Dez Pontos de Kardec
Um ensaio sobre o espiritismo e seus pilares neste 31 de março, desencarne de Allan Kardec.
Marcelo Henrique
Kardec escreveu muitos livros, utilizando-se deste pseudônimo. Trinta e dois, para sermos mais exatos, considerando os fascículos mensais da Revue Spirite reunidos em volumes anuais. Excetuamos desta produção legitimamente kardeciana, o livro “Obras Póstumas”, em virtude de serem a reunião de apontamentos que, alegadamente, foram deixados esparsos pelo Codificador e, após a sua morte (1869), foram publicados com esta denominação.
Como os espíritas de todo o mundo recentemente tiveram a ampla notícia de que sua última obra em vida, “A Gênese”, teve uma edição póstuma (1872), com alterações substanciais e de mérito de seu conteúdo original, a ponto de desconfigurá-la completamente, é recomendável muita cautela para afirmar, de pronto, que todos os textos contidos no livro póstumo sejam, realmente, da lavra do professor francês. Além disso, o projeto “Cartas de Kardec” que reuniu o acervo de documentos que estava, antes, de posse da família do escritor espírita Canuto de Abreu, deverá revelar novas informações que poderão ser úteis e essenciais à eventual descoberta de outras adulterações dos textos kardecianos, ou não. Em paralelo, já foram iniciadas outras investigações e levantamentos para analisar, do quantitativo de obras editadas e lançadas por Kardec se, posteriormente, em novas reedições ou em traduções diversas, das muitas editoras brasileiras que publicaram livros assinados pelo Codificador com seus selos, se há outras discrepâncias em relação aos originais franceses.
Por outro lado, também é necessário avaliar se, no último volume da Revue (1869), justamente o do ano do falecimento do professor Rivail, se os fascículos de maio a dezembro, igualmente, não contêm afirmações e transcrições que não possuem a marca da lógica e do bom senso kardecianos, mas foram apostos, post-mortem, por outras pessoas, como se fossem escritos de Kardec. Isto porque, embora falecendo em março deste ano, o mesmo deixou pronta, em tipografia, a edição do mês de abril, da mencionada revista.
Da extensa obra de Kardec, pinçamos para este ensaio, uma que é muito pouco conhecida: “O que é o Espiritismo”. Esta é, justamente, a obra recomendada por Rivail para ser lida PRIMEIRO, antes das demais, por todo neófito desejoso de conhecer a Doutrina dos Espíritos. Logo no título já dá para perceber a verdadeira intenção do Codificador em apresentar um livro mais simples e resumido, direcionado àqueles que quisessem ter uma visão sintética e pontual sobre os principais conceitos espiritistas.
Ela é tão importante para todos os estudiosos e interessados espíritas que, no século passado, um dos grandes vultos do Espiritismo nacional, o insigne Júlio Abreu Filho sugeriu a algumas editoras que se ampliasse o foco de divulgação destes básicos conceitos e fundamentos, publicando um opúsculo que recebeu o sugestivo título de “O principiante espírita”. Esta obra, menor que a mencionada, originariamente publicada por Kardec, consolida os capítulos II e III de “O que é o Espiritismo” e presenteia o leitor com uma detalhada biografia do Codificador. Esta iniciativa, memorável, permite que o interessado tenha uma introdução ao conhecimento do mundo invisível pelas manifestações espíritas, o resumo da doutrina espírita e as respostas às principais objeções que são feitas ao Espiritismo. E como se trata de um resumo da obra publicada pelo Mestre Lionês, Julio colocou como autor, deste resumo, o próprio Kardec.
Compulsando, tanto o livro original quanto a publicação coordenada pelo estudioso brasileiro, pequenos no tamanho, mas riquíssimos e essenciais em seu conteúdo, resolvemos apresentar aquilo que cognominamos os “dez pontos de Kardec”, para homenageá-lo e para propor aos espíritas conscientes dos nossos dias – tão marcados pela ditadura do conhecimento espírita, a partir da aceitação passiva de “revelações mediúnicas” sem o crivo da comparação e da sujeição das mesmas aos princípios e fundamentos do Espiritismo, posto que jamais submetidas, seja na origem, seja pelos que sobre elas se debruçam, ao Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos (CUEE), único critério kardeciano de validação de informações obtidas via mediunidade.
Vamos a eles.
1. Aquele que honestamente deseja instruir-se deve ter paciência e perseverança e pôr-se nas condições indispensáveis. E que quem quer elucidar-se não deve ir colher ensinos em uma única fonte, porque é só pelo exame e pela comparação que se pode firmar um juízo.
2. O Espiritismo sério não pode responsabilizar-se por aqueles que o entendem mal, ou que o praticam de modo contrário aos seus preceitos.
