Tragédias aéreas: o cuidado de não ser simplista nem de ser vítima da crendice tida como Espiritismo

O Espiritismo é a “Doutrina da Responsabilidade”, porque se nos permite a análise criteriosa de nossa relação direta com fatos e acontecimentos da vida (material e espiritual).

Por Marcelo Henrique

Já escrevemos sobre acidentes aéreos e, também, sobre outras situações envolvendo desencarnações coletivas. Estes temas, além de causar comoção generalizada e atrair curiosidade em relação a imagens, depoimentos, relatos e investigações posteriores, também é um dos mais “buscados” por aqueles que se interessam sobre Espiritualidade.

Naturalmente, neste como em outros temas, cada um “dá o que tem”, isto é, as “explicações” são compatíveis aos níveis de entendimento, de conhecimento e de crenças daqueles que se aventuram em pontuar acerca de tais temáticas. Não censuramos quem quer que seja, por isso, partindo do pressuposto de que vige a liberdade de pensamento e de expressão, assim como, há públicos para vários intérpretes e gurus.

No nosso caso, não queremos ser mais “sabidos” que ninguém, nem sermos “donos da verdade”. Todavia, se o objetivo é abordar segundo o contido na Filosofia Espírita, existem parâmetros que não podem ser menosprezados ou corrompidos. Sob pena de estar-se falando de tudo, menos de Espiritismo.

Preliminarmente, é preciso dizer que Espiritismo é, para nós, Kardecismo, com total respeito a qualquer vertente ou derivação da Doutrina dos Espíritos, inclusive pela adoção de literaturas (mediúnicas ou não) que não passam de opiniões pessoais – isto é, não guardam consonância com os chamados princípios espíritas. Porque, assim como na vida material, do “outro lado” os intérpretes têm suas idiossincrasias, suas crenças, seus atavismos e, principalmente, a visão “estreita” e limitada de situações e realidades.

O fato é que, após Kardec, o senso de lógica e raciocínio aplicado, na interpretação, seleção e aceitação das “revelações” dos Espíritos (desencarnados) praticamente desapareceu. Sem o referencial de exame comparativo com as bases, passou-se a aceitar quase tudo. E, então, dogmatismos, religiosismos e personalismos assumiram a condução do entendimento dito espírita e praticado nas instituições espíritas.

No tema que intitula este artigo não é, pois, diferente. E há uma “necessidade” de vinculação coletiva e “cármica”, uma predisposição de todos os envolvidos nos acontecimentos das mortes coletivas, que remonta a conhecimentos que já fizeram parte da origem do pensamento dito cristão sobre o planeta: medo, culpa e salvação, o trinômio perfeito para tal ideologia religiosa.

Para o Espiritismo, tais situações não são “acidentais”, nem, tampouco, “obras do acaso”, já que o único “acaso” aceito pela Doutrina Espírita, é o inteligente. Não há, na filosofia espírita, espaço para “sorte” ou “azar”, “ventura” ou “maldição”. Cada ser vive o que está contido na Lei de Causa e Efeito, uma diretriz inteligente que, longe de ser absoluta e pré-determinada (inafastável) para todas as circunstâncias, nos coloca no ponto de partida e de chegada de todas as situações que conosco ocorrem, nesta e em outras encarnações. Mesmo considerando o chamado “planejamento encarnatório” – um plano que cada um de nós faz, ainda no mundo invisível, para as predisposições e possibilidades, sem qualquer “algema” de definitude, dentro do direito (inalienável) ao livre-arbítrio, tanto na escolha inicial, quando na revisão e alteração da “rota”, a partir do nosso nascimento, a cada passo, dentro das nossas escolhas presentes.

