Por detrás do nome, o homem

Marcelo Henrique

Cerca de dois anos atrás ouvi falar das filmagens de “Kardec: a história por detrás do nome”, uma produção nacional com a direção e roteiro de Wagner de Assis (que assina conjuntamente com L. G. Bayão), tendo como personagens principais Leonardo Medeiros (Kardec) e Sandra Corveloni (Amélie-Gabrielle), filme baseado no livro “Kardec, A Biografia”, de Marcel Souto Maior.

Ao longo destes meses, manifestei grande expectativa em torno da exibição da película, em redes de cinemas por todo o país, como ocorre agora, em português, feita por brasileiros e, notadamente, direcionada ao público que vive no Brasil. Vale lembrar que o papel de Rivail-Kardec como Codificador do Espiritismo, como “pai biológico” da Doutrina dos Espíritos, já havia sido objeto de outras produções, estas no formato documentário. O que não ocorre agora, posto que a proposta é o romance (classificado como drama e mistério), com os atores revivendo fases da vida do personagem principal – e de todos os demais que gravitam no seu entorno – baseadas no levantamento jornalístico e biográfico feito por Marcel.

Como toda obra de ficção, embora baseada em fatos reais, há a chamada “licença poética” para a apresentação das cenas com a poesia característica, tanto de quem escreveu o roteiro, como de quem encena as distintas situações contidas na história escrita. E é esta licença que, me parece, perturbar em excesso muitos dos espíritas que dizem conhecer relatos sobre a vida e a atuação espírita (1857-1869) do professor francês. A perturbação, inclusive, alcança o status de paixão, com manifestações severas direcionadas ao filme e ao seu roteirista-diretor.

Fui ao cinema conhecendo, de antemão, algumas destas “críticas” e comentários, tanto positivos quanto negativos acerca do enredo, porque o filme já havia sido exibido em pré-estréia e ocupa a programação das redes de salas cinéfilas desde o último dia 16 de maio, tendo sido assistido por muitos que se dizem espíritas. Mas, mesmo assim, sentei na poltrona e, após intermináveis propagandas e trailers, o filme enfim começou.

León e Gabi são assim referenciados, reciprocamente, por praticamente toda a trama, o que confere um ar de cumplicidade e benquerência que, imaginamos todos nós que conhecemos, – ainda que alguns mais superficialmente – seja a “marca” do casal Kardec, responsável pelo trabalho espírita originário. O carinho e o amor, correspondentes, conferem especial enlevo às cenas e ao contexto de gestação, nascimento e crescimento da Filosofia Espírita em terras francesas. Gabi ganha uma condição de esteio e confidente e, também, de aconselhamento e apoio incondicional, para a epopeia de trazer ao mundo uma “revolução”, baseada nas ideias da sobrevivência e da comunicabilidade dos Espíritos. Revolução para o pensamento científico, filosófico e religioso, claro!

Principia o filme pelas dificuldades enfrentadas pelo célebre Prof. Rivail, na cátedra em escolas francesas, diante da interferência do clero na educação, sob a concordância do imperador Napoleão III, que desembocam em seu pedido (antecipado e, até, precoce) de aposentadoria. Os dissabores daquele homem prosseguem com a dificuldade de encontrar alunos para a cátedra em sua residência, sobretudo os que pudessem pagar pelos estudos. Rivail, inclusive, retoma sua atividade de contador, para auferir rendas extras, já que a crise econômica na França da metade do Século XIX era profunda e duradoura.

Os receios do professor em não conseguir manter sua família e a impossibilidade de continuar ajudando os mais pobres, moradores de rua dos arredores são preocupações que atormentam a sua existência, demonstrando os primeiros traços, no filme, de sua natural HUMANIDADE, que é esquecida por grande parte daqueles que se interessam pelo homem por detrás de sua missão de Codificador – ainda não iniciada, neste momento temporal, retratado nas cenas, mas, somente, adiante. Os declaradamente espíritas e os simpatizantes, assim, parecem plasmar uma atmosfera irreal, de tranqüilidade e de apoio espiritual e material para as ações cotidianas daquele expoente do ensino, notoriamente conhecido em território francês, o que não era realidade. Todavia, os alunos e as oportunidades contábeis acabam, aos poucos, surgindo.

