Herculano, o metro de Kardec

Marcelo Henrique Pereira

“Herculano é o metro que melhor mediu Kardec”. Emmanuel

A conversão de José Herculano Pires ao Espiritismo já demonstrava o grande caráter de sua personalidade e a qualificação de sua presença no meio espírita: católico de formação até os 15 anos de idade, o jovem de Avaré (SP) foi guiado pela necessidade do raciocínio lógico e aplicado, a fim de conhecer melhor as “coisas do mundo”, passando antes pela Teosofia até acessar, pela vez primeira em face de um desafio proposto por um amigo, o conteúdo de O livro dos espíritos, em 1936, aos 22.

Precocemente, revelou sua veia literária (um soneto, aos 9, sobre o Largo São João, sua terra natal, depois, com Sonhos azuis – contos, aos 16, e Coração – poemas livres e sonetos, aos 18 anos de idade). Com 32 anos, publicou O caminho do meio, seu primeiro e mais elogiado romance e aos 44, licenciou-se em Filosofia com a tese “O ser e a serenidade” (depois, também, publicada como livro).

Se pudéssemos adjetivar Herculano lhe atribuiríamos a combatividade como sua maior marca. Numa época em que, ainda, o Espiritismo procurava o “seu chão” para fincar raízes, tanto em termos filosófico-doutrinários como sócio-assistenciais, o professor denunciou e bradou forte e claramente contra todo e qualquer desvio, tentativa de adulteração e desconfiguração do edifício kardequiano, sendo, ainda, o interlocutor favorito dos programas de rádio e TV para debater com clérigos, parapsicólogos e cientistas, sobre questões transcendentais. Muitos destes programas, ainda hoje, chamam a atenção do público espírita para a “contundência serena” de Herculano que, mesmo contrariando cada linha de seus opositores, nunca confundiu idéias com pessoas, mantendo-se sempre fraterno e cordial com todos os que conviveram com ele nestes ambientes. Percebendo, ainda, que grassavam, aqui e ali, mesmo no seio de instituições e federações espíritas, ervas daninhas ardilosamente plantadas, foi o primeiro a combater as adulterações que, vez por outra, eram articuladas e desenvolvidas, sobretudo para alterar a tradução dos livros de Kardec – que conhecia bem, por ter sido versado em francês, tradutor e comentarista de edições brasileiras – ou para achincalhar a memória de companheiros (vivos ou desencarnados), como, por exemplo, o próprio Chico Xavier, com quem manteve sólida e duradoura amizade, além de ter escrito, com o médium de Uberaba, algumas obras bastante interessantes do ponto de vista da análise criteriosa das comunicações mediúnicas. Crítico mordaz e irreverente, do movimento espírita e do catolicismo, com quem debateu a vida quase toda, nunca deixou de lado o bom humor e a bem-querência no trato interpessoal. Um exemplo, também por isso.

Homem múltiplo, na definição de seu biógrafo e amigo Jorge Rizzini (recém-desencarnado), conseguiu conciliar a trajetória espírita com atividades profissionais no âmbito do magistério, da filosofia, da parapsicologia, do jornalismo e do sindicalismo, foi servidor público (Banco do Brasil), além de ter atuado na esfera político-governamental, por diversas vezes. Participou do Governo Jânio Quadros, em São Paulo e chegou a colaborar na (meteórica e polêmica) gestão deste político à frente da Presidência da República, como chefe do subgabinete da Casa Civil (1961).

Produzia tanto e com inegável e inigualável qualidade, que, a seu respeito, dizia sofrer de grafomania, pois escrevia dia e noite. Publicou em torno de 85 livros (dos quais 62, espíritas) e mais de 15 mil laudas, sobre as mais variadas temáticas (Filosofia, Ensaios, Histórias, Psicologia, Parapsicologia e Espiritismo).

Conferencista ardoroso, com uma prodigiosa memória quanto às citações das obras fundamentais em suas exposições, foi, ainda, escritor e articulista de mão cheia, nunca, entretanto, esteve de braços dados com a Federação Espírita Brasileira, talvez porque a contundência de suas manifestações não fosse o perfil desejado pelos dirigentes da Casa-Máter, sob os auspícios de Ismael e porque Herculano nunca aceitou, antes deixou sempre consignada a sua divergência com a federativa pela adoção de princípios e teses roustenistas naquela Casa e pela insistência na edição de Os quatro evangelhos. Mesmo assim, mereceu o status de Kardec brasileiro, de reconhecimento aos inúmeros serviços prestados à Doutrina Espírita tendo, entre seus livros, aquele que foi democraticamente escolhido em processo de consulta, O espírito e o tempo como o “livro espírita do século XX”, ao lado de O problema do ser do destino e da dor do pensador francês León Denis. A obra, que recomendamos a leitura e o estudo é um verdadeiro Tratado Antropológico do Espiritismo, base para a consideração da Mediunidade como base cultural da História da Humanidade.

Jornalista, colaborou com periódicos (jornais, revistas e boletins) e dirigiu, durante seis anos o jornal Diário Paulista, tendo sido redator, secretário, cronista e crítico literário, alcançando a respeitável marca de 2 mil artigos em 12 periódicos.