3. Os espíritos são seres semelhantes a nós, tendo como nós, um corpo, apenas fluídico e invisível no estado normal. Constituem o mundo espiritual ou invisível, que enche o espaço e no meio do qual vivemos sem disso desconfiarmos, analogicamente aos dos seres infinitamente pequenos, antes do advento do microscópio. Estão por toda parte, ao nosso lado, acotovelando-nos e observando-nos incessantemente e são atraídos pela simpatia, gostos e caracteres semelhantes ou pela intenção dos que lhes desejam a presença.
4. Os espíritos possuem as mesmas percepções que tinham na Terra, contudo em grau mais alto, porque as suas faculdades não estão amortecidas pela matéria, mas só pelo fato de estarem desprendidos da matéria, não devem saber tudo, nem estão de posse da sabedoria suprema. Mas são livres, só se comunicam quando querem e com quem lhes apetece ou quando suas ocupações o permitem, não estando às ordens e à mercê dos caprichos de quem quer que seja.
5. O Espiritismo tem por finalidade demonstrar e estudar a manifestação dos Espíritos, as suas faculdades, situação feliz ou infeliz, e o seu futuro, em uma palavra, o conhecimento do mundo espiritual. Eliminando a dúvida sobre o futuro, o Espiritismo é poderoso elemento de moralização.
6. A diversidade na qualidade dos Espíritos é um dos pontos mais importantes a considerar, porque explica a natureza boa ou má das comunicações recebidas; em distingui-las devemos empregar todo o nosso cuidado. (Aqui há a remissão tanto ao item 100 e seguintes de OLE – Escala Espírita – quanto do cap. XXIV, de OLM). As comunicações, assim, podem ser boas ou más, justas ou falsas, profundas ou frívolas, conforme a natureza dos que se manifestam.
7. As relações entre os mundos visível e invisível podem ser ocultas ou patentes, espontâneas ou provocadas. Os Espíritos atuam sobre os homens de modo oculto, sugerindo-lhe pensamentos e influenciando-os, de maneira patente, através de efeitos notáveis aos sentidos.
8. Da diversidade nas qualidades e aptidões dos Espíritos, conclui-se que não basta nos dirigirmos a um qualquer para obtermos uma resposta segura sobre qualquer assunto; porque, a respeito de muitas coisas, ele não nos pode dar senão a sua opinião pessoal, que pode ser justa ou errônea. Reconhece-se a qualidade dos espíritos por sua linguagem; a dos realmente bons e superiores é sempre digna, nobre, lógica e isenta de contradições; transpira sabedoria, benevolência, modéstia e a mais límpida moral; é concisa e sem palavras falazes. Na dos inferiores, ignorantes ou orgulhosos, a nulidade das ideias é quase sempre compensada pela abundância das palavras.
9. Os Espíritos inferiores são mais ou menos ignorantes, seu horizonte moral é restrito, sua perspicácia limitada; têm das coisas uma ideia quase sempre falsa e incompleta, conservando-se sob o império dos prejuízos terrestres, que crêem ser verdades e são incapazes de opinar em certas questões. Podem induzir-nos em erro, voluntária ou involuntariamente, sobre aquilo que nem eles entendem. Há os maus, os ignorantes e levianos, e os pilhéricos, espirituosos e divertidos.
10. Toda sessão espírita, para ser proveitosa, deve, como condição precípua, ser séria e homogênea; que nela deve tudo passar-se respeitosa e dignamente, quando se queira obter o concurso habitual dos bons Espíritos. Para evocá-los, não existem fórmulas sacramentais ou cabalísticas, nem preparação ou iniciação, bastando apenas o pensamento, pois que os médiuns recebem as comunicações tão simples e naturalmente como se ditadas por pessoa viva, sem saírem do estado normal. A evocação se faz em nome de Deus, com respeito e recolhimento, para que pessoas sérias entrem em contato com Espíritos sérios.
Este conjunto de orientações, quase paternais, são a prova inconteste do método que Kardec concebeu e aplicou, teoria e prática, para compor o conjunto de obras que contém preciosos ensinamentos para toda a Humanidade, legando às gerações futuras elementos que permanecem atuais e estabelecendo que não seria adequado continuar, apenas, com aquelas informações produzidas (1857-1869).
Mas, ao que parece, assim como quando da ausência de Moisés do grupo que liderava, para cumprir outros afazeres, tendo repelido os adereços religiosos, em seu retorno constatou que seu povo voltara a adorar imagens, os espíritas, a partir do desencarne do Codificador, deixaram-se seduzir pelos mesmos elementos místicos e sobrenaturais já presentes na história humana, para se curvar ante “revelações” de guias pseudo-sábios por meio de médiuns invigilantes ou temerosos.
