Sem mordaças!

O que teria dito Allan Kardec sobre a liberdade de pensamento ou o livre pensar? Qual seria o posicionamento do “bom senso reencarnado” e dos Espíritos Superiores com quem ele dialogou, entre 1854 e 1869, acerca desta temática?

Marcelo Henrique

A adversidade amadurece o pensamento. 

Lamennais (Revue Spirite, Julho de 1865, “Questões e Problemas”).

Hoje, 14 de julho é o dia mundial da liberdade de pensamento. Quando se define uma data para a reflexão sobre determinado tema é porque ele tem uma importância destacada para a civilização humana e o mote deve conduzir a pontuais reflexões e debates. A Humanidade, em seu processo de desenvolvimento, registra, na História, a superação de momentos de restrição às liberdades fundamentais, individuais ou coletivas, desembocando no atual estágio de democracias em grande parte das nações, assim como em exceções de ditaduras em alguns poucos países.

O que teria dito Allan Kardec sobre a liberdade de pensamento ou o livre pensar? Qual seria o posicionamento do “bom senso reencarnado” e dos Espíritos Superiores com quem ele dialogou, entre 1854 e 1869, acerca desta temática?

Vamos pinçar algumas afirmações do professor francês e, também, resgatar algumas falas dos Espíritos Superiores, procurando dar uma costura em relação aos diversos fragmentos da extensa e valiosa obra espírita originária para, ao final, projetar o seu uso conjunto e sistemático pelos que se dizem espíritas. Inclusive para permitir o uso do livre pensar e as ações necessárias para a evolutividade dos conceitos e das práticas em torno do Espiritismo.

E dizemos algumas falas, porquanto seja impossível e antididático trabalhar com os inúmeros textos em que Kardec trabalha a liberdade de pensamento. E, aproveitamos, aqui, para sugerir ao nosso leitor que busque no conjunto das 32 obras deixadas pelo professor francês as inúmeras referências acerca desta temática.

De pronto, resgatemos que Kardec fez uma importante analogia entre os Dez Mandamentos mosaicos e o conjunto das Dez Leis Morais Espirituais apresentados na terceira parte de “O livro dos Espíritos”. O Codificador dedicou um capítulo inteiro (X) para a Lei de Liberdade e, didaticamente, a posicionou após as de Adoração, Trabalho, Reprodução, Conservação, Destruição, Sociedade, Progresso e Igualdade, e antes da apoteose de todas elas juntas e reunidas, a de Justiça, Amor e Caridade, na busca da Perfeição Moral (Espiritual).

 

Definiram, o professor e os Espíritos Superiores, conjuntamente, que a liberdade é o direito de agir livremente, sem amarras impostas por outrem – em termos espirituais, já que em termos materiais haveriam embaraços decorrentes da limitação dos sentidos e das inteligências, assim como os ditames das legislações, variáveis conforme o tempo e o lugar, neste planeta.

Referida liberdade é, pois, relativa, porquanto condicionada tanto ao padrão evolutivo-espiritual quanto às próprias Leis Espirituais que regem, concomitantemente, indivíduos (Espíritos) e coletividades (Sociedades e Mundos).

Mas mesmo relativizando a liberdade humano-espiritual, porque condicionada às balizas acima, os Espíritos Superiores, de modo pontual afirmaram que um dos tipos de liberdade (espiritual) seria absoluta, ou seja, sem restrições de qualquer natureza: a liberdade do pensamento ou de consciência.

Durante muitas etapas da vida planetária, em vão, tentaram filosofias, religiões e impérios de poder temporal e mundano, impor restrições a esta liberdade. Mas não obtiveram êxito. Mesmo no caso de luminares indivíduos que foram perseguidos e condenados pelo que expressaram, a pena que lhes foi imposta, geralmente a de morte, não foi suficiente para calar ou eliminar as ideias, que frutificaram e conduziram a civilização planetária até o momento em que nos encontramos, hoje, no século XXI, assim como aos tempos vindouros.

A questão 833, de “O livro dos Espíritos”, portanto, sela este direito inalienável da individualidade espiritual, que é o de pensar por si mesma e de encontrar refúgio seguro para a semeadura e o amadurecimento íntimo das ideias, no interior de cada individualidade ou, para nós, espíritas, no próprio Espírito, a individualidade inteligente da Criação Divina.

Adiante, há o reforço para o livre-arbítrio espiritual que, na dicção das Inteligências Invisíveis, alcança não só o pensar, mas o agir e, sem este, o homem seria mera máquina. Destaque-se que a liberdade de ação deriva da vontade, o que coloca a individualidade como maquinista do trem da vida, sempre progressivamente, já que com o desenvolvimento das faculdades espirituais, o livre-arbítrio se amplia (itens 843 e 844, da obra primeira).

Isto se opera em duplo espectro. Na vida encarnada, as diferentes idades se sucedem e, da infância à maturidade há uma destacada ampliação do sentido de liberdade, posto que, com a condição infante, não é possível entender a complexidade das ações e das relações, ficando o ser, ainda, condicionado ao que lhe permitirem seus superiores, familiares, professores, etc.

