Rustenismo não é espiritismo

Sergio F. ALeixo

O Estatuto da Federação “Espírita” Brasileira reza que, “além das obras básicas da codificação, o estudo e a difusão da doutrina espírita ou Espiritismo compreenderão a obra de J.-B. Roustaing e outras subsidiárias” (art. 1.º, § único); assim como registra que “o Conselho Federativo Nacional da FEB fará sentir a todas as sociedades espíritas do Brasil que lhes cabe pôr em prática a exposição contida no livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho” (art. 63), servindo, desta forma, ao assim chamado “Pacto Áureo” (05/10/1949), o qual prevê que “cabe aos espíritas do Brasil porem em prática a exposição contida no livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, de maneira a acelerar a marcha evolutiva do Espiritismo”.

Entre outras piadas de além-túmulo, no capítulo I desta obra, “a amargura divina” de Jesus “empolga” toda uma “formosa assembleia de querubins e arcanjos” e ele, que dirige este Globo, não sabe sequer onde é o Brasil. Não bastasse isto, no capítulo XXII, o confuso Roustaing emerge do estatuto da F.E.B. para ser equiparado a L. Denis e a G. Delanne, figurando adiante destes na condição de cooperador de Kardec para “o trabalho da fé”. Deve ter ocorrido erro material, e não foi publicada a palavra “destruição”; sim, trabalho de “destruição” da fé, pois, em Os Quatro Evangelhos, entre outras estranhezas que podem ser conferidas em http://oprimadodekardec.blogspot.com, se diz o seguinte:

  • Jesus “não nasceu do homem; a matéria perecível não entrou por coisa alguma no conjunto das suas perfeições”; “não esperou, sepultado no seio de uma mulher, a hora do nascimento; tudo foi aparência, imagem, no ‘nascimento’ do mestre, na ‘gravidez’ e no ‘parto’ de Maria”; “o aparecimento de Jesus na terra foi uma aparição espírita tangível”; portanto, não nasceu, não viveu e não morreu, senão aparentemente, “de maneira a produzir ilusão”; começou enganando a própria mãe, que “teve completa ilusão do parto e da maternidade”. (1.º vol., n. 47, p. 166/67 e 243/44.)
  • Jesus revestia, “aos olhos dos homens, as aparências da infância, da adolescência e da idade viril na humanidade terrestre”; lactente ainda, ele era, apenas “na aparência, pequenino”, e, portanto, não era mentalmente infantil, permanecendo neste absoluto despudor, segundo a tese rustenista, “até contar a criança dois ou três anos”. (1.º vol., n. 47, p. 166/67 e 243/44.)
  • Jesus, na sua estada em Jerusalém, “ao abrir-se o templo, entrava com a multidão e com a multidão saía, quando o templo se fechava; uma vez fora e longe dos olhares humanos, desaparecia, despojando-se do seu invólucro fluídico tangível e das vestes que o cobriam, as quais, confiadas à guarda dos Espíritos prepostos a esse efeito, eram transportadas para longe das vistas e do alcance dos homens; ao reabrir-se o templo, reaparecia entre os homens, retomando o perispírito tangível e as vestes, que o faziam passar por um homem aos olhos humanos”. (1.º vol., n. 47, p. 251/52.)
  • A evolução espiritual se dá em duas linhas: a dos Espíritos que se desviaram para o mal no início de suas jornadas e, portanto, ficaram sujeitos às reencarnações humanas, e a dos Espíritos que nunca se afastaram do bem e, por isto, evoluem pelos mundos etéreos, em linha reta, após superarem os reinos inferiores, como se o homem não fosse acontecimento natural, mas desastre espiritual. Estes mesmos Espíritos bons, contudo, são passíveis de cometer um destes três “pecados”: o ciúme, a inveja e o ateísmo; quando, então, cometem um deles, são obrigados a encarnar em “substâncias humanas”, descritas — pasmem — como “larvas informes” e chamadas “criptógamos carnudos”, “uma massa quase inerte, de matérias moles e pouco agregadas, que rasteja ou antes desliza, tendo os membros, por assim dizer, em estado latente”. (1.º vol., n. 57 a n. 59, p. 307-313.)
  • “A encarnação humana não é uma necessidade, é um castigo; […] em princípio, é apenas consequente à primeira falta, àquela que deu causa à queda”. (1.º vol., n. 59, p. 317 e 324.) Por isto, Roustaing submete um texto de Kardec, da Revista Espírita de junho de 1863 (Do Princípio da Não-Retrogradação do Espírito), ao exame dos seus “evangelistas” espirituais, que concluem dizendo que os que pensam ser a encarnação uma necessidade geral (Kardec à frente) “ainda não foram esclarecidos, ou não refletiram bastante”. (1.º vol., n. 59, p. 321.)
  • Espíritos que já “trabalham na constituição de planetas” podem ser “dominados pelo orgulho, que os leva a desconhecer a mão diretora do Senhor, ou a duvidar do seu poder, duvidando de suas próprias forças”. Então “soa a hora da encarnação humana correspondente ao delito” e, “em tal caso, o planeta, que não pode ficar sujeito a perecer por lhe faltar o primitivo obreiro, continua sua marcha progressiva sob os cuidados e a ação de um Espírito superior que vem substituir aquele que faliu”. (1.º vol., n. 59, p. 325-326.)
  • E os reveladores de Roustaing decretam aqui seu maior delírio conceitual: “[…] vossos médiuns só entrarão no gozo completo de suas faculdades quando estiver entre os homens o Regenerador, Espírito que desempenhará a missão superior de conduzir a humanidade ao estado de inocência, isto é: ao grau de perfeição a que ela tem de chegar. Até lá, obterão somente fatos isolados, estranhos à ordem comum dos fatos. […] Não nos cabe fixar de antemão a época em que tal se verificará. […] Debaixo da influência e da direção do Regenerador, caminhará o chefe da Igreja católica, a qual, repetimos, será então católica na legítima acepção deste termo, pois que estará em via de tornar-se universal, como sendo a Igreja do Cristo”. (3.º vol., n. 196, pp. 65-66.)

Os fenômenos mediúnicos, perfeitamente integrados à ordem natural das coisas pelo Espiritismo, são apresentados, então, como “fatos isolados, estranhos à ordem comum”. No que respeita ao chefe da Igreja católica, quanto ao Regenerador, melhor eu não dizer nada. E é esta obra que a F.E.B. considera, em seu Estatuto, uma subsidiária da Codificação de Kardec. Quando uma casa é adesa ao movimento “espírita organizado”, uma de duas: concorda com tais ensinos e os divulga, ou se torna descumpridora de deveres estatutários. Algo precisa ser feito para restituir ao movimento espírita sua legitimidade. Pois se até os textos de Kardec foram alterados pelo rustenismo federativo…

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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