Mal-aventurados os hipócritas

O que uma foto de um pai com o seu filho pode despertar.

Marcelo Henrique

Dois mil e vinte. Ano da peste. Mas, também, ano da exacerbação dos miasmas interiores, muitos deles putrefatos, em estado de adiantada decomposição. Os organismos naturais possuem defesas e as próprias células buscam expulsar aquelas que se encontram malsãs, por instinto de conservação biológica. Ou, diante dos avanços da medicina humana, drogas são ministradas para recuperar os corpos, dando-lhes, novamente, a condição do equilíbrio.

Mas, para certas doenças, a ciência dos homens não possui recursos. Elas estão sediadas no self, no anima, no Espírito, e, ensina-nos o Espiritismo, haverão de ser extirpadas pela ação íntima, individual, intransferível, motivada pelo conhecimento de si mesmo e, consoante a prédica oportuna de Kardec, destinada a “domar as más inclinações”.

Há muitos, muitos mesmo, doentes. E há os que aparentam saúde, mas escondem graves doenças. E há os doentes que não se reconhecem como tal, porque se enxergam em outrem, e tudo aparenta normalidade ou adequação “social”. Esta “normalidade aparente” se reflete em comentários familiares, em “piadinhas”, no torcer o nariz, na cara-feia, ou, neste momento de isolamento social forçado, em “teses” malfeitas de “professores-doutores” em sociologia, psicologia, sexualidade e quejandos. E em asquerosos comentários que misturam ideologia política – de qualquer matiz – com as situações do cotidiano desta terceira década de novo milênio.

Como disse o médico Dráuzio Varella, sabiamente, se o senhor ou a senhora está preocupado com quem o seu vizinho ou a sua colega de trabalho, ou aquele amigo ou a prima distante se deitam… Olha, meu amigo, minha amiga, você precisa se tratar!

 

A turba ensandecida, vez por outra, elege seu alvo preferido e, como consta da fábula cristã, prostitutos (ou não) são apedrejados em praça pública para saciar a sede de (in)justiça da plebe. Não importa o nível social, o grau de instrução, a origem, a nacionalidade, a religião, a profissão ou o sobrenome. Muitos se acotovelam no desejo de “conformar” a ordem aos seus míseros pensamentos de ocasião.

E, como sói acontecer frequentemente, na semana seguinte, os acusadores voltam para suas vidinhas cinzas e prosseguem em busca do próximo a ser apedrejado, por linchamento público – quase sempre, no “conforto da poltrona dos apartamentos, com a boca escancarada cheia de dentes”, para lembrar Raulzito. Ou seja, sem riscos e sem (quase) exposição e responsabilização.

O mote deste sensível artigo é a campanha publicitária de uma empresa de perfumaria e similares, que escolheu, para celebrar – e vender produtos, claro! – o dia dos pais (mais uma data comercial para a indústria e os lojistas, sabemos, mas sem esquecer o valor da presença paterna, neste caso, em nossas vidas), uma transexual: Tammy Gretchen. Recentemente ela e a companheira tiveram um bebê, lindíssimo por sinal, e, então, comemora o casal o seu primeiro dia dos pais, conjuntamente.

Triste porque era de se esperar que a Humanidade já tivesse suplantado as imposições de suas conveniências quanto ao comportamento dos outros. E que o quadrante da sexualidade só importasse a cada um de per si e daquele(s) com quem A ou B se relacionasse.

Mas a liberdade de ser incomoda. E muito… As pessoas transferem suas mazelas emocionais, suas frustrações, suas mágoas e ressentimentos e, também, o efeito das castrações diversas que, ao longo da presente existência, foram submetidos, aos outros, de quem invejam a felicidade (ainda que momentânea, expressa no belíssimo cartaz da campanha, por exemplo). E se falamos em castração, devemos encampar a emocional, a sentimental, a paternal-maternal, a familiar, a do núcleo de amizades, a da escola, a do trabalho, a da vizinhança, a do clube social, a do transporte coletivo, a do supermercado ou shopping, e tantas outras mais num (quase) infinito leque.

Vejo pessoas abismadas, se cutucando e cochichando, fazendo caras e bocas ou, até, dizendo em voz alta, “que pouca vergonha”, para dois rapazes em carinhos públicos ou duas mulheres de mãos dadas, ou para uns e outros, trocando um afetuoso abraço ou beijo. Parece que o amor “fora de convenções” e “normalidades” incomoda os que não conseguem amar. Ou, talvez, os que, pela castração imposta, nunca conseguiram manifestar suas verdadeiras essências. E nem serem, comprovadamente, felizes.

Não quero, claro, generalizar. Nem sempre o que se indigna com a forma escolhida pelo outro para viver a sua sexualidade é um homossexual “enrustido”. Mas, em muitos casos, inclusive pela atenção psicológica ou de psicanálise que possa se dar a muitos exemplares dos que agridem qualquer homossexual, se permite divisar as frustrações e as imposições a que, intimamente, se submeteram ou a exigência de outrem a que se conformaram.

 

Uso outra metáfora, a do espelho, para simbolizar àqueles que desejariam ser e não são, deveriam agir e não o fazem, deveriam experimentar, porque se afinizam, mas não o fazem, em razão dos estereótipos majoritários vigentes em nossa sociedade. Tentam corrigir no outro aquilo que não conseguem corrigir, plenamente, em si mesmos.

E me entristeço. Porque vejo que, como disse o poeta local, “qualquer maneira de amor vale a pena”, e os poetas britânicos, “tudo o que necessitamos é o amor” (all you need is love, love is all you need).

Falta amor, em substância, em essência, em virilidade, em sensibilidade, em completude, em totalidade. Falta a coragem de amar. E a atitude de fraternidade e solidariedade de alegrar-se com o amor de outrem. Algo que soa como estar feliz por ver a felicidade de alguém.

Quem sabe, então, soe mais natural e possível, a fala daquele pescador de homens, de que o que fizéssemos a cada um dos circunstantes, sobretudo aos “pequeninos” (desamparados, vítimas do preconceito vil, da grosseria gratuita, da incompreensão por não saber amar, ou da hipocrisia de projetar uma sociedade perfeita, com peças individuais imperfeitas, mas, livres), estaríamos fazendo a nós mesmos, e ao próprio Mestre dos Mestres.

 

Posso, ainda, buscar o nosso professor de Espiritismo, para ansiar pelo momento em que os “Espíritas de Alma” sejam majoritários e expressem em cada ato, o “instruí-vos e amai-vos”, porque da instrução, que é a compreensão lógico-racional do sentido da existência e do progresso dos Espíritos, decorrerá um amor mais sublime, que se calca no respeito incondicional, atemporal e sem necessidade de pálida justificação.

Parabéns, Tammy! Parabéns a todos os pais que exercem genuína e permanentemente, como eu, a feliz experiência, nesta encarnação, a Paternidade!

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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+ Marcelo Henrique