Educar: o desafio de libertar

Portal Nova Era resgata entrevista histórica com Rubem Alves, publicada na revista Universo Espírita, em 2008. O escritor fala de educação, filosofia e amor à leitura.

Por Léa Tavares

Não é de hoje que o sistema de ensino se mostra ineficiente em formar seres humanos capazes não só de ler, escrever e fazer contas, mas aptos a refletir sobre o mundo em que vivem. Para mudar essa realidade, segundo Rubem Alves, só plantando nos alunos o desejo de apreender.

Nascido em Boa Esperança, sul de Minas   Gerais, em 15 de setembro de 1933, Rubem Alves formou-se em Teologia no Seminário Presbiteriano de Campinas (SP). É  mestre em teologia pela Union Theological Seminary, de Nova Iorque. Exerceu o ofício de pastor por muitos anos. Contudo, suas ideias – que foram sementes para  Teologia da Libertação – estavam em desacordo com a igreja tradicional e ele  precisou abandonar o ofício.

Uma nova porta abriu-se. A educação passou a ser o principal foco de seu trabalho. “As coisas que as crianças são obrigadas a aprender não fazem sentido. Comecei a questionar: ‘Será que não tem um jeito mais inteligente do que esse?’ . Então foi por amor às crianças que comecei a pensar na educação”, revelou o’escritor que também é formado em Filosofia pela Universidade de Princeton,  EUA, e é professor emérito da Universidade de Campinas (Unicamp).

Para Rubem, o educador deve ser como um jardineiro semeando em seus alunos o desejo de aprender. É o desejo  que gera a curiosidade. Sem o jardineiro não existe jardim; do mesmo modo, se o educador não for capaz de semear o desejo, não existirão alunos com vontade de saber. Qual a conseqüência disso? Uma grave crise no sistema educacional, formando alunos que não sabem ler ou   fazer uma simples soma!

Escritor, acadêmico, teólogo, psicanalista e filósofo, Rubem Alves (1933-2014) tem mais de 100 livros publicados, entre próprios e escritos em parceria, como Ostra Feliz não faz pérola, A Alegria de   Ensinar, Pensamentos que Penso Quando não Estou Pensando, A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir e Fomos Maus Alunos, por exemplo. Numa breve conversa, ele nos presenteou com sua vasta experiência e sabedoria, e falou dos desafios de uma educação libertadora.

O que é educação? 

Aforismo de Willian Blake adaptado “Há escolas que são cisternas; há escolas que são fontes”

O poeta inglês Willian Blake tem um aforismo que diz: “As cisternas contêm; as fontes transbordam”. Peguei esse aforismo e transformei da seguinte forma: “Há escolas que são cisternas; há escolas que são fontes”. Cisterna é um buraco no qual se guarda água, muito úteis no Nordeste, onde há seca. Mas as cisternas não produzem água, é preciso colocar o líquido lá dentro. Há um tipo de educação e de escola que é feito cisterna, pois o que se faz é colocar conhecimentos dentro dos alunos. Entretanto, como esses conhecimentos não são do aluno, mas introduzido lá dentro, o resultado é que eles são esquecidos rapidamente. A   prova disso é que nenhum reitor ou professor de nossas universidades, incluindo eu, conseguiria passar no vestibular. Todos aqueles conhecimentos colocados dentro de nós foram esquecidos, pois não são úteis nem belos.

Há uma outra educação que busca fazer brotar a fonte que existe dentro do aluno. Então, a   tarefa do professor é limpar a fonte,   provocá-Ia para que produza cada vez mais. Essa educação não quer depositar idéias, mas, sim, provocar a inteligência.  O objetivo da educação, segundo eu a   entendo, é provocar a inteligência dos   alunos, pois assim eles saberão adquirir   os conhecimentos que fazem sentido.

 

Essa é a melhor maneira de  aprender? 

Não é a melhor, é a única! Todas as coisas que são simplesmente colocadas dentro de nós inevitavelmente são esquecidas, porque são coisas estranhas. O corpo não aceita coisas estranhas. A única forma de se ter conhecimento é fazer com que o corpo desperte a inteligência. Então ele vai procurar as coisas que lhe são úteis. Só sabemos aquilo que é útil, não sabemos coisas que são inúteis. A memória é como um escorredor de macarrão, uma bacia cheia de furos. Coloca-se a água e o macarrão juntos no fogo. Quando a massa está no ponto, joga-se o espaguete e a água no escorredor. Para quê? Para se livrar da água. O que o escorredor guarda? Guarda o macarrão que é útil e gostoso. A memória é exatamente assim. Ela livra-se de todas as informações que não fazem sentido.

