Deus e a Beleza

Rubem Alves

Terminada uma conversa promovida pela Folha de S. Paulo uma senhora me fez essa pergunta: “O senhor acredita em Deus?” Respondi com versos do Chico: “Saudade é o revés do parto. É arrumar o quarto para o filho que já morreu.” E comentei: “Qual é a mãe que mais ama?A que arruma o quarto para o filho que vai voltar ou a que arruma o quarto para o filho que não vai voltar? Sou um construtor de altares. É o meu jeito de arrumar o quarto. Construo meus altares à beira de um abismo escuro e silencioso. Eu os construo com poesia e música. Os fogos que neles acendo iluminam o meu rosto E me aquecem. Mas o abismo permanece escuro e silencioso…”

Essa pergunta me provocou e resolvi escrever um livrinho com o título Perguntaram-me se acredito em Deus ( Editora Planeta ). Fiz uso da figura de um contador de estórias, mestre Benjamin. De noite as pessoas de sua aldeia se reuniam em sua casa para ouvi-lo. E numa dessas noites uma velhinha de voz trêmula e pele cheia de rugas lhe pediu:“Mestre, fale-nos sobre Deus…” E foi isso que aconteceu:

Mestre Benjamin fez silêncio. Olhou para o vazio. Vagarosamente um sorriso foi-se abrindo.

“Quantas pessoas aqui na minha tenda estão pensando no ar?” ele perguntou. “Por favor, levantem uma mão…”

Ninguém levantou a mão.

“Ninguém levantou a mão… Ninguém está pensando no ar. Ninguém nem sabe direito o que é o ar. E, no entanto, todos nós o estamos respirando. O ar é a nossa vida e não precisamos pensar nele e nem dizer o seu nome para que ele nos dê vida. Mas o homem que se afoga do fundo das águas só pensa no ar. Deus é assim. Não é preciso pensar nele e pronunciar o seu nome. Ao contrário, quando se pensa nele o tempo todo é porque está se afogando…

“Que desejamos para os nossos filhos? Que eles sejam felizes. Sorrimos ao vê-los por ai a correr, a pular, a cantar, a brincar, pensando nas coisas de criança. Mas enquanto brincam e riem eles não pensam em nós. Se um filho ao se levantar viesse até você e o elogiasse, e agradecesse porque você lhe deu a vida e jurasse amor para sempre, e fizesse a mesma coisa na hora do almoço, e repetisse os mesmos gestos e palavras ao meio da tarde, e de noite fizesse tudo de novo, suspeitaríamos de que alguma coisa não está bem. O que desejamos é que eles gozem a vida sem pensar em nós. Quem pensa demais e fala demais sobre Deus é porque não o está respirando. A fala indica uma ausência. “Pensar em Deus é desobedecer a Deus. Porque Deus não quis que o conhecêssemos, por isso se não nos mostrou.” ( Alberto Caeiro)

Fez-se silêncio. Foi quando uma lufada de vento entrou pela tenda fazendo balançar a lâmpada de óleo que pendia do teto.

“Deus é como o vento. Sentimos na pele quando ele passa, ouvimos a sua música nas folhas das árvores e o seu assobio nas gretas das portas. Mas não sabemos de onde vem e nem para onde vai. Na flauta o vento se transforma em melodia. Mas não é possível engarrafá-lo. Mas as religiões tentam engarrafá-lo em lugares fechados a que eles dão o nome de “casa de Deus”. Mas se Deus mora numa casa estará ele ausente do resto do mundo? Vento engarrafado não sopra… ”

Ouviu-se então o pio distante de uma coruja.

“Deus é como um pássaro encantado que nunca se vê. Só se ouve o seu canto…”

“Deus é uma suspeita do nosso coração de que o universo tem um coração que pulsa como o nosso. Suspeita… Nenhuma certeza. Fujam dos que têm certezas. Olhem bem: eles trazem gaiolas nas suas mãos. Os pássaros que têm presos nas suas gaiolas são pássaros empalhados. Ídolos.

