Fascismo cristão quer desmantelar iluminismo

por Chris Hedges (*)
é formado na escola teológica de Harvard e foi, por quase vinte anos, correspondente estrangeiro para o New York Times. É autor de vários livros, entre estes War Is A Force That Gives Us Meaning, What Every Person Should Know About War, e American Fascists: The Christian Right and the War on America. Seu livro mais recente é Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle.

Dezenas de milhões de cidadãos estadunidenses, reunidos em um movimento difuso e rebelde conhecido como a direita cristã, começam a desmantelar o rigor científico e intelectual do Iluminismo. Eles estão a criar um Estado teocrático, baseado na lei bíblica, e buscam aniquilar a todos aqueles que definem como inimigos. Esse movimento, que vai cada vez mais se aproximando ao fascismo tradicional, procura forçar um mundo recalcitrante à submissão ante uma América imperial. Ele defende a erradicação dos “desviantes sociais”, a começar pelos homossexuais, e avança sobre os imigrantes, os humanistas seculares, feministas, judeus, muçulmanos e aqueles que rejeitam como "cristãos nominais", como são denominados os fiéis que não aceitam a sua interpretação pervertida e herética da Bíblia. Os que se opõem a este movimento de massas são condenados por constituírem uma ameaça à saúde e higiene do país e da família. Todos devem ser expurgados.

Os seguidores das religiões desviantes, do judaísmo ao islamismo, deverão ser convertidos ou reprimidos. Os meios de comunicação desviantes, as escolas públicas desviantes, a desviante indústria do entretenimento, os desviantes governos e judiciários seculares e humanistas e as igrejas desviantes serão enquadradas, ou fechadas. Haverá uma promoção implacável de "valores cristãos", que já ocorre nas cadeias de rádios e televisões cristãs e nas escolas cristãs, com informações e fatos sendo substituídos por formas abertas de doutrinação. A marcha em direção a essa terrível distopia já começou. Isso está acontecendo nas ruas do Arizona, nos canais de notícias a cabo, nos comícios do Tea Party, nas escolas públicas texanas, entre membros de milícias e no interior de um Partido Republicano que está sendo açambarcado por estes lunáticos.

Elizabeth Dilling, que escreveu "The Red Network" (A Rede Vermelha) e foi simpatizante do nazismo, é leitura recomendada por apresentadores de TV trash-talk como Glenn Beck. Thomas Jefferson, que favoreceu a separação entre igreja e estado, é ignorado nas escolas cristãs e em breve será ignorado nos livros das escolas públicas do Texas. A direita cristã passou a saudar a contribuição "significativa" da Confederação sulista [que reunia os estados separatistas durante a Guerra Civil]. O senador Joseph McCarthy, que comandou a caça às bruxas anticomunista na década de 1950, foi reabilitado, e o conflito entre Israel e a Palestina é definido como parte da luta mundial contra o terror islâmico. Leis semelhantes às recém-aprovadas Jim Crow [conjunto de leis que definiam a segregação racial nos EUA] do Arizona estão em discussão em 17 outros estados do país.

A ascensão do fascismo cristão, que temos ignorado por nossa conta e risco, é alimentada por uma classe dirigente liberal[1] ineficaz e falida, que tem se mostrado incapaz de reverter o desemprego crescente, proteger-nos dos especuladores da Wall Street, ou salvar a nossa desafortunada classe trabalhadora das retomadas de casas hipotecadas, da falência pessoal e da miséria. A classe dirigente revelou-se inútil na luta contra o maior desastre ambiental da nossa história, incapaz de encerrar caras e inúteis guerras imperiais ou de parar a pilhagem do país por suas empresas. A covardia dessa classe dirigente e os valores que ela representa acabaram por se tornar injuriados e odiados.

Os democratas se recusaram a revogar as graves violações ao direito internacional e nacional transformadas em lei pela administração Bush. Isto significa que, quando o fascismo cristão ascender ao poder, terá à disposição as ferramentas legais para espionar, capturar, negar habeas corpus e torturar ou assassinar cidadãos estadunidenses, como faz o governo Obama.