Em paralelo, começam a ser descritos, na narrativa, as circunstâncias que vão aproximar o magnetizador e homem de ciências, León Rivail, de uma realidade que irá modificar por completo sua existência, seus valores, suas “crenças” e suas ideologias, moldadas desde a sua formação épica no Instituto Yverdun, de Pestalozzi. Vale lembrar que Rivail se iniciou neste novo ramo de conhecimentos humanos, o Magnetismo Animal (Mesmerismo), em 1823, e chegou a se tornar experiente magnetizador, figurando ativamente nos quadros da Sociedade de Magnetismo de Paris, a mais importante da França. Destarte, os espetáculos de teatros e grandes salões, com as mesas girantes e batedoras, que respondem às perguntas da curiosidade dos públicos que pagam por tais atrações “circenses” começaram a se tornar populares. Ainda em 1854 foi que Rivail ouviu, pela vez primeira, da parte de seu colega magnetizador Fourtier, acerca das “mesas girantes”. Tais situações são tratadas com ceticismo, desconfiança e um pouco de ironia pelo cientista parisiense. Eis mais um traço potente de sua característica humana, de Espírito encarnado, a dúvida, a hesitação inicial, o questionamento constante.

 

Rivail é – e a história conhecida contida nas várias biografias ESPÍRITAS sobre o nosso professor assim enquadram – abordado por conhecidos seus, em especial o amigo Didier, e aquiesce em comparecer a sessões familiares em que pessoas recebem mensagens dos mortos. E passa a trabalhar com afinco para descobrir a causa inteligente por detrás do efeito inteligente, isto é, as mensagens produzidas, inicialmente por meio da cesta de bico (psicografia indireta) e, depois, presenciando os “transes” mediúnicos de distintas mulheres: Madame Plainemaison, Julie e Caroline Baudin, e Ruth-Celine Japhet. As três são personagens destacadas na trama de Assis, retratando a importância que tiveram nos dias iniciais do Espiritismo a partir da pesquisa e do trabalho do professor.
É neste ponto que Rivail vira Kardec, assumindo um codinome que remonta às suas vivências encarnatórias anteriores. Diante do maravilhoso, mas com explicações lógicas e racionais, Rivail-Kardec passa a conceber o sistema espírita, reúne material produzido sob seus olhos, agrega os derivados das correspondências que lhe chegam de várias partes da Europa (principalmente), e estabelece o método de seleção dos conteúdos, baliza fundamental da Doutrina: o Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos (CUEE).

Um Rivail entusiasmado passa a respirar o Espiritismo praticamente 24 horas ao dia. E começa a relatar aos seus mais próximos acerca do critério de apreciação e seletividade das mensagens, descrevendo a maiêutica que utiliza para a obtenção de maiores detalhes sobre cada uma das temáticas, a partir de comunicações antes recebidas. Aprofunda, um a um, os temas e os preceitos, compondo uma base principiológica que lhe faz afastar, com base no exame lógico-racional, as mensagens assinadas até mesmo por vultos históricos, mas que desprovidas de conteúdo capaz de serem alinhadas aos elementos essenciais, bem como aquelas egressas de inteligências astutas, mas imorais, ou, então, pouco iluminadas mas gracejantes, que visavam colocar em erro a proposta espiritista.
Quantas vezes fraquejou o homem Kardec? Muitas. E a película mostra um homem com propostas e objetivos claros, mas enfrentando obstáculos interiores e exteriores. As interiores, decorrentes de sua consciência e suas limitações – sim, todo Espírito encarnado as possui, e os espíritas muitas vezes as relevam ou olvidam, quando se trata de vultos da Humanidade – e as exteriores, derivadas seja do ceticismo materialista – presente, inclusive, na associação científica que Rivail integra e para a qual desejou apresentar seus resultados – dos ataques da imprensa sensacionalista, ou, ainda, da intolerância religiosa, auto considerada como donatária das questões espirituais, que se sentia ameaçada em seus dogmas e estruturas, pela existência de uma (nascente) doutrina que começa a tratar das questões que elas, as religiões, até então se declaravam como intérpretes.