Deus nos deu asas. Mas as religiões inventaram gaiolas.

Tudo o que vive é pulsação do sagrado. As aves dos céus, os lírios dos campos…Até o mais insignificante grilo, no seu cricri rítmico, é uma música do Grande Mistério.

É preciso esquecer os nomes de Deus que as religiões inventaram para encontrá-lo sem nome no assombro da vida.

Reverência pela vida: é a forma mais alta de oração. Sem nome… O nome de Deus não pode ser pronunciado…

Não precisamos dizer o nome ‘rosa” para sentir o seu perfume.

Não precisamos dizer o nome ‘ mel’ para sentir a sua doçura.

Muitas pessoas que jamais pronunciam o nome de Deus o conhecem como reverência pela vida.

Há pessoas que se sentem religiosas por acreditar em Deus. De que vale isso? Os demônios também acreditam e estremecem ao ouvir o seu nome ( Tiago 2.19 ). A pergunta não deveria ser ‘Você acredita em Deus?’ mas ‘Você se comove com a beleza?’ Deus nunca foi visto por ninguém. Ele se mostra na experiência da beleza.

Os homens religiosos procuram Deus no invisível e no mundo após a morte. Quando alguém morre eles repetem como consolo: ‘Deus o levou para si’. Então, enquanto vivo, ele estava distante de Deus? Deus é Deus dos mortos ou Deus dos vivos? Deus não mora no mundo dos mortos. Ele mora no nosso mundo, passeia pelo jardim. Deus é beleza. E se ele ama o que é feio é só para torná-lo belo… Por isso ele ama os desertos: porque neles se escondem fontes…

Quer ver Deus? Veja a beleza do sol que se põe, sem pensar em Deus.

Quer ouvir Deus? Entregue-se à beleza da música, sem pensar em Deus.

Quer sentir o cheiro de Deus? Respire fundo o cheiro do jasmim, sem pensar em Deus.

Quer saber como é o coração de Deus? Empurre uma criança num balanço, porque Deus tem um coração de criança, sem pensar em Deus.

Há beleza demais no universo. Mas o tempo vai-nos roubando as coisas que amamos. Vai-se o arbusto, vai-se a montanha, vão-se os riachos cristalinos, vão-se as pessoas amadas, vamos nós… O tempo é um monstro que devora os seus filhos. Fica a saudade. Saudade é a presença da ausência das coisas que amamos e nos foram roubadas pelo tempo. Quando se pronuncia o nome sagrado está-se afirmando que a beleza amada não está perdida no passado. Está escrito num poema sagrado: ‘Lança o teu pão sobre as águas porque depois de muitos dias o encontrarás…’ (Eclesiastes 11.1). As águas dos rios são circulares, o tempo é circular, o que foi perdido volta, um eterno retorno… Deus existe para nos curar da saudade…

Eu gostaria de dar um conselho: ‘Não sejam curiosos a respeito de Deus, pois eu sou curioso sobre todas as coisas e não sou curioso a respeito de Deus. Não há palavra capaz de dizer quando eu me sinto em paz perante Deus e a morte. Escuto e vejo Deus em todos os objetos, embora de Deus eu não entenda nem um pouquinho… Eu vejo Deus em cada uma das vinte quatro horas e em cada instante de cada uma delas, nos rostos dos homens e das mulheres eu vejo Deus…’ ( Walt Whitman ) “Sejamos simples e calmos como os regatos e as árvores, e Deus amar-nos-á fazendo de nós belos como as árvores e os regatos, e dar-nos-á verdor na sua primavera e um rio aonde ir ter quando acabemos.’ (Alberto Caeiro ).

Ouvidas essas palavras a velhinha sorriu para o Mestre Benjamin e fez um gesto com a sua mão, abençoando-o.

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Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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