As pessoas que vivem no mundo real muitas vezes imaginam que essa massa de descontentes é constituída por bufões e imbecis. Eles não levam a sério aqueles que, como Beck, cultivam seus desejos primitivos de vingança, nova glória e de renovação moral. Os críticos do movimento continuam a empregar as ferramentas da razão, da pesquisa e dos fatos para contestar os absurdos propagados pelos criacionistas, que crêem que boiarão pelados no céu quando Jesus retornar à Terra. O pensamento mágico, a interpretação flagrantemente distorcida da Bíblia, as contradições abundantes em seu conjunto de crenças e a pseudociência ridícula são, no entanto, impermeáveis à razão. Não podemos convencer aqueles que se engajam nesse movimento a despertar. Nós é que estamos a dormir.

Aqueles que abraçam este movimento veem a vida como uma batalha épica contra as forças do mal e do satanismo. O mundo é em preto-e-branco. Eles precisam ver-se, mesmo que imaginariamente, como vítimas cercadas por bandos sombrios e sinistros empenhados na sua destruição. Eles precisam crer que conhecem a vontade de Deus e podem cumpri-la, principalmente através da violência. Eles precisam santificar sua raiva, uma raiva que está no cerne da ideologia. Eles buscam a dominação cultural e política total. Eles estão usando o espaço que a sociedade lhes oferece para destruí-la. Estes movimentos trabalham dentro das regras estritas do Estado secular porque não têm escolha. A intolerância que promovem é suavizada em público por seus operadores mais sagazes. Uma vez que reúnam energia suficiente, e eles estão a trabalhar duramente para obtê-la, tal cooperação desaparecerá. Em seus templos, fica evidente a ideia de construção de uma nação cristã baseada em controle total sobre os indivíduos e na recusa a permitir que qualquer dissidência se manifeste explicitamente. Estes pastores criaram, dentro de suas igrejas, pequenos feudos despóticos, e buscam replicar essas pequenas tiranias em uma escala maior.

Muitas dessas dezenas de milhões de pessoas que hoje se encontram na direita cristã vivem no limite da pobreza. A Bíblia, interpretada por pastores cuja conexão direta com Deus os coloca à prova de questionamentos, é o seu manual para a vida diária. A rigidez e simplicidade de suas crenças são armas potentes na luta contra seus próprios demônios e no combate diário pela sobrevivência. O mundo real, no qual Satanás, os milagres, o destino, os anjos e a magia não existem, golpeia-os como a troncos de árvore em um rio. Leva seus empregos e destroi o seu futuro. Este mundo apodreceu as suas comunidades e inundou as suas vidas com álcool, drogas, violência física, privação e desespero. E então eles descobriram que Deus tem um plano para eles. Deus vai salvá-los. Deus intervirá em suas vidas para promovê-los e protegê-los. A distância emocional que separa o mundo real do mundo da fantasia cristã é imensa. E as forças seculares e racionais, aquelas que falam a língua dos fatos e dados, são odiadas e temidas, em última instância, porque puxam os fiéis de volta para a “cultura da morte” que quase os destruiu.

Há contradições selvagens neste sistema de crenças. A independência pessoal é exaltada ao lado de uma subserviência abjeta aos líderes que afirmam falar por Deus. O movimento diz que defende a santidade de vida e defende a pena de morte, o militarismo, a “guerra justa” e o genocídio. Ele fala de amor e promove o medo da condenação e o ódio. Há uma dissonância cognitiva aterrorizante em cada palavra que proferem.

O movimento é, para muitos, um salva-vidas emocional. É tudo o que os une. Mas a ideologia, que rege e ordena suas vidas, é impiedosa. Aqueles que dela se desviam, como "apóstatas" que deixam as organizações da igreja, são marcados como heréticos e submetidos a pequenas inquisições, que surgem como conseqüência natural de movimentos messiânicos. Se o fascismo cristão vier a conquistar os poderes republicanos, as pequenas inquisições pouco a pouco se tornarão grandes.

O culto da masculinidade permeia o movimento. Os crentes são levados a pensar que o feminismo e homossexualidade tornaram o homem estadunidense física e espiritualmente impotente. Jesus, para a direita cristã, é um vigoroso homem de ação, que expulsa demônios, luta contra o Anticristo, ataca hipócritas e castiga os corruptos. Este culto da masculinidade, com sua glorificação da violência, é profundamente atraente para aqueles que se sentem impotentes e humilhados. Ele transmite a raiva que levou muitas pessoas para os braços do movimento. Ele os incita a chicotear aqueles que, dizem, procuram destruí-los. A paranóia sobre o mundo exterior é alimentada através de bizarras teorias da conspiração, muitas delas defendidas em livros como o de Pat Robertson, “The New World Order", uma tirada xenófoba que inclui ataques contra os liberais e as instituições democráticas.

