Sobre o espírito de sistema

Marcelo Henrique

Kardec jamais escreveu sob a influência de ideias preconcebidas ou qualquer espírito de sistema, preferindo afastar hipóteses a acatar qualquer delas, e só adotava uma hipótese quando ela era capaz de resolver todas as dificuldades da questão, para, só assim, formular a lei que regia o fenômeno.
***

A expressão “espírito de sistema” sempre surge em discussões de grupos espíritas, especialmente em fóruns livres de debates, composto por espíritas, em ambientes presenciais ou virtuais.
O conceito estrutural da expressão é a atitude de reduzir tudo a sistema, conjunto de preceitos organizados, para atuar com juízo preconcebido. Também pode ser enquadrado como a atitude de (cega) obediência à ideia de um filósofo, de um religioso, de um determinado pensador, na intenção de tudo condicionar, em termos interpretativos, a uma situação pré-estabelecida, estanque, deixando quase nula margem para a liberdade. Ou, em termos de conceitos espiritistas, ao livre-arbítrio.

O espírito de sistema, portanto, levado a cabo pelos adeptos do Espiritismo, resultaria em dogmatismo e pretensa superioridade sobre outras crenças ou filosofias, não permitindo que cada um construa em torno de si ambientes mais arejados e dispostos à progressividade das ideias, tal como asseverou o professor Rivail.

De início, havia muito de “espírito de sistema”, sobretudo cristão, católico-protestante, no homem Rivail, em face de suas convicções, formação e personalidade, naquela e em encarnações anteriores. Mas, mesmo assim, já como Kardec, ele foi se libertando de tais amarras. Por exemplo, em janeiro de 1866, na “Revue Spirite”, referindo-se à questão da prece, afirmou:

“Se o Espiritismo proclama a sua utilidade, não é por espírito de sistema, mas porque a observação permitiu constatar a sua eficácia e seu modo de ação. Desde que, pelas leis dos fluidos, compreendemos o poder do pensamento, também compreendemos o da prece, que é, também ela, um pensamento dirigido para um fim determinado”.

 

Essa não foi a primeira vez em que Kardec validou a tese não-sistêmica do Espiritismo. Em “O livro dos Espíritos”, nos “Prolegômenos”, ele cita que a obra seria “o repositório de seus ensinos. Foi escrito por ordem e mediante ditado de Espíritos superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, isenta dos preconceitos do ESPÍRITO DE SISTEMA. Nada contém que não seja a expressão do pensamento deles e que não tenha sido por eles examinado”.

Depois, em “O livro dos Médiuns”, explicou no capítulo 14: “A experiência demonstra que os sábios, tanto quanto os demais homens, sobretudo os desencarnados de pouco tempo, ainda se acham sob o império dos preconceitos da vida corpórea; eles não se despojam imediatamente do ESPÍRITO DE SISTEMA. Pode, pois, acontecer que, sob a influência das ideias que esposaram em vida e das quais fizeram para si um título de glória, vejam com menos clareza do que supomos. Não apresentamos este princípio como regra; longe disso. Dizemos apenas que o fato se dá e que, por conseguinte, a ciência humana que eles possuem não constitui sempre uma prova da sua infalibilidade, como Espíritos”.

Kardec, assim, reafirma o absoluto distanciamento da Doutrina dos Espíritos com qualquer espírito de sistema e adverte para a questão da interpretação lógico-racional acerca das afirmações contidas nos diálogos com as Inteligências Invisíveis.

Importa, pois, para a Doutrina dos Espíritos, não os conceitos, mas os princípios, decorrentes do processo dedutivo de investigação de Kardec, e que se mantém inalterados e permanentes, sem reparos, até hoje. Mas, não se pode esquecer que o Espiritismo, dinâmica, aberta e progressiva, jamais esteve encerrada em um molde sistemático e nem nas tendências exclusivas de dadas correntes de pensamento ou expoentes de determinada ideia ou doutrina. Kardec jamais escreveu sob a influência de ideias preconcebidas ou qualquer espírito de sistema, preferindo afastar hipóteses a acatar qualquer delas, e só adotava uma hipótese quando ela era capaz de resolver todas as dificuldades da questão, para, só assim, formular a lei que regia o fenômeno.

Imagem de Chen por Pixabay
Publicado originalmente

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


Continue no Canal
+ Marcelo Henrique