Destruição e regeneração

Podemos dizer, assim, que há “tendências”, “caminhos”, “diretrizes”, “probabilidades”, mas, no plano concreto, somos nós quem tomamos as decisões, sempre. Também, a presença de mentores espirituais (anjos de guarda ou protetores) para cada um de nós, em missão de orientação particular, em relação a cada espírito, e o que chamamos de “intuição”, “sexto sentido”, ou, “voz interior”, é, na verdade, a sugestão (não-indução) de alguém que “nos quer bem” e que “deseja o nosso sucesso”, para que possamos tomar as “melhores” decisões, caso a caso. O protetor, contudo, não interfere em nossas escolhas e, quando resolvemos fazer ”o que bem entendemos”, ele se afasta, momentaneamente, retornando após, para continuar a sua tarefa.

Catástrofes – naturais ou acidentais, como a ocorrida recentemente no interior de São Paulo, em Vinhedo, com sessenta e dois mortos – vitimam centenas ou milhares de pessoas e as imagens televisivas, virtuais ou impressas nos mostram as tintas do drama de inúmeros semelhantes, enquanto a população recolhe e chora seus mortos.

Pela Filosofia Espírita, entendemos a destruição como uma necessidade para a regeneração moral dos Espíritos (1), importando no aniquilamento da vida material, a interrupção da atual experiência. Isto porque há as desencarnações naturais, as provocadas e as violentas. As naturais decorrem do esgotamento dos órgãos e representam o encerramento “programado” das existências corporais, segundo a lei de causa e efeito e o planejamento encarnatório do ser. As provocadas resultam da ação humana no espectro da criminalidade e da agressividade (assassínio, atentados, guerras). Por último, as violentas encampam a ocorrência de catástrofes naturais (enchentes, terremotos, maremotos, ciclones, erupções, desmoronamentos, acidentes aéreos, automobilísticos, ferro ou aquaviários, entre outros).

Em muitas das situações, o nexo causal entre a catástrofe e a ação humana acha-se presente. Movido por interesses mesquinhos e sem a adequada compreensão do conjunto (leia-se a contemporânea preocupação com os ecossistemas, a preservação do meio ambiente), os homens alteram a composição geológica, com escavações, desmatamentos, aterros e outros mais, e sua imprevidência acaba gerando as ocorrências das mencionadas catástrofes “naturais” (2). Também podemos mencionar aqui a situação daqueles que, migrando de suas cidades para os grandes centros, habitam os morros, nas periferias das metrópoles, e, sem a mínima infra-estrutura, ficam à mercê das primeiras enxurradas, que levam seus barracos, que fazem desmoronar enormes pedras, vitimando, não-raro, diversas pessoas. Há, aí, um misto entre o evento natural e a ação humana, como causa direta do evento fatal (3).

Nos casos em que subsistem várias vítimas, seja em pequena, média ou grave dimensão, entende-se que as faltas coletivamente cometidas pelas pessoas (que retornam à vida material) são expiadas solidariamente, em razão dos vínculos espirituais entre elas existentes (4). Todavia, necessário se torna qualificar a condição daqueles que, por comportamentos na atual existência, possam sublimar as provas, alterando para melhor o planejamento vital, garantindo a ampliação de sua permanência no orbe, redefinindo aspectos relativos à reparação de faltas e à construção e realização de novas oportunidades. Eis um caminho para explicar, por exemplo, a existência de sobreviventes (5). Num cenário altamente doloroso como aquele decorrente das diversas catástrofes já vistas neste Plano, como, então, explicar a existência de alguns milagrosos sobreviventes, ante os escombros, senão a condição de que tais espíritos, ou não eram originariamente “devedores” para encaixar-se no fatal resgate, ou conseguiram, com esforço e mérito pessoais, inverter o ônus encarnatório, credenciando-se à revisão de seu plano de vida, proporcionando uma outra e posterior causa de retorno ao plano espiritual, em outro momento mais oportuno (6).