Kardec desafia tudo isso. Mas não sucumbe. Mensagens assinadas, por exemplo, por São Luís eram vistas com espanto e revolta pelos líderes religiosos franceses, lembrando que a autobiografia, póstuma, deste vulto havia sido proibida pelo governo. Também um atentado contra o Imperador, levou-o a decretar a Lei de Segurança Geral, em 14 de janeiro de 1858, recomendando às autoridades policiais a vigilância máxima para evitar novos ataques. Este contexto e cenário podem ter provocado, certa feita, a detenção do Professor Rivail, como encenada na película. É fato que nenhuma das biografias conhecidas salienta a condução coercitiva de Rivail ao cárcere, ainda que somente por uma ou duas noites, como está no filme. Mas ela pode, sim, ter ocorrido, tanto pela questão político-social de notória gravidade quanto em razão dos embates – com postura sempre respeitosa do professor, saliente-se – com os clérigos regionais. Afinal, à época, reuniões privadas – como as organizadas por Kardec – eram vistas com muita reserva e suspeita.

Não é demais lembrar que, à época, Estado e Religião andavam, ainda, de braços dados e que o Papa Pio IX, desde 1846, tinha deflagrado uma campanha contra o “falso liberalismo”, direcionada a toda e qualquer iniciativa ou doutrina considerada como cristã destinadas a “tentar explicar a Bíblia”.

Kardec ainda “duelou” pela imprensa com o representante da religião romana, o abade François Chesnel, por algum tempo, até 1859, refutando as críticas e as acusações direcionadas ao Espiritismo, primeiro como uma religião e depois como fruto de embustes, já que, para o sacerdote, as mensagens não deveriam ser dos mortos, mas dos próprios “médiuns”, que só falariam de fatos já conhecidos. Kardec, com conhecimentos do Magnetismo, do Sonambulismo e de outras expressões fenomenológicas, jamais acusou ou desqualificou as críticas, respondendo com vigor mas com elegância, desconstituindo as argumentações: “Será por efeito do sonambulismo que uma mesa responde com precisão às perguntas que lhe são feitas e até as perguntas mentais?” – questionou ele, em artigo num periódico de Paris.

E como o momento era de afirmação da “verdade cristã” que tinha no clero romano o seu representante e algoz, Kardec fez questão de afirmar repetidamente os laços entre Espiritismo e Cristianismo, apelando para os valores morais e para as práticas de solidariedade, caridade e benevolência cristãs: “quantos incrédulos enfurecidos ele já encaminhou […] quantas vítimas arrancou ao suicídio […] quantos ódios acalmou, aproximando inimigos”, declarou Rivail. O abade ainda insistiu ser, o Espiritismo, uma religião e os médiuns, sacerdotes dessa nova ordem. Sem sucesso.

Vale lembrar que, em face dos regulamentos vigentes na capital parisiense, a associação (Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas – SPEE), inicialmente improvisada e já reunindo duas ou mais dezenas de pessoas na Rua de Martyrs, número 8, teve de ser submetida a um processo de legalização, com muitas formalidades, em que o apoio da família Dufaux, ligada ao império, foi fundamental. A autorização só veio em 1º de abril de 1858, para funcionamento na Rua Montpensier, 12, na galeria Valois, no Palis-Royal, lugar que se converteu na tribuna de Kardec, o palco de inúmeros e sucessivos – porquanto valiosos – diálogos com o invisível, levando o Codificador a afirmar com júbilo e exaltação: “A Sociedade, cuja formação temos o prazer de anunciar, composta exclusivamente de pessoas sérias, isentas de prevenções e animadas do sincero desejo de esclarecimento, contou, desde o início, entre os seus associados, com homens eminentes por seu saber e por sua posição social […] chamada a prestar incontestáveis serviços à constatação da verdade”, afirmou ele. Esses homens e mulheres eram Didier, Rose, D’Ambel, Delanne, Leymarie, Eugénie, Hue, Stephanie e Costel, além do casal Rivail-Kardec.

