Doação de órgãos: Às voltas com o amor genuíno

“Assim como nós aproveitamos uma peça de roupa que não tem utilidade para determinado amigo, e esse amigo, considerando a nossa penúria material, nos cede essa peça de roupa, é muito natural, aos nos desvencilharmos do corpo físico, venhamos a doar os órgãos prestantes a companheiros necessitados deles, que possam utilizá-los com segurança e proveito”.

Francisco Cândido Xavier, em entrevista à Folha Espírita, em 1982.

Quando uma personalidade conhecida, geralmente do meio artístico ou esportivo morre, há toda uma comoção em torno do acontecimento. E sendo em decorrência de uma fatalidade, então, a sensibilidade nas reações alcança maiores proporções. Foi o que vemos com o falecimento do apresentador Gugu Liberato, com morte cerebral após um acidente doméstico.
O sentimento de solidariedade em relação aos familiares e até relativa tristeza em face do personagem ser bem quisto e admirado por muitos, compõe o cenário de grande perplexidade da maioria dos seres viventes neste orbe, diante, principalmente, do caráter efêmero da existência física e do termo desta ser “resolvido” num intervalo de segundos. O fio da vida, assim, é tênue e obedece aos ditames das Leis Espirituais, que ainda não são de exata e precisa compreensão da grande maioria, que segue o curso existencial sem muitas respostas aos grandes questionamentos existenciais.

Tão logo a família recebeu o diagnóstico definitivo e irreversível, a imprensa noticiou o gesto da família em doar órgãos. Estima-se que até cinquenta pessoas diferentes possam ser beneficiadas com o transplante de órgãos, tecidos e similares.

Esse belíssimo gesto, de terceiros em relação ao corpo do ente querido que se despede da vida material é o legítimo amor genuíno. Afinal, pelo gesto se concede novas chances de vida, plena e com mais qualidade, aos semelhantes.

Todos os anos se vê pelas mídias, campanhas pela doação de órgãos no sentido de conscientizar e sensibilizar as pessoas para a nobreza do gesto, a facilidade e a segurança dos procedimentos e a especialização das equipes responsáveis pelos procedimentos médicos.
Penso que a grande “sacada” para motivar as pessoas a repensarem decisões e se tornarem doadores está ligada ao “destino” do corpo humano após a morte. O ato solidário de possibilitar que vidas sejam salvas está diretamente associado a evitar que se “enterrem” órgãos saudáveis, os quais serão completamente destruídos pela deterioração do corpo físico, para retirar, por procedimentos clínicos com total higiene e segurança, partes do corpo que serão transplantadas para outras pessoas, cuja saúde encontra-se comprometida em face da deterioração dos órgãos físicos.

Todos nós que somos espiritualistas e, em especial, os que se dizem espíritas, deveriam trabalhar para o esclarecimento pessoal e coletivo calcado na filosofia espírita, pois a vida verdadeira não se esgota com o esgotamento dos sinais físicos e os Espíritos sobrevivem à morte física. Sendo reencarnacionistas, os espíritas têm certeza de que todos retornamos para (muitas outras) novas experiências. De outra sorte, entre os que se vão antes e os que ficam, outra certeza subsiste: a da perspectiva de reencontro entre nós e os nossos familiares, após a morte, em algum lugar do Espaço.

Como é o Espírito que anima a vida física, em certas circunstâncias, nos instantes imediatos à declaração clínica do passamento, é possível transferir diversos órgãos vitais e componentes corporais para serem utilizados em organismos que padecem de enfermidades, devolvendo-lhes a saúde e a motivação para a vida.

Como qualquer doutrina que aborde temas de caráter religioso, também o Espiritismo está sujeito a algumas interpretações incoerentes e imprecisas. Importante, então, é buscar a lógica-racional espírita para se afastar de meras opiniões – que podem ser de seres desencarnados, pela psicografia, ou dos próprios encarnados, tidos como estudiosos ou especialistas. Muitas destas falácias estão associadas a eventuais sofrimentos para o desencarnado que vê os “seus” órgãos sendo retirados. Mesmo que em vida cada um de nós tenha deliberado a respeito da doação, há “espíritas” que se utilizam de estereótipos ou situações caricaturadas, para dizer, por exemplo, e ERRONEAMENTE, que o doador, inconformado, poderia “perseguir” (obsidiar) o que recebeu o transplante. Alguns, inclusive, chegam ao disparate de afirmar que eventuais rejeições (orgânicas) ao transplante de órgãos seria derivada da “ação magnética” do desencarnado contra a absorção, pelo encarnado, da nova parte do corpo que recebeu.