Sem crendices

A compreensão espírita, portanto, calcada no sério estudo e na relação direta entre os fundamentos filosóficos espíritas e o cotidiano do ser, na análise de tudo o que lhe rodeia, permite, assim, a desconsideração do termo “fatalidade” como sendo algo relativo à desgraça, ao destino imutável dos seres, pois o Espírito, conservando o livre-arbítrio quanto ao bem e ao mal, é sempre senhor de ceder ou de resistir. Então, a palavra destino também ganha um redesenho, para representar, tão-somente, o mapa de probabilidades e ocorrências da existência corporal, resultantes, em regra, das escolhas e adequações realizadas anteriormente à nova vida, somadas às atitudes e aos condicionantes do contexto atual, onde, com base no seu discernimento e liberdade, continuará o rol de decisões que levarão o ser aos caminhos diretamente proporcionais àquelas, colocando-o, sempre, na condição de primeiro e principal responsável por tudo o que lhe ocorra.

É verdadeiramente por isto que cognominamos o Espiritismo como a “Doutrina da Responsabilidade”, porque se nos permite a análise criteriosa de nossa relação direta com fatos e acontecimentos da vida (material e espiritual).

Assim, como ilustra o nosso título, recomenda-se o permanente cuidado de não ser simplista nem de ser vítima da crendice tida como Espiritismo, passando a crer, cegamente, naquilo que os outros dizem ser verdade, como a “explicação” de situações dramáticas como esta.

Por fim, ante tais eventos, que possamos, mesmo de longe, efetivar por meio de vibrações e preces, o apoio às equipes de Espíritos socorristas, que encaminham as “vítimas” do desencarne em massa, ao necessário e consequente despertar no Novo Mundo, considerando, ainda, que o período de recuperação espiritual daqueles que foram vitimados, em regra, é demorado e doloroso. E que eles, despertos e recuperados das mazelas físico-espirituais, possam compreender, novamente, que o curso da evolução espiritual continua. Para eles, que voltaram, e para todos nós, que ainda aqui estagiamos.

Notas:

(1) Vide, a propósito, o contido no quesito 737 de “O livro dos Espíritos”,  de Allan Kardec, especialmente o seguinte trecho: “[…] a destruição é uma necessidade para a regeneração moral dos Espíritos”.

(2) É o que se depreende da leitura do item 741, de “O livro dos Espíritos”.

(3) Deste modo, muito mais acertado é cognominar os homens não como vítimas, mas como coautores ou partícipes das muitas ocorrências planetárias do gênero tratado neste ensaio.

(4) Assim, “[…] as faltas coletivamente cometidas são expiadas solidariamente” (“Obras póstumas”, de Allan Kardec, item “Questões e Problemas”). Isto pode explicar, por exemplo, que os vínculos espirituais, muitas vezes, datam de épocas (encarnações) anteriores, enquadrando a circunstância de seu retorno à vida espiritual como previsão do Ministério Divino, na forma de resgate (veja-se, a propósito, a questão 258, de “O livro dos Espíritos”).

(5) Dizemos “um caminho”, justamente para fugir da cômoda e indevida tentativa de “explicar” tudo o que nos ocorre segundo um “determinismo espírita”, isto é, vinculando cada ato ou fato da vida atual com “débitos” de vidas pregressas. Sugere-se, a propósito, a leitura do último capítulo da obra “Espiritismo Dialético”, de Manuel S. Porteiro, intitulado “O determinismo histórico e a lei de causalidade espírita”, do qual pinçamos o seguinte trecho elucidativo: “A lei de causalidade espírita não é unilateral, mas bilateral, isto é, que um dano recebido pode ser corrigido por quem o faz, com um bem equivalente, sem a necessidade de sofrer o mesmo mal causado. […] O mal não é, pois, a conseqüência necessária de outro mal, e o espírita não tem o dever de respeitá-lo nem de a ele submeter-se”.

(6) Quando a lição evangélica fala do “escândalo necessário”, devemos perquirir acerca da condição daqueles que “aproveitam” as situações existentes, como oportunidade, seja de aprendizado, seja de resgate. Não há, entretanto, nenhuma lógica, como visto há pouco, em condicionar cada “dificuldade” a “pagamentos” de erros pretéritos (ver “O evangelho segundo o Espiritismo”, Capítulo VIII).

Imagem de Moshe Harosh por Pixabay

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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