O ano de 1864, neste contexto da configuração da liberdade de pensamento espiritual foi muito pródigo para o Codificador da Doutrina dos Espíritos. Se levarmos em conta todo o período de contato com os fenômenos espirituais, de 1854 a 1864 temos dez anos de verdadeira maturação da observação e da formulação da teoria espírita, por parte do professor francês.

Então, com a publicação de “O evangelho segundo o Espiritismo”, considerado um verdadeiro manual de moral e sociabilidade, com fundamento dos atos e fatos da vida de Jesus de Nazaré – embora não exaustivamente, porque a condição de ser uma DOUTRINA implica em visualizar, nas demais obras, outros conceitos e conteúdos importantes para a fundamentação e o conhecimento (teórico-prático) da ÉTICA ESPÍRITA, é possível encontrar outro elemento importante para a configuração do livre pensar espírita (e espiritual): “O Espiritismo dilata o pensamento e lhe rasga horizontes novos” (Cap. II, Item 7, “O ponto de vista”).

 

Referidos horizontes, então, não podem ficar restritos a nenhuma condição de dogma. Primeiro porque foi o próprio Kardec que, com anteparo no conjunto de informações recebidas pela Mediunidade, reforçou a condição de PROGRESSIVIDADE dos ensinos dos Espíritos – desde que, necessariamente, o homem (encarnado) continuasse a buscar, pela inquirição dos Bons Espíritos, informações novas para a continuidade da teoria espírita-espiritual. Segundo porque delimitou como condição de atualização do Espiritismo o acompanhamento dos progressos científicos, em que o Espiritismo deveria acompanhar as descobertas e as teorias decorrentes dos experimentos humanos. E, terceiro, porque deveria continuar submetendo as “revelações” espirituais, por meio dos médiuns, ao critério de veracidade e universalidade.

Voltando ao ano de 1864 e tomando como referência de pesquisa o Laboratório de Kardec (“Revue Spirite”, a Revista de Estudos Psicológicos), vamos encontrar mais alguns textos muito úteis para a delimitação da liberdade do pensar humano (e espiritual).

Se o pensar é, primordialmente, livre, ele não existe isoladamente. Pelo convívio social, entramos em contato com inúmeras criaturas que também exercitam o livre pensamento. É natural, assim, surgirem as dicotomias, expressas na diferença de entendimento sobre teorias e fatos da existência, como, também, as sintonias, com a concordância entre as distintas livres manifestações do pensar.

A este propósito, Kardec adverte que a condição inafastável para o êxito das atividades vinculadas ao Espiritismo seria a homogeneidade, ou seja, a comunhão de pensamentos e sentimentos, sendo este o objetivo ou o foco para qual os grupos espíritas devem esforçar-se e, então, o Codificador recomenda a realização de pequenas assembleias ou reuniões menos numerosas, justamente para facilitar a compreensão e a busca da condição homogênea de pensamento (“Revue Spirite”, Outubro de 1864, “O Espiritismo na Bélgica”).

Fundamental, portanto, que, nos grupos (virtuais ou presenciais) correlacionados à Filosofia Espírita, as pessoas se conheçam, interajam, se compreendam mutuamente, e alicercem suas atividades sobre a comunhão (homogeneidade) de pensamentos. Isto não significa, de forma alguma, a aniquilação dos diferentes pensares, ou pontos de vista inicialmente dicotômicos acerca de determinada temática. Muito pelo contrário. Permitindo o debate salutar, com a exposição clara, lógico-racional e organizada, em debates prospectivos e bem direcionados, é possível ter muitos ganhos com a perspectiva do desfile de várias ideias ou interpretações, em que se busca, ao que possível e sempre, o consenso.

Na “Revue Spirite”, de Dezembro de 1864 (“Da Comunhão do Pensamento”), há um reforço para o elemento da convicção ou do pensamento como sendo um atributo, posto que ele é que o Espírito da matéria. Associando pensamento e vontade, Kardec atesta “Sem o pensamento, o espírito não seria espírito. A vontade não é um atributo especial do espírito; é o pensamento chegado a um certo grau de energia; é o pensamento transformado em força motriz. É pela vontade que o espírito imprime aos membros e ao corpo movimentos num determinado sentido”.

E, prosseguindo, amplia, ainda mais, a perspectiva da convivência entre os (distintos) pensares e a regra da comunhão dos pensamentos, quando exorta a necessidade de retro assistência entre encarnados e desencarnados: “pela comunhão de pensamentos, os homens se assistem entre si, e ao mesmo tempo assistem os Espíritos e são por eles assistidos. As relações do mundo visível com o mundo invisível deixam de ser individuais e passam a ser coletivas, e por isto mesmo, mais poderosas, para proveito das massas, bem como dos indivíduos. Numa palavra, ela estabelece a solidariedade, que é a base da fraternidade. Ninguém trabalha apenas para si, mas para todos, e trabalhando por todos, cada um aí encontra seu quinhão. É isto que não compreende o egoísmo”.

