Sala Repleta…Casa Deserta
Joana Abranches
Gilberto Gil tem uma canção que diz: “Tanta gente!… E estava tudo vazio. Tanta gente!… E o meu cantar tão sozinho.”
O que teria isso a ver com o cotidiano dos grupos espíritas na atualidade?… Muita coisa!…
Em Casas equivocadamente agigantadas, equipes trabalham por turno e mal se conhecem, pessoas viram números e o velho e essencial acolhimento que começaria “dentro de casa” acaba se perdendo em meio à distribuição de senhas para o passe e outras novidades em nome da organização. A preocupação é atender e impressionar bem aos que chegam, aos que vem de fora. Enquanto isso, no interior dos grupos, quanta gente sofrendo de solidão acompanhada… Minguando afetivamente!
Importante avaliar como tem sido a nossa relação com os companheiros de dentro, no cotidiano institucional espírita. Conseguimos perceber seu olhar mais triste nesse ou naquele dia? Quando desaparecem por algum tempo, o nosso primeiro pensamento é de censura ou preocupação? Passa pela nossa cabeça que possam estar atravessando uma fase difícil e, em caso afirmativo, nos mobilizamos para ampará-los? Aos que retornam após um período de ausência, a manifestação tem sido de acolhimento e alegria ou de cobrança?
Ah, as tais cobranças… Das piadinhas sarcásticas e olhares enviesados ao dedo em riste, vale tudo para manter o “bom andamento das atividades, em nome de Jesus”… Porém, vale a pena pensar se tem sido oferecido afeto, compreensão e solidariedade na mesma medida em que se cobra.
Favorecidos por regras monásticas que inibem a espontaneidade e a afetividade entre os trabalhadores, os grupos acabam resvalando para o extremismo. “O silencio é uma prece”… Antes, durante e depois das reuniões. Ignora-se que onde não há espaço para diálogo e autenticidade não pode haver uma relação saudável e verdadeira. Assim, vestindo a armadura do formalismo que afasta – em lugar da naturalidade que aproxima – temos nos tornado meros tarefeiros, cada vez mais robotizados e indiferentes. Sem perceber, em vez de estar uns com os outros temos apenas passado uns pelos outros, como se as pessoas fizessem parte dos móveis e utensílios da Casa Espírita.
Muito comum entrar no grupo, assinar a lista de freqüência (uma espécie sutil de folha de ponto para espíritas) e ligar no automático. A preocupação em ser impecável sobrepõe-se então ao importar-se com. É que andamos muito ocupados em ser perfeitos. Mesmo que ser perfeito signifique apegar-se a detalhes ínfimos e apontar a imperfeição alheia para colocar em destaque a pretensa superioridade que ainda estamos longe de possuir… Quanta ilusão!
Se o companheiro procura ajuda, lá vem o julgamento implacável implícito na “receitinha de bolo”: Prece, água fluidificada, redobrar a vigilância… Com direito, é claro, a sorrisinho paternalista e tapinha nas costas. Dali cada qual pro seu lado e a cômoda sensação de dever cumprido, sem que tenhamos, entretanto, caminhado um milímetro sequer em direção às reais necessidades do outro. Sem contar que, convenhamos, numa quase ditadura da pseudo-santidade como critério de “promoção” a trabalhador espírita, raros são os que têm coragem de expor suas dificuldades, por mais que estejam passando o pão que o diabo amassou. Afinal, reza a lenda que espírita não pode estar sujeito aos problemas existenciais inerentes aos “reles mortais”, como stress, depressão, frustração amorosa ou coisa que o valha. Daí o receio de se abrir, pois mostrar alguma fragilidade pode significar perda de credibilidade e exclusão dos trabalhos, pode render o estigma indigesto de obsediado.
