O primeiro será sempre o primeiro

Visão atual da Rua De Valois, local onde funcionou a primeira sede da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Por este local Allan Kardec andava quase diariamente em busca da concretização da missão de sua vida: a Codificação Espírita. *Foto publicada no Veículo de Comunicação da USE – União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo

O “primeiro centro espírita do mundo”, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, fundado em abril de 1858.

Marcelo Henrique

INTRODUÇÃO

Datas são símbolos importantes para a vida do Espírito, quando encarnado. Costuma-se guardar o registro das mais significativas. Tanto no caráter pessoal, em relação a nós e as pessoas mais caras, quanto outras, no contexto social em que se vive. O dia em que você começou em uma atividade ou trabalho. O dia da formatura. O do casamento. O nascimento dos filhos. Entre muitos outros.

No Espiritismo, não é diferente. São importantes todas as datas informadas por Allan Kardec em sua trajetória espírita, isto é, no período entre 18 de abril de 1857 e 31 de março de 1869.

Neste artigo, vamos lembrar uma data muito significativa para o movimento dos espíritas.

A Kardec coube, digamos, a honra de, por suas mãos, como criador da Doutrina Espírita (em parceria, claro, com médiuns e Espíritos de diversas localidades), estabelecer o “primeiro centro espírita do mundo”, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas – SPEE (Société Parisienne des Études Spirites). A partir dela e dos conceitos proclamados por Kardec nas orientações contidas em diversas de suas obras e na Revue Spirite, foram aparecendo outras, por toda a Europa e no continente americano. E, também, diversas instituições que já funcionavam na prática do intercâmbio mediúnico regular, foram adquirindo a “cor” de entidade espiritista.

Foi o Codificador da Doutrina Espírita quem instituiu, assim, “um centro regular de observações”, para analisar os fenômenos mediúnicos e dialogar, maieuticamente, com as Inteligências Superiores. Em uma dissertação contida na sua revista, do mês de maio de 1858, Kardec explica acerca da criação da entidade:

“A extensão, por assim dizer, universal que tomam, cada dia, as crenças espíritas, fazem desejar vivamente a criação de um centro regular de observações; essa lacuna vem de ser preenchida. A Sociedade, da qual estamos felizes por anunciar a formação, composta exclusivamente de pessoas sérias, isentas de prevenção, e animadas do desejo sincero de se esclarecerem, contou, desde o início, entre seus partidários, homens eminentes pelo saber e posição social. Ela está chamada, disso estamos convencidos, a prestar incontáveis serviços para a constatação da verdade. Seu regulamento orgânico lhe assegura homogeneidade sem a qual não há vitalidade possível; está baseada na experiência de homens e de coisas, e sobre o conhecimento das condições necessárias às observações que fazem o objeto de suas pesquisas. Os estrangeiros que se interessam pela Doutrina Espírita encontrarão, assim, vindo a Paris, um centro ao qual poderão se dirigir para se informar, e onde poderão comunicar suas próprias observações”.

 

Mas, antes que registremos a data da primeira reunião – e instalação da SPEE – permitam-nos tecer algumas considerações em tempos pregressos a esta singular data.

OS FENÔMENOS, SUA OBSERVAÇÃO E A CRIAÇÃO DE UMA SOCIEDADE

Inicialmente, em 1854, Rivail foi convidado e convencido pelo amigo Fortier, a participar de reuniões familiares, nas casas das Sra. Roger e da Mme. Plainemaison, onde ocorriam fenômenos mediúnicos – as mesas girantes. Foi aí que se convenceu da natureza inteligente daqueles eventos, iniciando o estudo, sério, metódico, detalhado e profundo, em que observava experimentalmente os “transes”, para deles recolher impressões e elementos. Depois, passou a colocar em ordem os dados recebidos pela fenomenologia mediúnica (psicografia, principalmente, e psicofonias, por transcrição) porque, por sugestão de Fortier e tendo em vista sua vasta experiência como professor, autor literário e pesquisador, a ele foram confiados os originais dos registros das sessões. Assim foi, até ele publicar, em abril de 1857, a primeira edição, ainda simplificada, de “O Livro dos Espíritos”, com 501 questões.