 

Em comentários diversos, nas redes sociais, e em manifestações nos sites que divulgam notícias sobre os filme, vejo vários “espíritas muito entusiasmados” (definição preciosa e precisa do saudoso Professor Herculano Pires – tido como o “metro que melhor mediu Kardec”), a reclamarem do personagem Kardec do filme de Wagner. Acham-no frágil, temeroso, claudicante. Reclamam das cenas em que ele dialoga, seja consigo mesmo, seja com Gabi e outros de suas próximas relações, ante as adversidades que enfrentava, parecendo, inclusive, estar a ponto de desistir daquela empreitada. Esquecem-se estes “espíritas de assentos” ou de “leituras rápidas” das várias mensagens pontuais dirigidas a Rivail, publicadas na Codificação, dando conta da gravidade da missão e dos contornos de dificuldade a serem enfrentados, prescrevendo-lhe uma vida marcada pela sucessão de sacrifícios (do repouso, da tranqüilidade, da saúde e da própria vida). E, também, as manifestações do próprio Codificador por toda a extensão de sua vasta obra, enfocando as dificuldades e as situações adversas, relatando as estratégias que escolheu para superar embates e dissabores. Com todos estes componentes, Kardec teve chances de recusar esta nada tentadora tarefa, mas permaneceu firme.

Vejamos uma delas: “A missão dos reformadores é repleta de obstáculos e perigos. Previno-te de que a tua é rude, pois se trata de abalar e transformar o mundo inteiro. Não suponhas que te baste publicar um livro, dois livros, dez livros, para em seguida ficares tranquilamente em casa”, quando questionou as Inteligências Invisíveis por que ele poderia fracassar.

Em outra, mais enfáticos, os Bons Espíritos lhe sugerem a saída de seu confortável gabinete e ir ao “campo de batalha”: “É necessário que te mostres no conflito. Ódios terríveis serão açulados contra ti, implacáveis inimigos tramarão tua perda; ver-te-ás a braços com a malevolência, com a calúnia, com a traição mesma dos que te parecerão os mais delicados; as tuas melhores instruções serão desprezadas e falseadas; por mais de uma vez sucumbirás sob o peso da fadiga”.

A premonição espiritual acima transcrita se cumpriu algumas vezes – e elas são relatadas, ainda que parcialmente, no enredo cinematográfico, como também figuram nas biografias conhecidas. Ao buscar o anteparo e a oitiva de seus pares, na academia, Rivail foi humilhado e escorraçado. Em vários momentos, as médiuns, exaustas, padeceram enfermidades. As irmãs Baudin foram perseguidas na escola, tidas como bruxas e a residência da família ameaçada de depredação e quase foi incendiada, em protestos populares. E uma de suas mais produtivas colaboradoras, Ruth-Celine, foi tomada pelo orgulho e pela vaidade, desistindo de colaborar com a tarefa e acusando Kardec de querer “aparecer” mais que a obra, já que não dera destaque às médiuns no contexto da obra primeira.

Quando precisava de solidez, tranqüilidade, concentração e paz de espírito, os solavancos dos obstáculos atormentavam-lhe a marcha. Mas não o detiveram. O enredo nos mostra um Kardec sempre apoiado na doce Gabi, enfrentando as adversidades e levantando a fronte para encarar, como prescreve a própria orientação espírita, com sua fé (no futuro), “a razão, face a face, em todas as épocas da Humanidade”. A fé para reunir suas economias e investir em novas publicações ou em comprar e preparar mantimentos para serem distribuídos aos pobres, moradores de rua, no frio inverno da capital francesa ou para tentar convencer até mesmo os mais desvalidos e desesperançados acerca das realidades espirituais.

O filme então tem um de seus momentos mais marcantes e emotivos, quando o professor, no deslocamento para sua residência, percebe aquele que havia dado um exemplar de “O livro dos espíritos”, pronto para se atirar da ponte, não conseguindo convencê-lo do contrário e perguntando-lhe se havia lido o livro que lhe ofertara. O homem não responde ao questionamento e se suicida. Tempos adiante, uma comunicação espontânea, similar às tantas que recebeu e alinhou em suas obras, em especial em “O Céu e o Inferno”, o Espírito retratado naquela cena se manifesta, e lhe relata ter lido o livro, com interesse, mas que não conseguira resistir à intenção de desistir da vida.