Some-se a tudo isso o fato que, embora espíritas, a maioria de nós tem vivido na prática como bons materialistas. Interagindo numa sociedade altamente competitiva, temos sido sutilmente seduzidos pelo supérfluo, em detrimento do essencial. O objetivo primordial da vida passou a ser o sucesso profissional, social e financeiro, que inclui produzir, consumir e ostentar (desde títulos acadêmicos e profissionais a bens materiais). Mas ser “bem sucedido” dá muito trabalho. Os inúmeros cursos, viagens e horas extras à noite, fins de semana e feriados, somados à necessidade exacerbada de ter, tomam-nos muito tempo. Então os compromissos espirituais deixam de ser prioridade. Vão sendo adiados ou assumidos pela metade, encaixados nas sobras de tempo que restam de tudo o que é material e “urgente.” Passa-se então a ir à Casa Espírita quando dá… Só pra bater o ponto… E de preferência “correndinho,” como quem dá um pulinho no supermercado mais próximo só pra suprir uma ou outra coisa que está em falta na despensa. Nem bem acabou o “assim seja” e as pessoas já saem feito foguete para “levar ou buscar Fulaninho e Beltraninha não sei onde”… Ou para compromissos que poderiam tranquilamente ser agendados em outra data.
Ora, quanto mais superficial a convivência, mais frieza nas relações. Passamos então a nos esbarrar na Instituição, não como irmãos, mas como meros colegas de trabalho; a viver uma vida paralela fora do Grupo Espírita, com um circulo de relações à parte, onde dificilmente há lugar para os companheiros de ideal.
Em que vão escuro do preciosismo doutrinário e do igrejismo teremos perdido a sensibilidade, o prazer de estar juntos, os laços de amizade que extrapolavam os muros da Casa Espírita? Em que lugar do tempo foram parar as gostosas confraternizações extra-reuniões… Os agradáveis bate-papos após as atividades… A amizade parceira que se estendia para os programas de lazer em comum… O olhar atento que detectava quando esse ou aquele amigo não estava bem… O interesse verdadeiro pelo bem-estar uns dos outros?… Talvez seja mais fácil culpar a correria e o medo da violência dos dias atuais – alegando que é perigoso chegar tarde em casa ou pretextando falta de tempo – do que responder honestamente a essas perguntas, mas uma coisa é inegável: Coragem é questão de fé, e tempo é questão de prioridade.
E são tantos os irmãos que reclamam atenção especial… Companheiros solitários para os quais os fins de semana são intermináveis e que, se acolhidos, com certeza se sentiriam muito melhor!… Companheiros em processos reencarnatórios difíceis ou em períodos de crise existencial, para os quais faria toda a diferença uma conversa amorosa, a presença amiga naquele momento crucial ou a festinha surpresa de aniversário. Celebrar gente é trabalhar a auto-estima individual e coletiva. Quando as pessoas se sentem valorizadas, quando são envolvidas em ambiente de carinho, alegria e leveza, todo o grupo se torna mais harmônico, feliz e produtivo.
“Espíritas, amai-vos e instruí-vos!” – Recomendou o Espírito de Verdade. A construção da frase sinaliza, clara e pedagogicamente, para a ação prioritária. Teoria já temos de sobra. Agora é aplicá-la no cotidiano das relações. É avaliar com honestidade até que ponto ser impecável, indispensável e PHD em Espiritismo, tem sido mais importante do que ser irmão.
“Reconhecereis os meus discípulos por muito se amarem” – afirmou Jesus. Neste momento é imperioso resgatar a nossa identidade de seguidores sinceros do Mestre, buscando interagir com sinceridade e companheirismo. Como distribuir aos que chegam o afeto, o aconchego e a tolerância que sequer conseguimos construir entre nós, companheiros de caminhada e de ideal?
Repensemos. Continuar a brincar de ser fraternos, alimentando a distância entre o discurso e a pratica da legítima fraternidade, é um enorme desserviço a nossa própria evolução e felicidade. O mundo espiritual tem nos alertado que das boas intenções de teóricos e indiferentes espíritos-espíritas o umbral já está cheio… E os hospitais das colônias espirituais também!.. Muito embora – pra sorte nossa – em casos de extrema pobreza e vulnerabilidade espiritual a Misericórdia Divina nunca negue licença pra mais um puxadinho.
*Joana Abranches – Assistente Social, escritora e presidente da Sociedade Espírita Amor Fraterno – Vitória – ES – [email protected] – [email protected]