A obsessão com a violência permeia os romances populares como o escrito por Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins. Em seu apocalíptico “Glorious Appearing” (Glorioso Aparecimento), baseado na interpretação própria de LaHaye das profecias bíblicas sobre o Segundo Advento, Cristo volta e estripa a carne de milhões de não-crentes com o som de sua voz. Há descrições longas de horror e sangue, de como “as palavras do Senhor haviam superaquecido seu sangue, fazendo com que estourassem suas veias e pele. Olhos se desintegraram. Línguas derreteram. A carne se dissolveu.” A série Left Behind (Deixados para Trás), à qual pertence este romance, é a mais vendida para adultos no país.

A violência deve ser usada para purificar o mundo. Os fascistas cristãos são chamados a um permanente estado de guerra. “Qualquer ensinamento de paz antes do retorno [de Cristo] é uma heresia…” diz o televangelista James Robinson.

Os desastres naturais, ataques terroristas, a instabilidade em Israel e até mesmo as guerras no Iraque e no Afeganistão são vistos como indícios gloriosos. Os fiéis insistem que a guerra no Iraque está prevista no nono capítulo do Apocalipse, onde quatro anjos “que estão presos no grande rio Eufrates serão libertados, para matar a terça parte dos homens.” A marcha é inevitável e irreversível e exige que todos estejam prontos para lutar, matar e talvez morrer. A guerra mundial, até mesmo nuclear, não é para ser temida, mas sim celebrada como precursora do Segundo Advento. À frente dos exércitos vingadores virá um bravo e violento Messias que condenará centenas de milhões de apóstatas a uma morte terrível e horripilante.

A direita cristã, enquanto abraça o primitivismo, procura legitimar suas mitologias absurdas nos marcos do direito e da ciência. Seus membros o fazem, a despeito de suas idéias retrógradas, porque se constituem em movimento totalitário distintamente moderno. Eles tratam de cooptar os pilares do Iluminismo, a fim de aboli-lo. O criacionismo, ou o “projeto inteligente”, assim como a eugenia para os nazistas ou a “ciência” soviética de Stalin, deve ser introduzido no mainstream como uma disciplina científica válida – daí, portanto, a reescrita dos livros didáticos. A direita cristã defende-se no jargão jurídico-científico da modernidade. Fatos e opiniões, a partir do momento em que são utilizados “cientificamente” para apoiar o irracional, tornam-se intercambiáveis. A realidade não é mais baseada na coleta de fatos e provas, e sim, baseada em ideologia. Fatos são alterados. Mentiras se tornam verdades. Hannah Arendt chamou a isso “relativismo niilista”, embora uma definição mais adequada pudesse ser “insanidade coletiva”.

A direita cristã tem, assim, o seu próprio corpo de “cientistas” criacionistas que usam a linguagem da ciência para promover a anticiência. Ela lutou, com sucesso, para ter seus livros criacionistas vendidos em livrarias como a do parque nacional do Grand Canyon e ensinados nas escolas públicas de estados como Texas, Louisiana e Arkansas. O criacionismo molda a visão de centenas de milhares de estudantes nas escolas e faculdades cristãs. Esta pseudociência alega ter provado que todas as espécies animais, ou pelo menos seus progenitores, couberam na arca de Noé. Contesta as pesquisas sobre a AIDS e a prevenção da gravidez. Ela corrompe e desacredita as disciplinas de biologia, astronomia, geologia, paleontologia e física.

No momento em que os criacionistas podem argumentar em pé de igualdade com geólogos, afirmando que o Grand Canyon não foi criado há 6.000.000.000 de anos, e sim há 6.000 pela grande enchente que ergueu a arca de Noé, estamos perdidos. A aceitação da mitologia como uma alternativa legítima à realidade é um duro golpe para o Estado racional e secular. A destruição dos sistemas de crença racional e empiricamente fundamentados é essencial para a criação de todas as ideologias totalitárias. A certeza, para aqueles que não podem lidar com as incertezas da vida, é um dos apelos mais poderosos do movimento. A desapaixonada curiosidade intelectual, com suas correções constantes e sua eterna procura de provas, é uma ameaça às certezas. Por isso, a incerteza deve ser abolida.