Isto, além de ser um desserviço não só à iniciativa da doação, é, também, em relação ao próprio Espiritismo, pela incorporação de conceitos estranhos, de ideias transversas, de fantasias e mitos, distanciados dos conceitos e fundamentos da Doutrina dos Espíritos.

Em nossa atividade mediúnica que está próxima de completar quatro décadas, não foram poucas as situações em que, espontaneamente ou por evocação, determinadas individualidades vieram se manifestar em reuniões mediúnicas, dando depoimentos de eterna gratidão aos que lhes cederam órgãos para continuarem por mais algum tempo sua experiência material, bem como aos familiares que autorizaram os procedimentos. Em número menor, mas verificado nas sessões, também compareceu um ou outro doador, atestando que acompanhou o procedimento do transplante, sem sentir qualquer dor “psíquica”, já que o corpo estava totalmente inerte e, do contrário, pareceram estar envoltos em suave “atmosfera”, derivada tanto dos bons sentimentos ligados ao gesto de desprendimento e solidariedade, quanto da satisfação experimentada por todos aqueles que, envolvidos no ato médico, tinham a plena consciência de estarem, também, contribuindo para “salvar” outras vidas.

Também podemos nos recordar de alguns relatos de impressões pessoais dos comunicantes, em que afirmaram, com o novo órgão, um coração, um fígado, um pulmão, um rim, entre outros, ter “adquirido” certas características em termos de sentimentos e virtudes do doador, como a bondade, a mansuetude, a temperança, a paciência, a abnegação, traços comuns, segundo depoimentos dos mais próximos daquele que se foi, do benfeitor que desejou ter seus órgãos doados.

Do ponto de vista clínico-jurídico, qualquer transplante “post mortem” só ocorre após a declaração clínica da morte encefálica, a qual corresponde à cessação irreversível das funções vitais, decorrente da paralisação definitiva ou da morte do cérebro e do tronco neural. Em consequência, tem-se como inevitável a parada cardíaca e, embora subsistam batimentos cardíacos, a pessoa com morte cerebral não consegue respirar sem a ajuda de aparelhos e o coração prossegue batendo por pouco tempo. Diferente, portanto, do estado de coma que pode ser reversível.

Compulsando a obra pioneira de Allan Kardec, “O Livro dos Espíritos”, encontramos um fundamento importante para a noção de “sofrimento” após a morte, para poder correlacionar o ensino com o temor ou receio de um espírita, encarnado, diante da doação de seus órgãos. Quando o professor francês questionou se os Espíritos (desencarnados) sofreriam as mesmas necessidades e sofrimentos dos seres quando na matéria, eles lhe responderam: “Eles os conhecem, porque os sofreram, passaram por eles; mas não os sentem como vós, materialmente, porque são Espíritos” (resposta à questão 253).

Mesmo no caso da morte encefálica – que é a que permite que os órgãos sejam retirados e transplantados – há que se buscar a diretriz originária espírita para entender as nuances que a diferenciam da chamada “morte natural”. Esta, a regra geral de desencarnação, está expressa no item 68, de “O Livro dos Espíritos”, quando Kardec pergunta qual a sua causa nos seres orgânicos: “A exaustão dos órgãos”, o esgotamento deles.

Com a morte cerebral, a morte orgânica vai se dar aos poucos, uma vez que, após a cessação do funcionamento cerebral, os órgãos, tecidos e células morrem em etapas. Se assim não fosse, os transplantes seriam impossíveis. Com a morte cerebral ou encefálica, sensações como o frio, o calor, a sede, as dores, etc., são impossíveis de serem experimentadas pelo Espírito, uma vez que o cérebro responsável pela captação e interpretação dos sinais físicos não está mais ativo. O Espírito, assim, somente pode guardar as impressões ou lembranças provenientes do condicionamento gerado durante certo tempo, variável, no caso de enfermidades, acidentes, doenças ou privações, bem como, em certos casos, do impacto emocional derivado das chamadas mortes acidentais ou violentas. O Espírito, assim, localiza tais sensações no períspirito exatamente na região correspondente àquela, no corpo físico, que lhe transmitia tais impressões.

Deste modo, qualquer “desconforto” experimentado pelo Espírito jamais será “físico” ou “sensorial”, mas um reflexo de sensações decorrentes de episódios anteriores. Ao presenciar os cortes em seu corpo, inerte, para a retirada dos órgãos, o indivíduo poderá se lembrar das vezes em que cortou sua pele, em acidentes domésticos ou em cirurgias a que fora submetido, quando em vida. Apenas isso. Lembranças..

