Feudos de si mesmo

Esperança é não temer.

Por Manoel Fernandes Neto

Um dos grandes muros que existem no desenvolvimento de grupos sociais, intelectuais e de trabalho – incluídos, claro, casas espíritas – é a construção de “feudos de si mesmo”. Democráticos, com certeza. Pessoas de todas as idades e estágios antropológicos tornam-se vassalas do ego e das ilusões; assumem, sem perceber, que “são do mundo”(1).

Mas o que são feudos, na acepção do termo? No feudalismo (2), um nobre senhor de latifúndios, também chamado de suserano, doava a uma pessoa uma área de suas terras em troca de serviços políticos e militares. Esses juramentos se mantinham por décadas.

Na analogia que aplicamos aqui, não se trata da formação de grupos afins dentro das sociedades de objetivos comuns. Idéias afins são bem-vindas. Objetivos também. Nós nos organizamos com aqueles com que temos comunhão de pensamento; em seguida, debatemos com outros grupos, e isso leva à permuta de conceitos e idéias e a uma bem-vinda mutação delas. A unidade prevalece.

“Feudos de si mesmo” são muralhas erguidas em torno de nós. De cada ser, encarnado ou desencarnado. Nele, o vassalo enxerga o que lhe convém. Ou o que convém às armadilhas surgidas da utilização de personas (3) incontroláveis do seu dia-a-dia. Um atavismo não rediscutido de suas crenças – sociais, políticas, filosóficas – forma grades que aprisionam o seu self (4). Não é difícil detectarmos esses feudos e listarmos alguns exemplos.

Nos feudos da auto-suficiência, nos fechamos naquilo que achamos que sabemos e não ouvimos mais ninguém, mais nada, apenas esperamos para falar. Não refletimos, descartamos o contraditório. Pode ocorrer por excesso de estudo, com pouca compreensão e aplicação. Assumimos um pseudo-saber diante das situações.

Outros bem conhecidos são os feudos do martírio, quando achamos que somente o sofrimento vai trazer o nosso progresso. Confundimos aprendizado com dívidas. Equívocos com pecados. “Como está?” – é a pergunta. “Estou indo”, é a resposta. Um gerúndio sofredor e conformado.

Também existe o feudo da estagnação e do conformismo, um dos mais delicados e que pode comprometer o aprimoramento do trabalho em grupo. Os termos-chave são sutis e revestidos de um verniz traiçoeiro: “não adianta fazer”, “tudo já foi tentado”, “não tem jeito”. Inconscientemente, quem está preso a este “feudo de si mesmo” torce pelo fracasso das iniciativas ao seu redor; o êxito dos outros comprometerá o restrito mundo concebido em torno de si.

Todos esses feudos depõem contra o que estudamos na Doutrina Espírita, em que aprendemos que o aprendizado é também formado por erros, para depuração do espírito; do contrário, teríamos sido criados em “condições melhores”. “Se não houvesse montanhas, o homem não compreenderia que se pode subir e descer, e, se não houvesse rochedos, não compreenderia que há corpos duros”. (5)

Construir “feudos de si mesmo” e tentar que as pessoas próximas também os construam é adotar dogmas de atitudes que focam somente nas mazelas do passado, sem disposição e coragem de avançar, de derrubar muros, libertar seus sentimentos para o início do processo de renovação, tão necessário para descobrirmos que o amanhã existe.

Sim, o futuro é Deus, que abrange todas as questões universais e filosóficas. Deus, também compreendido entre nós com o nome de Esperança, que impregna a nossa consciência, porque é um atributo do espírito, que, como força da natureza, sabe que só pode avançar. “O tratamento espiritual de toda a alma frustrada em seus projetos reencarnatórios deve ser a esperança. Na terra, comenta-se com exatidão que a esperança deve ser a última que morre. Aqui, nosso lema é a esperança deve ser a primeira a renascer. Depois disso, partimos para as conquistas em outros patamares emocionais”, diz o espírito Cícero, no livro Lírios da Esperança (6).

A mesma esperança dos pescadores ao puxar suas redes; dos cidadãos e cidadãs na busca incansável por um teto próprio; da futura mãe que acaricia o ventre; do aprendiz ao elaborar um novo pensamento lógico; do professor confuso, mas feliz diante de uma equação. Esperança da criança à espera do domingo no parque; do idoso no aguardo de uma palavra de compreensão. Esperança dos povos em busca de abastança; do Planeta em busca de Paz.

Deus é esperança, porque é movimento. Criatividade. Não se isola em si mesmo, mas é percebido em milhões de formas diversas, para o bem do progresso, que não se acovarda nem precisa de isolamento. “Curta é a vida, longo é o tempo, e a Verdade intemporal aguarda a todos no impassível Limiar do Eterno. O homem é incoerência e paixão, labareda esquiva que se apaga nas cinzas, mas o espírito é a centelha oculta que nunca se apaga e reacenderá a chama quantas vezes for necessário, para que a serenidade, a coerência e o amor o resgatem na duração dos séculos e dos milênios”, nos entusiasma o professor Herculano Pires (7).

Feudos de si mesmo devem ser rompidos, à medida que nos aprofundarmos no estudo da nossa essência espiritual. Temer apresentar a verdadeira face – ou uma mais verdadeira – vai obscurecer a esperança necessária para prosseguirmos em nosso aprendizado. Em nossas experimentações cotidianas, com entusiasmo e coragem, como as palavras de Cairbar Schutel (8): “Atravessamos a existência na Terra como o soldado atravessa um campo de fogo e de sangue, e os bravos e os fortes de espírito cravam nas muralhas o seu estandarte e levantam o grito de vitória; isto o que nos ensina o Espiritismo com a sua consoladora Doutrina”.

1- “Estar no mundo sem ser do mundo”. João 15:19.

2- O feudalismo foi um modo de organização social e político, que passou a vigorar em algumas regiões da Europa a partir do século IX.

3- Na Psicologia Analítica, de Jung, é dado o nome de persona à função psíquica relacional voltada ao mundo externo, na busca de adaptação social.

4- Segundo Jung, o principal arquétipo é o Si-mesmo (ou Self). O Si-mesmo é o centro de toda a personalidade. Dele emana todo o potencial energético de que a psique dispõe. É o ordenador dos processos psíquicos.

5- Questão 634 de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec.

6- Lírios de esperança – Ermance Dufaux, por Wanderley S. de Oliveira.

7- Na obra O Espírito e o Tempo.

8 – Da obra Parábolas e Ensinos de Jesus.

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12.2007

        

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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