Após as sessões em que Kardec compareceu, como convidado, e tendo se convencido da veracidade, utilidade e do caráter superior do intercâmbio mediúnico, ele mesmo destinou a sala central de sua residência, à Rua dos Mártires (Rue des Martyrs), para onde acorriam oito a dez pessoas, às terças-feiras, bem informalmente, mas já com os requisitos de seriedade e prudência. Depois, com o aumento de interessados, Kardec pensou em transferir as reuniões para um local maior e, assim, introduzir alguns aspectos de caráter organizacional-formal, os quais, depois, seriam bem detalhados como orientações aos interessados, em suas obras. Kardec, inclusive já estava ultimando, entre o final de 1857 e o início de 1858, o Estatuto Social da futura sociedade. Na ocasião, já se espremiam na sala do casal Rivail-Kardec duas dezenas ou mais de pessoas, que formavam o “Círculo Parisiense de Estudos Espíritas”, primeira denominação dada por Kardec ao grupo.

Entretanto, a França da segunda metade do século XIX vivia tempos turbulentos, sendo necessário descrever sucintamente o contexto histórico-social da França, sob o regime do Imperador Napoleão III. Em 14 de janeiro de 1858, um revolucionário nacionalista italiano, de nome Félix Orsini, perpetrou um violento atentado contra o governante que, por pouco, não lhe tirou a vida. Orsini foi condenado à morte e executado, na guilhotina, em 13 de março.

Este episódio fez com que o Império editasse a “Lei de Segurança Nacional” (de 19 de fevereiro daquele ano), a qual não permitia a reunião de mais de vinte pessoas em espaço fechado. Assim, o Estatuto da recém-criada SPEE teve de ser submetido ao severo regime das autoridades, o que levou as mesmas a manterem em permanente supervisão as atividades realizadas na sociedade, sobretudo em face do objeto e do nome da entidade e dos seus componentes.

Na época, a autoridade responsável era o General Espinasse, que ocupava o cargo de Ministro do Interior e de Segurança Geral da França (entre fevereiro e junho de 1858). Os trâmites burocráticos foram conduzidos pelo Sr. Dufaux, membro da SPEE, que mantinha estreita relação com o Prefeito de Polícia de Paris, o qual interviu junto ao Ministro. Kardec não sabia, mas Espinasse já era simpatizante e entusiasta da causa espírita, graças aos constantes diálogos e às leituras sugeridas por Dufaux, que costumava presentear o mesmo, pelas mãos do delegado, com obras e fascículos da Revue Spirite.

Então, o tempo médio para a expedição da licença, que era normalmente de três meses, no mínimo, acabou sendo reduzido para quinze dias. A autorização foi dada em 31 de março, e no dia seguinte, 1º de abril, a entidade foi instalada. Depois, o documento de autorização, com as formalidades legais, foi devidamente entregue por Dufaux a Kardec: “Portaria do Sr. Prefeito de Polícia, conforme o aviso de S. Exa. Sr. Ministro do Interior e da Segurança Geral”, datado de 13 de abril”.

Este lugar, então, se converteu na verdadeira Tribuna de Kardec, o palco de inúmeros e sucessivos – porquanto valiosos – diálogos com o invisível, assim como proveitosos momentos de estudos e debates de aprendizado entre os encarnados, levando o Codificador a afirmar com júbilo e exaltação: “A Sociedade, cuja formação temos o prazer de anunciar, composta exclusivamente de pessoas sérias, isentas de prevenções e animadas do sincero desejo de esclarecimento, contou, desde o início, entre os seus associados, com homens eminentes por seu saber e por sua posição social […] chamada a prestar incontestáveis serviços à constatação da verdade”, afirmou ele. Esses homens e mulheres eram Didier, Rose, D’Ambel, Delanne, Leymarie, Eugénie, Hue, Stephanie e Costel, além do casal Rivail-Kardec.

 

O Estatuto (ou regulamento) da entidade, então, era constituído por 29 artigos que tratavam dos objetivos e fins, da constituição, dos sócios, da administração, das sessões e de outras disposições (oportunamente inserido no Capítulo XXX de “O Livro dos Médiuns”, justamente para confirmar e solidificar a mais destacada atividade de uma instituição espírita: a mediúnica, composta não só do intercâmbio com os desencarnados, mas o estudo das leis que regem a fenomenologia, a avaliação das comunicações, sua seleção e posterior publicação, para ciência e aprendizado de todos).

O FUNCIONAMENTO DA SPEE

Foi, então, neste local que a Sociedade permaneceu por um ano, de 1º de abril de 1858 a 1º de abril de 1859, com as reuniões ocorrendo às sextas-feiras, em um dos salões do Restaurante Douix (Doce), no Palais-Royal (Palácio Real), na galeria Montpensier (nome de uma comuna, uma localidade na França). Depois, a SPEE pôde se instalar em um local próprio, na Passage Sainte-Anne (Passagem Santa Ana), 1º andar, onde funcionou de 1860 até 30 de março de 1869.