Precisamos ter consciência de que o aprendido é aquilo que resta depois que o esquecimento fez o seu trabalho. Faço até uma brincadeira com os professores. Sugiro que eles num belo dia cheguem a sua classe e digam aos alunos: “Hoje vamos ter uma prova surpresa”. Eles   vão reclamar. Para tranquiliza-Ias, o professor diz: “É coisa fácil, que vocês já sabem!”. Então ele coloca no quadro uma prova que já aplicou para aquela mesma turma um ano antes. Sabe o   que vai acontecer? Os alunos vão tirar zero! Por quê? Porque eles esqueceram! E esqueceram por quê? Porque aquilo  não fazia sentido.

 

Já que falamos da melhor maneira de aprender, qual a melhor maneira de ensinar?   

O bom professor é aquele que provoca  no aluno o desejo de aprender. Se não houver esse desejo não se aprende. A escritora Adélia Prado tem um verso que diz: “Não quero faca, nem queijo; quero é fome”. Se você tiver faca e queijo e não tiver fome, você não come. Se você tiver fome e não tiver a faca nem o queijo, você descobre um jeito de arranjar o queijo. Isso é verdadeiro para o ato de aprender. Se não houver fome, não existe aprendizagem. Então a tarefa do professor é a de seduzir o aluno. Dar aperitivos, provocar, para que o mesmo queira aprender. Não há uma forma de ensinar sem que o aluno   queira aprender.

Como você vê o sistema de educação brasileiro? 

A educação brasileira é uma catástrofe total. Uma das provas disso é que depois de passarem não sei quantos anos na escola, os alunos não gostam de ler. Para mim a coisa mais importante na educação é desenvolver no aluno o prazer da leitura. Algumas pessoas me   perguntam o que fazer para desenvolver o hábito da leitura. Digo: “Nada. Absolutamente nada”. Não se deve desenvolver o hábito de leitura. Hábito é cortar unha, tomar banho, escovar os dentes. Deve- se desenvolver o amor à leitura.

Mas há determinadas práticas nas escolas que destroem completamente o prazer que o aluno pode ter pelo texto. Um exemplo é quando os professores pedem aos  estudantes que façam fichamento. Essa atividade faz com que o aluno odeie os livros. Outra questão é que se gasta   muito tempo com análise sintática.

Do meu ponto de vista, análise sintática é absolutamente inútil, pois não ensina os alunos a ler, não dá o prazer da leitura. Traz apenas uma complicação na cabeça. Então há uma série de coisas  nas práticas escolares que levam os estudantes a detestarem a leitura. Ao invés de dar análise sintática, os professores deveriam gastar tempo lendo para os alunos … Isto, desde que o educador saiba ler. Sei que todos os professores sabem juntar letras em sílabas e sílabas em   palavras, mas ler não é isso. Ler é uma arte que tem que ser aprendida. Os educadores têm de aprender essa arte.

 

Os pais também são responsáveis por despertar nas crianças o amor pela leitura? 

Os pais são de uma responsabilidade total. Uma das formas de despertar no aluno o prazer da leitura é quando ele ainda não é aluno, mas uma criança. O pai ou a mãe vai para o quarto ou para a sala ler para os filhos. Para a criança, o ato da leitura fica sendo uma experiência de aconchego com os pais. Mas atualmente os pais são muito ocupados. Eles têm que ver o jornal na tevê e assistir à novela, de modo que não têm tempo para dedicar aos seus filhos. Depois   reclamam que as crianças não sabem ler. A culpa é dos pais. Freqüentemente digo uma coisa muito feia: “Os pais são os maiores inimigos da educação”. Eles não sabem o que é educação, só estão interessados que os filhos passem no vestibular. Não existe coisa mais sem sentido e prejudicial do que se meter nesse torniquete que é o preparo para o   vestibular. Tudo aquilo que as crianças e adolescentes vão aprender será esquecido muito brevemente. Dois meses depois ninguém guarda aquilo que sabia para fazer o vestibular.

A internet auxilia no processo educativo? 

A internet é um novo meio de comunicação. Não importa se acho ela boa ou má. O fato é que a internet está aí e é uma das  coisas mais importantes de nosso mundo. Pode-se acessá-Ia apenas para procurar “lixo”, mas ao mesmo tempo é um instrumento extraordinário de investigação. A rede mundial de computadores abre-nos um universo imenso de conhecimento,   de arte, de beleza e de informações, permitindo que sejamos muito mais livres do que éramos antes.

Qual a escola de seus sonhos?   