As premissas em questão foram totalmente esquecidas, para dar lugar ao reconhecimento unitário e isolado de mensagens e obras, só porque provinham da Mediunidade ou porque se assinavam como “espíritas”, dando palco ao surgimento de inúmeras teorias estranhas e à aceitação de comunicações repassadas por Espíritos inferiores, fruto de suas imaginações ou de suas tacanhas percepções, decorrentes do nível em que ocupam na Escala Espírita, entre os degraus mais inferiores.
Mesmo ditados que estão recheados de sentimentos e citam o Amor de Deus, como referência, carecem de lógica e adequação aos fundamentos espíritas, onde a lógica e o bom senso obrigam que nos debrucemos sobre o conteúdo, além da letra e da assinatura. O rebuscamento dos termos e o apelo às sensações – quando não à emoção dos humanos – tem aceitabilidade praticamente tácita entre os espíritas, seja os que já se avolumam nas atividades rotineiras de instituições espiritistas, assumindo encargos de atendimento, assistência, estudo, preleção ou mediunidade, seja entre as platéias de freqüentadores, tanto os neófitos quanto os que já estão acostumados à beneficência dos resultados psíquicos, e continuam a freqüentar os horários das atividades.
O momento atual é significativo. Para nós e para os que virão depois de nós. Deveremos decidir se continuamos nos comportando como uma seita cristã, uma religião baseada em prescrições e recomendações, como bulas espirituais para a “salvação” que será o ingresso em “colônias inexistentes” ou o regresso em melhores condições de vivência, na carne. Sim, é esta a versão moderna do Céu cristão, e das benesses espirituais aos “homens de boa vontade”. Os espíritas, não-raro, se comportam como os judeus dos tempos antigos, à espera e achando justa a entrada na terra prometida. Ou como os cristãos que consideram fazer jus a sentarem-se à direita do Pai, aguardando o hipotético juízo final, onde o rebanho será apascentado pelo Bom Pastor.
O espírita aguarda, pacientemente, que a vida de privações e provações, na matéria, seja sucedida pelo ingresso no Pórtico Espiritual, onde será recepcionado pelo mentor da casa, pelos espíritos que cultuou em vida, como “grandes mensageiros” e pelos médiuns, famosos ou não, que o antecederam na “viagem”. E ansiará por viver num lugar circunscrito onde há contornos semimateriais como veículos, edifícios, alimentação, prêmios, dividendos, trabalhos, repouso e, até, sexo!
Ou melhor, os espíritas desavisados e hipnotizados pelo canto da sereia dos romances mediúnicos assim aguarda. Os espíritas verdadeiros, os que continuam interessados pelos velhos livros do século XIX – que os primeiros não entendem ou acham defasados e ultrapassados, ou de difícil compreensão –, estes, recorrem a Kardec para entender a realidade espiritual sem vernizes ou máscaras, sem floreios e sem adereços.
Se você acredita mesmo em Kardec e no Espiritismo, te faço um desafio: copie e imprima os dez princípios acima, assinados por Kardec e contidos tanto em “O principiante espírita” como em “O que é o Espiritismo”, e afixe-o nos locais onde há trabalhos de natureza espiritual ou mediúnica. Multiplique-o, entregando em mãos a cada um dos que ombreiam atividades desta natureza na casa que você freqüenta. Reproduza-o no site, blog, fanpage ou grupo de whatsapp, regularmente – e não uma única (e passível de esquecimento) vez, para que todos sejam vacinados contra a fascinação mediúnica, a adoração de guias e médiuns – que nada são além do que cada um de nós, e não se encontram em nenhuma posição de destaque, distanciada de nós – para que possamos reiteradas vezes relembrar a forma de relacionamento com os Espíritos, a análise criteriosa das mensagens e a recepção ou o afastamento das mentiras tidas como verdades nas instituições e nos agrupamentos espíritas.
Contribua, efetivamente, para mudar a atmosfera dos cenários espíritas, que se transformaram em locais de contemplação e aceitação passiva dos “reveladores” e suas inverdades espirituais! O retorno a Kardec para avançarmos retomando o diálogo produtivo e a evocação dos Luminares Espirituais – em substituição aos comunicantes que tomaram conta das reuniões espíritas – é a única maneira de impedir que o Espiritismo se resuma a, apenas, uma boa intenção que não se confirmou ou mais uma religião cristã, de aparências e prescrições, ao lado de ações assistenciais e beneméritas, necessárias, evidentemente, porque não foi possível atentar para as orientações espirituais verdadeiras e contribuir efetivamente para a implantação do planeta regenerado, substituindo o que nos recebe nesta existência.
Será possível?