“O que convence as massas não são fatos”, Arendt escreveu nas “Origens do Totalitarismo”, “nem sequer a invenção dos mesmos, mas apenas a coerência do sistema de que presumivelmente fazem parte. A repetição, com sua importância um pouco exagerada devido à crença difundida na capacidade inferior das massas de compreender e lembrar, é importante porque as convence de que há uma consistência ao longo do tempo”.

Santo Agostinho definiu a graça do amor como Volo ut sis – Desejo que sejas. Há – escreveu – uma afirmação do mistério do outro nas relações baseadas no amor, uma afirmação de diferenças inexplicáveis e insondáveis. As relações baseadas no amor reconhecem que os outros têm o direito à existência. Essas relações aceitam a sacralidade da diferença. Esta aceitação significa que nenhum indivíduo ou sistema de crenças apreende ou defende uma verdade absoluta. Todos se esforçam, cada um à sua maneira, uns fora dos sistemas religiosos e outros dentro deles, para interpretar o mistério e a transcendência.

A sacralidade do outro é um anátema para os cristãos de direita, que não reconhecem a legitimidade de outras formas de ser e de pensar. Caso se reconheça que outros sistemas de crenças, inclusive o ateísmo, têm uma validade moral, a infalibilidade da doutrina do movimento, que constitui o seu principal apelo, é destruída. Não pode haver formas alternativas de pensar ou de ser. Todas as alternativas devem ser esmagadas.

Debates teológicos, ideológicos e políticos são inúteis com a direita cristã. Ela não responde a um diálogo. É impermeável ao pensamento racional e à discussão. As tentativas ingênuas de aplacar um movimento voltado à nossa destruição, através de provas de que nós, também, temos "valores", só reforça a sua legitimidade e a nossa própria fraqueza. Se não temos o direito de ser, se nossa existência não é legítima aos olhos de Deus, não pode haver diálogo. A esta altura, trata-se de uma luta pela sobrevivência.

As pessoas arregimentadas para o fascismo cristão lutam desesperadamente para sobreviver em um ambiente cada vez mais hostil aos seus olhos. Nós falhamos e estamos em dívida para com eles e não o contrário: esta é sua resposta. As perdas financeiras, o enfrentamento da violência doméstica e sexual, a luta contra os vícios, a pobreza e o desespero que muitas delas têm de suportar são trágicas, dolorosas e reais. Elas têm direito à sua raiva e alienação. Mas elas também estão sendo usadas e manipuladas por forças que buscam desmantelar o que resta da nossa democracia e eliminar o pluralismo que um dia foi um marco da nossa sociedade.

A faísca que poderá atear as chamas deste movimento pode estar adormecida nas mãos de uma pequena célula terrorista islâmica. Pode estar nas mãos de gananciosos especuladores de Wall Street que jogam com dinheiro do contribuinte no elaborado sistema global do capitalismo de cassino. O próximo ataque catastrófico, ou o colapso econômico seguinte, podem ser o nosso incêndio do Reichstag[2]. Pode vir a ser a desculpa empregada por essas forças totalitárias, este fascismo cristão, para extinguir o que resta da nossa sociedade aberta.

Não nos deixemos ficar humildemente aos portões da cidade, esperando que os bárbaros apareçam. Eles já estão chegando. Eles estão indo tranquilamente para sua Belém. Deitemos fora nossa complacência e nosso cinismo. Desafiemos abertamente o establishment liberal, que não irá nos salvar, para exigir e lutar por reparações econômicas para a nossa classe trabalhadora. Vamos reintegrar esses despossuídos em nossa economia. Vamos dar-lhes uma esperança real para o futuro. O tempo está se esgotando. Se não agirmos, os fascistas estadunidenses, empunhando cruzes cristãs, agitando bandeiras nacionais e orquestrando corais do Juramento à Bandeira[3], usarão essa raiva para nos destruir a todos.

(*) Chris Hedges é formado na escola teológica de Harvard e foi, por quase vinte anos, correspondente estrangeiro para o New York Times. É autor de vários livros, entre estes War Is A Force That Gives Us Meaning, What Every Person Should Know About War, e American Fascists: The Christian Right and the War on America. Seu livro mais recente é Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle.

Notas:

[1] Nos EUA, o termo “liberal” corresponde à definição dada, aqui, a “social-democrata”.

[2] Episódio que precipitou a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha.

[3] Em inglês, Pledge of Allegiance. Trata-se da cerimônia de juramento de fidelidade ao país e à bandeira dos EUA.

 

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