Kardec provavelmente aproveita esta experiência para fazer figurar em sua obra, embasada nas centenas de relatos de inteligências que abandonaram o vaso físico, ante as dificuldades e, em grande parte, não aceitando a condição que lhes impunha vergonha, a seguinte constatação: “Pelo suicídio não se escapa a um mal, mas se cai num outro mal cem vezes pior”.
De modo expresso, é verdade, não se encontra esta correlação de fatos – o fracasso de Rivail em impedir um suicida, seu conhecido, de levar a cabo sua intenção e a mensagem que lhe chegou, após a morte daquele, às suas mãos – nas obras publicadas pelo professor, o que não significa que não possa ter ocorrido. Referida circunstância e os inúmeros relatos apresentados nas obras kardecianas, dão-nos o tom da gravidade do mesmo, a oportunidade da mensagem espiritista destinada como consolo aos que sofrem e a perspectiva da continuidade da vida, no exato prisma de aferição do “a cada um segundo suas obras”.

Também é destaque na película um memorável evento, encenado com ares de maior dramaticidade: o Auto de Fé de Barcelona (9 de outubro de 1861), onde queimados foram mais de 300 volumes de obras espíritas, renovando as fogueiras inquisitoriais da Idade Média, tempestade, aliás, anunciada, antes, por Erasto. Assim se pronunciou, em caráter irrevogável, o bispo Palau y Termens, para obter a ação policial da retenção das obras espíritas que estavam na Alfândega espanhola: “A Igreja Católica é universal e, sendo estes livros contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles pervertam a moral e a religião de outros países”.

A indignação de Kardec, bem retratada no filme, fê-lo apelar às autoridades judiciárias e imperiais da França, sem sucesso. Desanimado, chegou a adoecer. Mas recebeu um conselho paternal do Espírito Verdade, que o convenceu a desistir da luta que ele travava pela devolução das obras: “[…] desse auto de fé resultará maior bem do que o que adviria da leitura de alguns volumes. A perda material nada é diante da repercussão que semelhante fato produzirá em favor da doutrina”.

Enquanto os livros queimavam em praça pública, na esplanada na cidadela de Barcelona, no bairro de La Rivera, palco, aliás, da execução dos condenados à morte na cidade, o filme mostra Kardec desfalecendo com forças exauridas, entendendo que dois homens o perseguiam pelas ruas francesas e desejavam fazer-lhe algum mal. E, no desmaio, a cena o remete ao local da fogueira, de onde, em Espírito, observa a cena, com perplexidade, mas com certo alento, tanto que lhe brota um sorriso à face. A cena nos remete às instruções dos Espíritos, contidas na Codificação, descrevendo o fenômeno de projeção da consciência, também chamado de desdobramento, em que há a saída do Espírito (e da consciência, portanto) do corpo humano inerte e a manifestação do mesmo em outro ambiente, em uma dimensão extrafísica.

Também aqui há críticas ao filme pelo fato de que, nas biografias conhecidas e nos próprios textos publicados por Kardec, em vida, assim como os que ainda foram objeto de reunião e publicação em “Obras Póstumas”, o Codificador não faz menção a tal situação. Talvez estivesse “guardando” para momento posterior, publicando-a na forma de memórias, quando fizesse alguma retrospectiva dos “fatos marcantes” do Espiritismo. Ou talvez não tenha ocorrido, mas, por certo, em pensamento e, diante da precisa orientação da Verdade, assim teria “visto” e entendido aquele episódio.