Ainda sobre o referido General, consta que ele foi transposto para outras funções, tendo coordenado o sangrento combate da região de Magenta (hoje pertencente à província de Milão, Itália), onde veio a falecer em combate. Para o júbilo de Kardec e os membros da sociedade, no entanto, seis dias após sua morte, em reunião mediúnica na SPEE, Espinasse se manifestou e declarou a todos sua condição de espírita, surpreendendo, inclusive, o Codificador. Que registro!

No IV Congresso Espírita Mundial, realizado em Paris de 2 a 5 de outubro de 2004, em comemoração ao Bicentenário de Nascimento do Codificador, foram apresentados alguns documentos inéditos e pessoais do Codificador, entre os quais o pedido (ofício) dirigido à autoridade policial competente.

O texto dizia o seguinte: “Ao Sr. Prefeito de Polícia da cidade de Paris. Sr. Prefeito: Os membros fundadores do Círculo Parisiense de Estudos Espíritas, que solicitaram junto a vós a autorização necessária para constituir-se em Sociedade, temos a honra de pedir-vos que consintais permitir-nos reuniões preparatórias, enquanto esperamos a autorização regular. Com o mais profundo respeito, Sr. Prefeito, tenho a honra de ser vosso muito humilde e muito obediente servidor, H. L. D. Rivail, dito Allan Kardec. Rua dos Mártires nº 8.”

Organizada e devidamente autorizada, cumprindo rigorosamente as exigências do Império francês, a Sociedade Parisiense foi crescendo e servindo de quartel-general para as produções literárias que foram, aos poucos, ganhando corpo e se tornando conhecidas, não só na Europa como nas Américas. Kardec, detalhista, fazia questão de, periodicamente, publicar um relatório sobre as atividades da entidade, as quais podem ser apreciadas pela leitura do “Boletim” (da SPEE), usualmente inserido na Revista Espírita.

 

Exemplificativamente, em abril de 1862, no seu quarto aniversário, ela contava 87 (oitenta e sete) associados pagantes e recebia, em média, mil e quinhentos visitantes por ano. Entre seus membros, estavam cientistas, literatos, artistas, médicos, engenheiros, advogados, magistrados, membros da nobreza, oficiais do exército e da marinha, funcionários civis, empresários, professores e artesãos.

Registre-se, ainda, que Kardec teve a iniciativa de criar um Regulamento que tratava dos fins, administração, sessões, entre outras disposições da sociedade, e exigia extrema seriedade dos participantes, o que deu sólida credibilidade à instituição.

A SPEE, então, é de fato a primeira instituição espírita autêntica do mundo, com fulcro na observação dos fenômenos, no estudo e na difusão (veiculação) das ideias espíritas. Dizemos autêntica porque ela foi o locus onde Kardec pôde pôr em prática todas as iniciativas de organização, controle e supervisão das atividades práticas em Espiritismo. E, com a experimentação, com a rotina, pôde efetuar correções e aperfeiçoamentos, editando, sempre que possível orientações gerais para grupos similares, espalhados por todo o mundo.

É claro que existiam muitas sociedades fundadas anteriormente. Mas, nenhuma delas, possuía ainda o “caráter espírita”, porque a Doutrina dos Espíritos não tinha sido codificada. Tais instituições eram, então, sociedades em que se faziam sessões experimentais de mediunismo – porque havia médiuns – mas sem qualquer tipo de orientação metódica e sistematizada, em termos doutrinários e filosófico-científicos, nos moldes espíritas.

O QUE A HISTÓRIA TEM A NOS ENSINAR

Foi na SPEE que Rivail-Kardec trabalhou árdua e disciplinadamente durante onze anos seguidos, em exemplo de dedicação e renúncia. Herculano Pires, filósofo e escritor espírita brasileiro, acentua na obra “Ciência espírita e suas implicações terapêuticas”, que a revolução espiritual adveio pelo Espírito de Verdade, que assumiu a titularidade da autoria espiritual do Espiritismo, mas a ciência espírita (revelação humana) foi obra de Kardec, que a ela se dedicou de corpo e alma, para despertar os maiores pensadores de seu tempo (e, quiçá, do nosso, também), para a divulgação e a reflexão acerca da realidade dos fenômenos espíritas e do conteúdo da doutrina.

