Triste Fim de Kardec Quaresma


Marcelo Henrique

Os que conhecem um pouco a literatura pátria hão de lembrar-se de uma obra bastante difundida, do pré-romantismo brasileiro estudada no ensino médio das escolas brasileiras, chamado “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, escrita pelo grande Lima Barreto () e publicada em 1915, ou seja, má mais de um século. A impressão reunia diversos textos publicados entre agosto e outubro de 1911, no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro (RJ).

O personagem literário é uma espécie de “anti-herói”, quixotesco, que possui nobres ideais, de bom coração, idealista, patriota, mas que, por causa de suas várias qualidades, acaba sendo castigado e… Sempre se dá mal! Suas virtudes provocavam estranheza nas pessoas, tanto pelos ideais esposados quanto pela coragem em seu proceder costumeiro. No fim da história, Policarpo é levado à prisão – sem um motivo que o justifique – e morre, como um herói.

O que tem a ver esse personagem com Kardec? Veja-se que o título deste ensaio substitui o nome daquele por este, ou seja, cogita-se que o “fim” do Codificador do Espiritismo seja tristonho, indesejado, lastimável.

O homem Rivail viveu entre 1804 e 1869, na França, e é considerado o “pai” da Filosofia (Doutrina) Espírita, como se sabe. Escreveu mais de três dezenas de livros, adotando o pseudônimo pelo qual foi conhecido: Allan Kardec. Espiritualista racional e homem de ciências, investigou, como poucos, o chamado fenômeno mediúnico, a partir de ocorrências na Europa da segunda metade do século XIX, período em que os Espíritos buscavam a atenção dos homens para a construção de uma nova forma de entender a vida, o mundo e as relações entre os mundos (o dos “vivos” e o dos “mortos”). Minuciosamente, Rivail debruçou-se sobre os fenômenos e da afirmação categórica de que objetos físicos (mesas) não poderiam ter cérebros e nervos – para se levantarem do chão, flutuarem e dançarem no ar e responder a questionamentos humanos por meio de pancadas (batidas no chão), concluiu que por detrás da mesa havia espíritos agindo sobre o objeto, por meio da mediunidade.

Considerando que Kardec publicou sua primeira obra, espírita, em 18 de abril de 1857 (“O livro dos espíritos”) e que sua última publicação, em vida, foi o exemplar de fevereiro de 1869, da “Revue Spirite” (“Revista Espírita”, que editou de 1858 a 1869), posto que faleceu em 31 de março de 1869, tendo deixado a edição de março pronta para ser publicada, o que não foi por seu intermédio em face do desencarne, podem-se considerar como póstumos os exemplares de abril a dezembro deste ano – os quais são encontrados reunidos aos de janeiro a março, compondo o volume anual de 1869), pois coube aos seus sucessores “intelectuais” e “associados” continuarem editando a Revue. Estes e mais “Obras Póstumas”, levada a público com anotações e rascunhos do Codificador, em janeiro de 1890, 21 anos, portanto, após o desencarne do Mestre lionês, apesar de trazerem o “nome” do autor (Allan Kardec), já desencarnado, foram documentos selecionados por outras pessoas e, deste modo, devem ser lidas, analisadas e comparadas com as demais, com acuidade e interesse. Isto para evitar-se, ainda mais agressões ao “espírito” Rivailiano!

Dizemos isso porque neste momento (início do ano de 2018) se discute a adulteração do texto do livro que completa seu sesquicentenário, “A Gênese”, posto que a quinta edição, levada a efeito após o desencarne de Kardec, precisamente em 1872, contém mais de 300 alterações, algumas muito significativas e que não respeitam o mesmo “padrão” dos demais textos contidos, seja nas quatro primeiras edições deste livro, seja nos demais, escritos e publicados por Rivail. As diferenças são gritantes!

Acresça-se a isso a desconfiança – já existente mas nunca aprofundada – acerca do livro “Obras Póstumas” que é atribuído a Kardec mas pode, igualmente, possuir um significativo número de textos que não tenham sido da lavra do Codificador ou que, mesmo o sendo, tenham sido alterados pelos sucessores na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. De igual sorte, tudo o que se publicou no último ano da Revue – considerando o ano de falecimento de Rivail, ou seja, 1869 – a partir do volume de março, também estão sob suspeita e mereceriam um acurado exame, tal qual está sendo feito com “A Gênese”.

Os fatos e as suspeitas, deste modo, fazem com que o Codificador da Doutrina dos Espíritos, Kardec (Rivail) esteja tendo um similar “triste fim”, como o personagem fictício da literatura brasileira. Afinal de contas, as alterações em sua obra (“A Gênese), os textos (vamos dizer “confusos” de “Obras Póstumas” e várias das dissertações contidas no último ano da Revue, especificamente de março a dezembro – estas últimas, se comprovadas – fazem com que o preclaro professor francês, igualmente quixotesco porquanto realizou, a seu tempo, a ruptura da verdade das igrejas (católica e protestante) apresentando informações distintas daquelas contidas nas liturgias e homilias destas religiões, acerca de temas da Vida e da Morte e da relação entre os Espíritos (encarnados e desencarnados), um verdadeiro “anti-herói” (em relação à hegemonia e prevalência dos conceitos religiosos), de ideais comprovadamente nobres (não só em relação à obra espírita, como, antes, a par de décadas de dedicação à Pedagogia francesa, discípulo direto do insigne Pestalozzi, idealista por solitária e herculeamente ter lançado a pedra fundamental dos conhecimentos que hoje divisamos ( que se ampliam a partir do conhecimento por parte de milhões de pessoas, mundo afora, que se interessam, passados mais de cento e sessenta anos de sua obra primeira), mas que, tal qual Policarpo Quaresma, em face de suas várias qualidades, está sendo castigado, em sua memória e legado, vendo-se a comprovação das fissuras e acréscimos ao lúcido trabalho de Rivail, fazendo com que o nosso “herói” (Kardec) seja um “prisioneiro” daqueles que, infelizmente, deturparam o seu pensamento.

Só que, diferentemente do personagem hipotético, os espíritas sensatos do século XXI, diante de tantos fatos e de provas incontestáveis da violência que sofreu a honra, a memória e a obra de Kardec, não vão deixá-lo “morrer” à míngua!

Kardec prossegue vivo entre os que valorizam seus esforços e sua ampla e maciça obra e o Espiritismo segue com sua missão de esclarecimento e consolo, preparando a Humanidade do porvir! Avante!

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Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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