Elegia ao Livro Primeiro

Em homenagem a 18 de abril – Resgatando o “Espírito do Espiritismo”

Marcelo Henrique

Datas são referências importantes para o mundo material, suas convenções e estruturas. Não raro, elas são o portal, o marco histórico para ideias, movimentos ou realizações humanas. E, como os Espíritos participam diretamente das situações da vida dos encarnados (item 459, de “O Livro dos Espíritos”), pode-se dizer que interessam àqueles seres do plano invisível que se relacionam conosco, dado a afinidade que têm em relação às situações que marcam o curso da História deste planeta.

Hoje, portanto, é uma dessas datas. Afinal ela referencia o momento em que os esforços – quase que solitários – de um homem perseverante e audacioso fazia publicar a versão inicial de seus estudos e compilações, já que às suas mãos teriam vindo, nos anos anteriores, um sem-número de mensagens enviadas por pessoas e grupos da Europa e de algumas partes da América do Norte, manuscritos em diversas línguas falando da vida além-morte e ditados por inteligências identificadas (posto que assinavam suas comunicações) ou anônimas. A 18 de abril de 1857, 155 anos atrás, então, o maduro Hyppolité León-Denizard Rivail assumiria para o mundo ocidental uma nova identidade: a de transmissor, pela tarefa de Codificador, de uma “nova luz para a Humanidade”, revelando aos homens a estrutura organizada do Mundo Espiritual, suas Leis e sua interrelação com a vida dos homens, na primeira edição, ainda restrita, com pouco mais de 500 questões, de “O Livro dos Espíritos”. Depois, é fato, iria rever os escritos e publicaria a terceira edição como se conhece hoje, com 1018 (ou 1019 – dependendo do tradutor/editor) perguntas e respostas.

Evidentemente, o trabalho não se resume ao resultado da primeira publicação, ainda que a obra, explicada pelo próprio Kardec como “Filosofia Espiritualistas com Bases Científicas e Consequências Morais”, seja o basilar repositório do conhecimento das “coisas do Espírito” e das relações entre os planos espiritual e material. Como as comunicações espirituais, vindas de diversas fontes, por meio de distintos médiuns e originárias de diferentes Espíritos, continuavam a chegar e a tratar de temas cada vez mais específicos, o plano de trabalho do Codificador importou na concepção de linhas mestras, que enquadravam: 1) a previsão de um laboratório permanente de pesquisas; 2) a definição dos parâmetros e fundamentos da comunicação entre os Espíritos, por meio da Mediunidade, bem como concebendo a fórmula de aceitação das comunicações mediúnicas, por meio do que chamou Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos (CUEE); 3) a apreciação de temas até então exclusivos e privativos das religiões tradicionais, incluindo-se, aí, as máximas morais, as pregações e os feitos de Jesus de Nazaré e os assuntos pertinentes à Divindade; 4) a interconexão do conhecimento “revelado” pelos Espíritos e o progresso das ciências, definindo a progressividade do ensino dos espíritos e alertando-nos sobre o perigo da dogmatização espiritista, que poderia levar ao fanatismo e à ridicularização de determinadas afirmações contidas seja nas obras iniciais seja nas complementares sobre o Espiritismo; e, 5) a interação entre os espíritas, com respeito à liberdade de consciência, individual e peculiar a cada Espírito, e ao livre pensar dentro das organizações de cunho espírita, possibilitando a renovação das ideias, o amadurecimento e desenvolvimento das relações humanas e o exercício prático, crítico e investigativo sobre novas questões à luz dos ensinamentos espirituais.

Assim, foram organizadas e publicadas outras obras, cada qual com sua função, finalidade e importância, num verdadeiro quebra-cabeças ou colcha de retalhos, permitindo ao neófito, ao interessado e ao pesquisador espiritistas o debruçar-se sobre novas verdades, a aplicação do raciocínio prático sobre as questões “da Terra e do espaço” e a apreciação, livre e possível, de qualquer temática da vida humana e espiritual, possível tanto pelo exercício de novos contatos e comunicações com os desencarnados, seja pela utilização da inteligência dos seres encarnados, na construção de teses e trabalhos, desde que obedientes ao edifício de princípios kardequianos (ou espíritas). Um atestado patente, portanto, da necessária interação entre os seres dos Dois Mundos e a contribuição dos espíritas sérios e sensatos, como encarnados, desenvolvendo assuntos de interesse espiritual e espírita.