Cumpre, ainda, fazer um registro em relação à doação de órgãos do ponto de vista da Moral Espírita, tão propalada e decantada em verso e prosa nas instituições, mas que, por vezes, parece ficar restrita apenas à retórica e à preleção das verdades e orientações. Pouca vivência e muito discurso, não raro. A cátedra de Jesus de Nazaré em suas pregações e exemplificações no cenário daquele tempo se dirige a toda a Humanidade e ela repousa sobre os valores de caridade, solidariedade e tolerância. Em relação ao primeiro, a CARIDADE, o Mestre a posicionou como o mecanismo pessoal de alcance da evolução espiritual. Em dois momentos pontuais, o Sublime Peregrino aponta como caminho para a felicidade espiritual a prática da caridade, depois bem conceituada por Paulo como “o amor em ação”: na parábola da ovelha e dos bodes (Mateus 25: 31-46) e na do Bom Samaritano (Lucas, 10: 25-37). Este referencial teórico-prático é totalmente confirmado e endossado pela Doutrina Espírita, na prescrição contida em “O Evangelho segundo o Espiritismo” (cap. 15, item 5), sob o sugestivo título: “FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO”.

O gesto de doar órgãos, sem sombra de dúvidas, é impulsionado pelo sentimento da mais pura caridade, associada ao de solidariedade fraterna e do afeto em relação aos semelhantes. A prática verdadeira do “amor em ação” paulaíno, quando o ser decide em ser um doador.

Devemos, outrossim, ter certa cautela em relação a obras “tidas como espíritas” que são comercializadas por diversas editoras, assim como manifestações de pessoas que dizem estudar o Espiritismo, inclusive as que venham transmitir “relatos” de “mesas mediúnicas”. Há um componente de desinformação, de confusão, advinda não só da própria natureza imperfeita dos seres que estão encarnados na Terra, quanto dos que eventualmente possam transmitir informações por meio dos médiuns. A condição de desencarnado em nada muda a compreensão e o entendimento da pessoa, nem o faz se tornar sábio, só por ter transporto o portal que leva à verdadeira vida, a espiritual. Via de regra, o desencarnado permanece com seus atavismos e condicionamentos, que só o tempo e o aprendizado, na carne e fora dela, poderá superar.

Retomamos a questão psíquica dos que receberam órgãos transplantados para contextualizar ainda mais a validade do gesto e a sua importância num mundo que caminha para se tornar como de Regeneração. Inúmeras pessoas que foram submetidas a transplantes declararam ter passado por uma real transformação em suas sobrevidas, algo quase radical. Tornam-se, quase sempre, pessoas mais alegres, otimistas e felizes, passando a valorizar mais a vida (e sua continuidade) com todas as suas experiências. Muitos acabam se desprendendo mais facilmente das coisas materiais, passando a dar mais atenção à sua própria saúde e à família, aos amigos, tornando-se pessoas mais solidárias e fraternas. Na segunda chance de estarem vivos neste mundo, aproveitam o seu renascimento!

Também em termos psíquicos, novamente enfocando as experiências mediúnicas, muitos depoimentos obtidos em mesas dão o tom de que os efeitos do ato da doação não cessam nunca. São sempre lembrados pelo beneficiado e seus familiares, em vibrações, mentalizações ou orações, os quais, somados aos lídimos sentimentos de gratidão, emanados pelos envolvidos e alcançam, no Espaço, o benfeitor que decidiu pela doação.

Tudo isto vale para afastar, de pronto, qualquer dúvida em relação a hipotéticos prejuízos ou sofrimentos que, muitos pensam, possam ser experimentados pelo desencarnado, após a efetivação de um ou mais transplantes em favor dos necessitados. Pergunta-se: o perispírito pode se ressentir de dores, no momento das intervenções ou mesmo depois? Há lesão ou lesões no perispírito, passíveis de influenciar problemas físicos em nova encarnação? Não!

A baliza, em termos de Espiritismo, há de ser o contido nas 32 obras de Allan Kardec, submetidas que foram ao método da confirmação e da generalidade, diante da universalidade dos ensinos dos Espíritos. Qualquer informação “nova” ou “complementar”, há de se submeter, pela metodologia espírita indicada por Kardec e por ele experimentada nos quase doze anos de sua efetiva atividade espiritista, a tais princípios.

Conclusivamente, devemos pontuar que o ato voluntário de doação de órgãos para transplantes é um singular e louvável gesto de extremada caridade e solidariedade entre Espíritos e perfila-se entre as realizações espirituais que mais geram benefícios valiosos para o ser em marcha evolutiva.

Razão maior, então, para que os espíritas possam aderir a este comportamento, aumentando consideravelmente o número de potenciais doadores e proporcionando seja possível salvar inúmeras vidas.
Assim como a família de Gugu Liberato, pense, refletia bem e decida consciente e espiriticamente por ser, você também, um DOADOR!

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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+ Marcelo Henrique