O fato é que, depois dele e da divulgação feita pela imprensa ao fato, os pedidos de livros aumentaram e, com eles, também, muito mais correspondências contendo psicografia, sugestões de temas e perguntas de interessados foram se avolumando nas entregas do carteiro – bem demonstradas em uma épica cena da trama.
E os solavancos e ameaças à obra kardeciana prosseguem, ainda, decorridos cento e cinqüenta anos do seu desencarne, com as descobertas históricas feitas em relação à adulteração do último dos livros fundamentais do Espiritismo, “A Gênese”, perpetradas por mãos inescrupulosas e introdutoras de conceitos pessoais. Fato este que, felizmente, as pesquisas acuradas em originais franceses, nas repartições de registro e documentação e o estudo cauteloso de especialistas, levaram ao resgate da sua edição original, oferecendo ao público espírita e simpatizante o verdadeiro Legado de Kardec. Entre os autores deste crime contra a memória de Rivail, posto que materializado três anos após o desenlace do Mestre (em 1872), estão alguns dos que se afiliavam como membros da SPEE, inclusive com funções de destaque e direção.

Antes de encerrar, fazemos uma pequena crítica – esta sim, desapaixonada, mas conjuntural – ao trabalho de Wagner de Assis e dos que lhe assessoraram na produção final do filme. Nos créditos finais é apresentado que Kardec teria escrito cinco obras para, quem sabe, fazer coincidir com a alcunha de “Pentateuco” espírita, consideradas somente as que os espíritas em geral chamam de “obras básicas”. Kardec, na verdade, legou à Humanidade um conjunto de trinta e duas obras, entre livros, opúsculos e fascículos mensais de revistas (depois reunidas em volumes anuais), de abril de 1857 a abril de 1869, aos quais se acrescenta, ainda, o livro “Obras Póstumas”, publicado por seus sucessores.

O filme é, então, por tudo isto, entusiasmante e emocionante.

Primeiro porque faz com que nos transportemos à atmosfera real daqueles dias, partilhando das dúvidas e incertezas de um homem – o qual, por mais desperto, intelectual e moralmente qualificado para a missão, poderia ter recuado e, diante disto, a tarefa ser delegada a outrem – mas, igualmente, de suas virtudes e demonstrações de sabedoria, bondade e fraternidade, permitindo-nos, ainda que com grandes ressalvas, imaginar como nos comportaríamos diante das situações por ele vividas, sejam as reais, sejam as romanceadas pela criatividade do roteiro (e, também, do livro em que o mesmo se baseia).

Segundo pelo fato de distanciar o homem Kardec do mito que é cultuado pelos próprios espíritas, mesmo aqueles que não entendem nem compreendem a extensão da grandiosa tarefa que ele desempenhou, distante da efemeridade que alguns atribuem à posição de “mero secretário” que anotava as informações advindas dos Espíritos Superiores.

Terceiro porque demonstra que, assim como o filme, que não tem um final definitivo, pois não chega a mostrar, mesmo, o desencarne e a continuidade das atividades espíritas em solo francês, deixa no ar o continuum do próprio PROCESSO ESPÍRITA, no que fomenta em nós a necessidade de reativarmos o sistema e o método trazido por aquele homem de ciência e filosofia, ainda que a mensagem moral lhe seja, naquele tempo e hoje, o principal combustível da existência.

A progressividade dos conceitos, retomando as informações já trazidas (1857-1869) e as novas que lhes secundam, é de imperiosa necessidade para os que se dizem espíritas neste terceiro milênio. E ela pode e deve ser aplicada, enquanto fórmula de aferição e validação, para as obras (muitas) já existentes, em que outros espíritos, isoladamente, se manifestaram a determinados médiuns, os conhecidos e os anônimos, como para um novo processo de composição, não tão solitário como o do homem León e sua esposa Gabi perpetraram por mais de uma década, mas, quem sabe, contando com uma equipe muito mais numerosa, desprovida de vaidade e de orgulho, para legar aos espíritas de hoje e os de amanhã, um material capaz de ampliar o número de interessados, simpatizantes e praticantes da MORAL ESPÍRITA, a partir dos fundamentos já expressos, e aqui repetidos, de CARIDADE, SOLIDARIEDADE e FRATERNIDADE entre os homens – espíritas ou não.
Que tal nos disponibilizarmos a isto?

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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+ Marcelo Henrique