Outro célebre estudioso e escritor espírita, Deolindo Amorim, também afirmou que a instituição fundada por Kardec foi a primeira sociedade genuinamente espírita, funcionando durante muitos anos na Passage Sainte-Anne. Tratava-se de um apartamento simples, com área de 40 m2, com quatro cômodos (um dormitório, uma sala, um banheiro e uma cozinha, onde se situava a entrada principal). Este também foi o local que Kardec destinou à redação da Revue, por quase onze anos.

Kardec esteve à frente da Sociedade até a data de seu falecimento. Em razão disso, Malet assumiu, para o período 1869-1870, a direção da entidade, tendo como membros da diretoria, Levent, Canaguier, Ravan, Desliens, Delanne e Tailleur. Malet, segundo informou Levent, era o candidato de preferência de Kardec, caso, um dia, ele não mais pudesse assumir tal encargo. A posse do novo presidente, cujo discurso foi transcrito no número de maio, ocorreu no dia 9-4-1869.

Hoje em dia se sabe que a SPEE passou por muitas dificuldades, após o falecimento do Codificador, tanto econômico-financeiras quanto doutrinárias, assim como de relacionamento entre seus membros, e a vaidade e o orgulho – chagas que Kardec, por orientação das Inteligências Invisíveis, sempre combateu. Não havia mais a serenidade, a temperança e a atuação firme do Codificador e, atualmente, já se conhece os rumos que o movimento francês acabou, infelizmente, tomando.

 

Um elemento precisa ser sempre enaltecido, quando se vislumbra o real papel de Kardec em relação à doutrina. Muitos há que tentam reduzi-lo a um mero “secretário ou redator” das informações trazidas pelo Espíritos Superiores. Ou, até, dizem que a doutrina é “dos Espíritos”, como se Rivail fosse um ser à parte. A presença do cientista e pedagogo no processo de criação, formalização, metodização e organização das instituições espíritas, a partir da SPEE, é desconhecido ou esquecido propositalmente. Isto porque o Codificador, após descortinar a visão panorâmica do mundo espiritual, tomou medidas significativas como a de estabelecer um rito seguro e rígido de pesquisar da realidade espiritual, estudando e formatando os procedimentos mais adequados para o relacionamento com os desencarnados e, também, de difusão dos ensinos dos Espíritos superiores.

O Codificador era, também, extremamente rigoroso em relação ao cumprimento da disciplina nas reuniões e dos dispositivos estatutários, exigindo de todos seriedade no trato com os Espíritos e fraternidade entre os membros e visitantes. Prudente e austero nos pareceres exarados sobre o teor das comunicações, nunca permitiu que a Sociedade se tornasse arena de controvérsias e debates estéreis.

Nesta data em que lembramos essa heroica iniciativa do homem Rivail-Kardec, entendemos que conhecer os fatos históricos relativos à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e, especialmente, os seus objetivos e finalidades, revisitando-os, por meio das publicações contidas na Revue Spirite, é de crucial importância para qualquer espírita. E, pontualmente para os dirigentes espíritas, para a tarefa de avaliar as ações e, principalmente, os rumos da instituição pela qual são responsáveis, em termos de ser, ela, não apenas no nome, no letreiro e na fachada, uma legítima representante do Espiritismo.

 

NOTA:

Lembremos que Kardec, com a humildade que sempre lhe caracterizou, nunca afirmou, categoricamente que a SPEE teria sido o “primeiro centro espírita do planeta”. Na Revue Sprite, de abril de 1868, o Professor relatou que, antes do lançamento da obra basilar espírita (“O livro dos Espíritos”, considerado o marco inicial da Doutrina Espírita), na cidade de Cádiz, Espanha, já havia um grupo espírita organizado. Diz Kardec: “Os espíritas de Cádiz reivindicam para a sua cidade a honra de ter sido uma das primeiras, senão a primeira na Europa, a possuir uma reunião espírita constituída, e recebendo comunicações regulares dos Espíritos, pela escrita e pela tiptologia, sobre temas de moral e de filosofia. Tal pretensão é, com efeito, justificada pela publicação de um livro impresso em espanhol, em Cádiz, em 1854”. Todavia, até mesmo considerando ser a Mediunidade uma circunstância atemporal, que remete aos primórdios da existência do homem na Terra, os espíritas sensatos consideram que 18 de abril de 1857, data do lançamento da obra primeva, é o referencial para se considerar uma instituição como espírita e que o registro da sociedade parisiense (SPEE) nos órgãos competentes, iniciando-se as reuniões regulares, fazem-nos considerar a mesma como, afinal, o “primeiro centro espírita do Mundo”.

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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