Escrevi um livro A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir sobre a Escola da Ponte, em Portugal (ver quadro na pág. ao lado). Quando visitei-a pela primeira vez quem me mostrou a instituição não foi o diretor, mas uma menina de 9 anos. Assim que fomos apresentados ela me disse: “Para entender a nossa escola, o senhor terá que esquecer tudo o que entende sobre escolas. Não temos professores dando aula. Não temos turmas separadas, nem campainhas separando os tempos de pensar”. Como eles aprendem? Os aluno formam pequenos grupos e escolhem um tema que desejam trabalhar. O que o professor vai fazer? Ele dá as informações bibliográficas e de pesquisa na internet, estabelecendo com os alunos o programa de trabalho, de investigação e de leitura. Por duas semanas, eles lêem, investigam   pesquisam na internet. Todo mundo está  trabalhando. Não tem ninguém dando aulas. Os alunos estão investigando trabalhando e ao final de duas semanas eles reúnem-se para conversar sobre o que aprenderam.

Por que não conseguimos estabelecer esse tipo de educação no Brasil? 

Se tivesse resposta para essa pergunta seria a pessoa mais feliz do mundo. Mas a primeira reação é: “Isso é impossível de acontecer no Brasil”. Então as pessoas já desanimam, pois estão acostumadas com determinado método de ensino e com os programas de aula. Vivendo uma  vida tão difícil, com baixos salários e uma série de outros   problemas, os professores não têm tempo nem tesão de pensar   coisas novas.

Ludwig Wittgenstein: luta contra o feitiço das palavras.

E como se deu seu interesse pela área da educação? 

Não tenho a menor ideia. Tenho um palpite. Fui pastor e uma das tarefas do pastor é comunicar idéias às pessoas; a outra função é a de quebrar o feitiço. Há um famoso filósofo [Ludwig   Wittgenstein] que diz que a filosofia é a luta contra o feitiço que as palavras exercem sobre nós.

As pessoas estão costuradas em palavras, aprenderam coisas religiosas e políticas, estão  amarradas numa rede de palavras. Então é preciso utilizar as   palavras com o objetivo de cortar as malhas dessa rede enfeitiçante. Como pastor, tinha que falar de uma maneira que os   fiéis de minha igreja se livrassem das noções horríveis que a religião tradicional havia colocado sobre eles, com a ideia de inferno, de culpa.

 

Eu era um feiticeiro fazendo contra-feitiços. Então isso é parte da educação. Um educador faz perguntas ao aluno para que ele se livre de rotinas e pensamentos que tem costumeiramente. Então, isso foi parte da minha função como pastor, e também o que me levou a deixar esse ofício, pois as igrejas querem manter as pessoas enfeitiçadas.  Depois comecei a preocupar-me com a educação, quando olhei   para as crianças e vi como elas sofriam nos estabelecimentos   de ensino. As coisas que elas são obrigadas a aprender não fazem sentido. Tudo na escola é contrário à vida das crianças. Comecei a questionar: “Será que não tem um jeito mais inteligente do que esse?”. Então foi por amor às crianças que comecei a pensar na educação.

Durante anos dedicando-se à educação, tem  algum momento que mais o marcou? 

Foi quando visitei a Escola da Ponte e vi que as escolas podem ser completamente diferentes. Esse foi um momento que me   abriu os olhos.

Qual a relação entre leitura e liberdade? 

A leitura é uma experiência de liberdade. Há algum tempo resolvi reler Cem Anos de Solidão [de Gabriel García Márquez].   Foi uma delícia! É só mentira. Aquele livro tem mentira do   princípio ao fim! Por exemplo, uma chuva de flores, onde é que tem chuva de flores? Não existe em lugar nenhum, mas são coisas deliciosas que nos fazem sair da mediocridade do   cotidiano.

A leitura nos retira desse estado e leva-nos para um outro universo, no qual experimentamos uma liberdade que não temos no dia-a-dia. Então entramos no mundo livre da literatura e quando voltamos, estamos prontos para mudar o cotidiano. A leitura é esse processo de nos tirar da mediocridade, da vidinha que levamos, para fazermos viagens por   mundos que desconhecemos.

 

Você tem preferência por algum gênero literário?   

É a mesma coisa que perguntar para uma pessoa se ela tem preferência por algum tipo de comida. Depende. Neste momento estou com vontade de tomar um cafezinho e não estou   com o menor desejo de comer uma costela, mas quem sabe,  amanhã, na hora do almoço posso querer uma costela? Então não tem preferência. Tudo depende da hora. Num momento   quero ler poesia; noutro, um romance ou um aforismo.

O que o motiva a escrever? 

A vida é muito interessante. O mundo é muito interessante. Está cheio de coisas fantásticas. Vejo essas coisas fantásticas que acontecem no cotidiano e me dá vontade de escrever. Se   você perguntasse a um fotógrafo o que o anima a fotografar, ele vai dizer: “O fantástico das coisas”. Eu sou o fotógrafo que usa as palavras para fotografar as coisas. O que escrevo são   fotografias. Escrevo porque gosto. É divertido. Igual a montar quebra-cabeças, dá-me grande prazer e alegria.

Entrevista publicada em edição 60, 2008, da antiga revista Universo Espírita, edição impressa.

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Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.

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