Para descobrir que suas cãs estavam cada vez mais longas
Um conto para tempos de isolamento.
Por Manoel Fernandes Neto
Mais uma vez o cartaz estava fixado. Ou nunca havia saído dali, já amarelado, colado na porta, já gasto pelo tempo: dizia que o retorno dos trabalhos da casa seria informado “pelas redes”. Mas seu celular mal dava para atender ligações, como receberia os tais comunicados?
Perto dos 76 anos, aposentado, solteiro convicto. Um perfil padrão do senhor cidadão, dentro do tom: pagador de impostos, eleitor. Hoje, irrigava a vida com a alegria e a esperança, uma vez por semana, nas palestras, na visita à livraria do centro, nos abraços fraternos, nas conversas de outro mundo. E que mundo para ser compreendido!
Estava, sim, um pouco triste a respeito desse isolamento social, mas ele queria mesmo era sobreviver ao pesadelo. Vírus perigoso, um conhecido de uma prima já tinha morrido. Não tinha plano de ser o próximo ou de voltar ao mundo espiritual, como tantas vezes já ouvira na casa ou nos livros que comprava no sebo ou emprestava da biblioteca.
Gostava de ler obras psicografadas espíritas. Em muitas delas, encontrava uma linguagem um tanto rebuscada. O que poderia ser dito em uma frase tomava um parágrafo inteiro, às vezes uma página. Mas ele tinha tempo, não se importava de forma alguma. Compreendia que os espíritos, muito deles antigos, careciam de uma linguagem mais popular, moderna, simples, comum, coloquial. Por outro lado, esses textos o ajudavam a melhorar seu próprio vocabulário. E não era pouca coisa. Sempre com a ajuda de um dicionário, descobriu, por exemplo, “que suas cãs estavam cada vez mais longas por estar quase três meses sem um barbeiro.”
Não quer voltar para a tal “pátria espiritual” tão cedo, não mesmo; por mais que as descrições sejam atraentes, belas, de cidades, casas, bairros, sabe também que tudo isso está relacionado com as construções da mente de cada um, o melhor e pior de cada pessoa ou espírito. Ele não é bobo, não. É velho mas compreende bem as coisas. E sua mente ainda é poço de reminiscências. Nem sempre saudáveis.
Por isso mesmo, não quer esse retorno. Não quer ficar preso no emprego que perdeu injustamente depois de décadas de dedicação, nem na mágoa daquele primo que não conseguiu perdoar, nem ser obrigado a reencontrar falsos amigos que tanto o decepcionaram. A lista é interminável. Não, não. Prefere ficar por aqui mesmo, com pandemia e tudo. Com máscara e luvas doadas por uma enfermeira do posto de saúde.
Toma todos os cuidados. Procura ir no mercado em horários de pouco movimento, faz tudo de uma forma cadenciada e, quando chega em casa, limpa todas as embalagens de mantimentos. Limpa com cuidado a garrafa de vinho que toma durante a semana, um “luxo” que não abandonou. E toma até mesmo depois dos evangelhos semanais. Um cálice, às vezes dois. “Pela obra do Cristo,” brinda a cada gole.
Confessa que às vezes perde o sono. Mas sente a presença de todos amigos que partiram há algum tempo. Talvez, quando voltar ao lado de lá, ele ainda os encontre. Ou não. É tudo tão imprevisível que prefere cuidar-se no lado de cá, sem muita afobação.
Isso mesmo, reafirma: um pouco de cada vez, com o máximo de senso de justiça que conseguir, como dizia seu saudoso pai. Só isso já bastaria para uma vida sensata; uma existência saudável. De uns tempos pra cá, arriscou algumas memórias, em escritos à mão, lembranças constantes. Quase no fim de um desses cadernos, nas noites em que perde o sono, relê, com os olhos marejados e os óculos vencidos, os passados embolorados e os futuros que não ocorreram; mesmo assim, o coração é tomado de esperança de que tudo, “tudo vai dar certo”, frase que leu em um outdoor de propaganda de um grande banco ali na esquina da rua do centro espírita.
Um dia, sonhou com um mundo melhor, sem líderes e liderados, sem opressores e oprimidos desesperados por empatia. Um lugar sem ódios, ignorância e violência. Um mundo igual aos livros espíritas, com finais felizes. Um mundo repleto de palavras tenras, de gentilezas, elegâncias, sorrisos sinceros. Um sonho tão real que não quis levantar naquela manhã. Isso sim era um lugar perfeito para viver. Mas era um sonho, só poderia ser.
Manoel Fernandes Neto é jornalista e escritor. Curador de conteúdo. Editor do portal Nova Era, e diretor de CMM Interativa. Acesse também www.manoelfernandesneto.com.br
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