Pedagogo e Educador, foi responsável, através de várias iniciativas, pela difusão da Educação Espírita como cadeira pedagógica, sendo o primeiro daqueles que propugnaram pela existência de Faculdades Espíritas. Editou e lançou (1970) a revista “Educação Espírita”, construída sobre o paradigma “o educando é um espírito encarnado”, lamentavelmente de curta duração, pela falta de apoio e o desinteresse dos espíritas e a dificuldade, inclusive, de participação dos pedagogos espíritas, sem interesse em produzir artigos e matérias para o periódico. Isto fez com que Herculano adotasse quase uma dezena de pseudônimos – muitos dos quais conhecidos até hoje, em razão de incursões do professor em órgãos noticiosos, assinando como tal – dos quais o mais famoso era Irmão Saulo.

Herculano foi, sem dúvida, um cientista espírita, daqueles que arregaçam as mangas e se debruçam, ávida e responsavelmente, sobre os fenômenos espíritas, buscando-lhes a robustez de sustentação, na aplicação do método e da metodologia próprios e naturalmente adequados, por meio da sintaxe da exposição objetiva de fatos e argumentos e da semântica do desenvolvimento lógico e racional. Defendeu, veementemente, a permanente aproximação da Ciência Espírita com as ciências humanas, mas com uma fraternal advertência: “Todos sonham com o momento em que a Ciência deverá proclamar a realidade do espírito. Mas essa proclamação jamais será feita, se a Ciência Espírita não atingir a maioridade, não se confirmar por si mesma, podendo enfrentar virilmente, no plano da inteligência e da cultura, a visão materialista do mundo e a concepção materialista do homem” (Artigo “Uma tomada de consciência”).

De sua existência física, vivida intensamente, sobressaem os caracteres de seu Espírito imortal: profundidade e coragem, sobretudo para a edificação de pontes permanentes e sólidas entre o conhecimento espírita e as vertentes da cultura contemporânea.

Curioso é que as mesmas superstições que eram consideradas por Herculano, jovem, como impeditivas a que ele se interessasse pela Doutrina Espírita, muitas vezes, figuram presentes nos dias de hoje, em face de tanta acomodação e desinteresse dos espíritas pelo estudo, abrindo campo propício às adulterações, inserções de teorias e práticas esdrúxulas, além, é claro, da perigosa e prejudicial visão personalista daqueles que insistem em “interpretar” a seu talante as questões da vida, dispostos a encontrar e a proferir “soluções milagrosas” para os problemas existenciais. Nunca tivemos profusão tão grande de obras ditas espíritas, mas que não guardam a menor sintonia com os princípios genuinamente kardequianos, do mesmo modo que a regra de aprovação de mensagens “ditas” espirituais, foi completamente abandonada por instituições e editoras, seja por comodismo, por não desejarem causar melindres ou, até, seduzidas pelos lucros das vendagens de obras que “encantam” pela fantasia e misticismo.

Religioso, por tradição, formação e excelência, Pires sempre alertou os adeptos espiritistas do risco que o igrejismo salvacionista, o fanatismo e a mitificação (idolatria de guias, médiuns e/ou dirigentes) poderiam causar à proposta libertária do Espiritimo. Tanto é que, veementemente, pontua: “Os beatos das religiões dogmáticas trocaram de pele mas não perderam suas manhas. Substituíram os ritos católicos pelos passes e preces, a água benta pela água fluídica e os rosários de repetições medrosas pelos colares de contas de ifá, na magia primitiva das religiões mágicas da selva, negras e indígenas” (O mistério do ser ante a dor e a morte).

Herculano, se vivo estivesse, com certeza estaria à tribuna e à pena jornalística, desafiando tal qual Dom Quixote, elegantemente, aqueles a quem chamava de “detratores do Espiritismo”, para que se explicassem e se posicionassem “fora” do espectro espiritista. Não havia meio termo ou meias palavras, para o filósofo, ainda que, neste sentido, não fosse necessário, a ele, atuar com grosseria, aos berros e sem caridade. Nada mais o deixava tão profundamente irritado, perplexo e receoso do que a adesão dos pretensos espíritas às novidades “de ocasião”. E elas, as novidades, continuam por aí, a atrair aqueles que não têm, para com a Doutrina Espírita, o mínimo compromisso com o estudo, a prática e o raciocínio lógico aplicado, nem, tampouco, com a universalidade dos ensinos espíritas, critério inafastável de Kardec. Era o “zelador do Espiritismo”.

Herculano nos provoca a doce e agradável saudade, sempre que o revisitamos em cada leitura, sempre que republicamos, em nosso periódico (a Revista Espírita Harmonia, criada em 1987), algumas de suas linhas, como sinal e expressão de alerta àqueles que desejam um Espiritismo plural, permanente, alteritário e produtor das grandes transformações evolutivas (individuais e coletivas). Este é o maior legado que ele nos deixou, um talento que devemos fazer multiplicar, como recomendou aquele Carpinteiro de Nazaré.

Ler e estudar Herculano e, sobretudo, entendê-lo e aplicá-lo no cotidiano de nossas instituições e no seio de nosso movimento, é o maior sinal de que as sementes que ele lançou vicejaram e já produzem frutos, a cem por um.

Esteja sempre conosco, nos inspirando, Professor!

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Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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