espírita, na interpretação de tudo o que nele está contido, mas para despertar a necessidade do próprio despertamento interior para as verdades espirituais, concorrendo para a nossa própria melhora de pensamentos, palavras e atitudes, bem como, e mais relevantemente, da minoração das dores porque passam indivíduos e sociedades, em virtude da segregação destes, de meios produtivos, riquezas e benefícios, e das modalidades contemporâneas de escravatura – física, moral e psicológica – que nos aproximam de estágios anteriores, de barbárie e selvageria, em face de que grande parte das coletividades ainda se acha privada do exercício e do desfrute dos mínimos direitos fundamentais da espécie humana, consagrados que foram, a partir de 1948, na “Declaração Universal dos Direitos do Homem” (“O livro dos Espíritos”, Parte Segunda, Capítulo VI, “Escolha de Provas”, Parte Terceira, Capítulos VIII, IX, XI e XII, “Lei do Progresso”, “Lei de Igualdade”, “Lei de Justiça, Amor e Caridade” e “Perfeição Moral”; “O Céu e o Inferno”, Primeira Parte, Capítulo III, “O Céu”; “A Gênese”, Capítulo XI, “Gênese Espiritual”).
A par de todas as providências que, coerentes e sensatas, devem ser tomadas pelos espíritas, homens de bem, atentando para as recomendações das autoridades sanitárias e políticas, na forma de atitudes responsáveis e seguras, que prossigamos com serenidade, equilíbrio e prudência, para enfrentarmos com dignidade este momento agudo da existência humana neste planeta.
Por fim, que os espíritas conscientes atuem, também, efetivamente, no esclarecimento de seus pares, que compõem instituições ou grupos, presenciais ou virtuais, espíritas, afastando a proliferação de mensagens ambíguas, irracionais, demagógicas, ufanistas, de religiosidade discutível e de espiritualidade confusa, para que não sejamos, nós, os arautos do misticismo, do fantástico e do sobrenatural, diante de uma doutrina logica e racionalmente estruturada por Kardec, que é o Espiritismo.
Lembremos, outrossim, neste diapasão, o que o próprio preclaro professor francês nos ensinou no seu “Manual de Mediunidade – Guia dos Médiuns e Doutrinadores”: “[…] quando dá muita atenção a certas leituras, ou a histórias de sortilégios, que impressionam, a pessoa, lembrando-se mais tarde dessas coisas, julga ver o que não existe” (Kardec, “O livro dos Médiuns”, Segunda Parte, Capítulo VI, Item 113).
Os tempos são chegados, diz a máxima evangélica, referendada pelo Espiritismo. Que nos credenciemos a passar por esses tempos e seguirmos adiante, na fieira de progresso individual e social que nos aguarda!