 

Aí ganha corpo a expressão atribuída ao Homem de Nazaré, quando asseverou que, ali, ele estaria, quando dois ou mais se reunissem em seu nome. E, como espíritas que somos, vamos entender que este “estar” não precisa ser, necessariamente, físico, porquanto a sinergia, a sintonia e a ligação espiritual se processa entre os dois planos da existência, o material e o espiritual.

Ora, senhores, diria Kardec como sempre o fez em seus marcantes discursos, é este o cenário, a arena e o locus social para que os espíritas passem a entender as premissas fundamentais para o livre pensar espírita:

1) Isonomia – todos podem pensar. O pensamento é atributo do Espírito. Pensar é faculdade, direito e dever.

2) Liberdade – não há amarras para o pensar. O exercício íntimo é condição (faculdade) espiritual e, na marcha do progresso, mais consciência desta liberdade o ser adquire e manifesta.

3) Coerência – se pensar é livre, a expressão (manifestação) do pensamento também o é, por consequência. Mas livre pensar NÃO É apenas pensar, porque o Espiritismo nos fornece diretrizes para a configuração da lógica racional aplicada, onde as afirmações precisam se fundar em fatos (espirituais-materiais) e estarem dentro do princípio da concordância (ou universalidade).

4) Autoridade – não deriva de poderes e qualificações materiais, nem acadêmicas, nem institucionais (centros, federações, movimento), mas decorrem da AUTORIDADE MORAL que não depende de títulos nem de honrarias, mas da qualidade da mensagem e da aferição de sua origem – principalmente se atribuída à Mediunidade.

5) Progressividade – por ter sido alocada no final da segunda metade do Século XIX, o Espiritismo, apesar de descortinar um conhecimento que possui atemporalidade, em muitas das afirmações, porquanto trata de Leis Espirituais, Universais e Permanentes, versou sobre situações que eram vinculadas a um dado intervalo de tempo e que precisam, assim, ser contextualizadas ou atualizadas, conforme o caso. Mas isto não significa dar status de natureza espiritual superior a qualquer mensagem ou obra, assinada por qualquer espírito e ditada a qualquer (falível) homem-médium.

Estes elementos estão patentes em outro trecho da “Revue Spirite”, que confere ao Espiritismo uma condição única – já que não há outra filosofia que esteja dando ressonância aos conhecimentos metafísicos ditados por inteligências que não fazem parte deste padrão planetário, estando mais à frente, na Escala Espírita.

Diz Kardec: “Se o Espiritismo fosse uma simples teoria, uma escola filosófica fundada numa opinião pessoal, nada garantiria a sua estabilidade, porque ele poderia agradar hoje e não agradar amanhã; num dado tempo poderia não estar mais em harmonia com os costumes e o desenvolvimento intelectual, e então cairia, como todas as coisas superadas que não acompanharam o movimento; enfim poderia ser substituído por algo de melhor. Assim é com todas as concepções humanas, todas as legislações, todas as doutrinas puramente especulativas”.

E ele conclui: “O Espiritismo está longe de haver dito sua última palavra, quanto às suas consequências, mas é inamolgável em sua base, porque essa base está assentada nos fatos” (“Revue Spirite”, Fevereiro de 1865, “Da Perpetuidade do Espiritismo”).

Há que se destacar, ainda, que não há como opor qualquer óbice à liberdade de pensamento e, por extensão, ao livre pensar espírita. Isto porque, como afiança Kardec, “Se o pensamento é detido por uma convicção qualquer, ele não é mais livre”. E prossegue: “o livre pensamento significa livre exame, liberdade de consciência, fé raciocinada. Ele simboliza a emancipação intelectual, a independência moral, complemento da independência física; ele não quer mais nem escravos do pensamento nem do corpo, porque o que caracteriza o livre-pensador é que ele pensa por si mesmo e não pelos outros; em outros termos, sua opinião lhe é própria. Assim, pode haver livres-pensadores em todas as opiniões e em todas as crenças. Neste sentido, o livre pensamento eleva a dignidade do homem; dela faz um ser ativo e inteligente, em vez de uma máquina de crer” (“Revue Spirite”, Fevereiro de 1867, “Livre Pensamento e Livre Consciência”).

 

Como os espíritas do século XXI não são – nem devem ser – “máquinas de crer”, mas seres livres e conscientes para o exercício das faculdades intelectuais no raciocínio em relação às verdades espirituais, devemos sempre enaltecer a existência de fóruns de debates espíritas, onde se descortine, com elegância, educação, fino trato, e coerência, as ideias, para que cada um, a seu tempo, desenvolva sua racionalidade aplicada para, primeiro, entender e compreender os temas espíritas e, depois, aplica-los, como puder e quiser, em sua lida diária, na senda do progresso.

Assim, cabe-nos repetir, como o Codificador (“Revue Spirite”, Março de 1863, “Falsos Irmãos e Amigos Ineptos”): “Espíritas, elevai-vos pelo pensamento. Lançai vosso olhar vinte anos para a frente, e o presente não mais vos inquietará”.

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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