Estabeleceu, Kardec, as premissas do chamado Laboratório Mediúnico, de pesquisas e resultados, afiançando, primeiramente, que a comunicação espiritual na interação entre os desencarnados e os homens, seja os de mediunidade ostensiva seja os observadores e dirigentes, se processaria de maneira natural e quanto melhor fossem os laços entre os membros dos grupos e instituições que reunissem tais interessados, razão pela qual estabeleceu que a fraternidade entre os espíritas (“amai-vos e intruí-vos”, como teria orientado o Espírito Verdade) seria o laço e a pedra de toque para o sucesso das atividades – incluindo-se, aí, as de comunicação medianímica. A segunda condição foi ouvida por Kardec, de Erasto, um de seus principais guias e orientadores, na baliza que se constituiu fundamental para a seleção das mensagens recebidas pelo Codificador, sua aceitação e publicação, sem qualquer arranhão ao edifício espiritista: “é preferível rejeitar nove verdades a aceitar uma só mentira”, porque indistintas personalidades invisíveis, despertas ou não, adiantadas ou semelhantes a nós, por afinidade, iriam se associar mentalmente aos médiuns para a realização do intercâmbio e a produção de material (psicográfico ou psicofônico), que não poderia, sob nenhuma hipótese, independentemente da importância humana (em face do passado de suas encarnações conhecidas) da pretensa assinatura ou das qualidades e reconhecimentos mundanos do médium, ser aceita sem comparação com os fundamentos do Espiritismo e o exame racional, detalhado e exaustivo de todos os componentes da mensagem.

É justamente neste ponto que o Movimento Espírita, brasileiro em especial, se afastou das diretrizes kardequianas e passou a rejeitar o (difícil e árduo) trabalho de mensuração das comunicações, seja por idolatrar determinados médiuns (muitos dos quais, respeitáveis, em função, principalmente, do trabalho social, assistencial ou de caridade por eles mantidos ou financiados – em especial pelas rendas de direitos autorais das obras de cunho mediúnico), seja por reconhecer, neste ou naquele Espírito, uma condição de adiantamento espiritual talvez não totalmente real, entusiasmando-se, por vezes, com o conteúdo fincado sobre máximas ou parábolas e informações (até então) não conhecidas do público em geral, mas presentes em ciências ou filosofias já desenvolvidas, materialmente, em nosso planeta, como a parafrasear dadas informações, “traduzindo-as” para o público espírita.
Não se tem notícia, por exemplo, da década de 1950 para cá, se os principais médiuns (e seus escritos) teriam sido, em algum momento, submetidos ao CUEE ou a qualquer outro método de aferição e comparação de seus escritos (sobretudo sobre questões não abordadas nos livros publicados por Allan Kardec) com os fundamentos espiritistas, resultando, deste modo, na eleição de determinados espíritos como “complementares” à codificação. Do contrário, tudo o que produziram foi aceito, inconteste. Não precisamos nominar Espíritos ou Médiuns. Qualquer entusiasta e interessado na Filosofia Espírita encontrará referências históricas suficientes para identificar, aqui ou ali, quem teriam sido os eleitos do movimento para a continuidade (?) do trabalho de Kardec. É fato, também, que não podemos, quais descrentes e teimosos, descartar tudo o que foi produzido pós-Kardec, sobretudo em terras brasileiras. Há material suficiente para investigações e exercícios de comparação, como se repetíssemos (ainda que com menor capacidade e estatura) as ações do próprio Prof. Rivail, na seleção das comunicações e no descarte de mensagens apócrifas. Esta atividade, cremos, deveria ser a principal de todo estudioso espírita, não só em relação a escritos referenciados como espíritas, produzidos pelos humanos ou ditados por inteligências desencarnadas, como em relação a todo e qualquer material, mediúnico ou não, que lhe chegue às mãos, trazendo novos conhecimentos, visto que, como bem afiançou o Carpinteiro de Nazaré, “o Espírito sopra onde quer” ou “o vento sopra em toda a parte”, como consta no Bhagavad-Gita.

Os espíritas, neste 18 de abril e nos dias que o seguem, deveriam prestar o maior contributo de gratidão ao trabalho pioneiro do Mestre Lionês, resgatando o “Espírito do Espiritismo”, retomando a práxis recomendada por Kardec para a seleção das mensagens obtidas mediunicamente e para a realização da tarefa de complementação da obra inicial, atualizando-a e permitindo que homens e Espíritos interajam na apreciação de temas de indizível atualidade que marcam os tempos do Século XXI.
Sem esquecer da máxima ofertada pelo próprio Rivail, descrita em “O que é o Espiritismo”, mais especificamente no “Diálogo com o Padre”: “A liberdade de consciência é uma consequência da liberdade de pensar, que é um dos atributos do homem; o Espiritismo estaria em contradição com seus princípios de caridade e tolerância, se ele não a respeitasse”.

Livres, nós espíritas, para assumirmos nossa consciência e para pensarmos, contribuindo com o aperfeiçoamento da Doutrina Espírita e de seu movimento e para buscarmos alcançar, logo aí à frente, o Período Intermediário, superando o atual Período Religioso em que nos encontramos, para lançar as bases do período de Renovação Social (como apresentados na Revue Spirite, dezembro/1863), compromisso da Filosofia Espírita!

A LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA É UMA CONSEQÜÊNCIA DA LIBERDADE DE PENSAR, que é um dos atributos do homem; O ESPIRITISMO ESTARIA EM CONTRADIÇÃO COM SEUS PRINCÍPIOS DE CARIDADE E DE TOLERÂNCIA, SE ELE NÃO A RESPEITASSE

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


Continue no Canal
+ Marcelo Henrique