VII – O problema religioso

Por Herculano Pires

A natureza religiosa de “O Livro dos Espíritos”, ressalta desde as suas primeiras páginas. Como já vimos, Kardec o inicia pela definição de Deus. Mas o Deus espírita não é antropomórfico, não é um ser constituído à imagem e semelhança do homem, como o das religiões. A definição espírita é incisiva: “Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas”.

Assim como, para Espinosa, Deus é a substância infinita, para Kardec é a inteligência infinita. Mas assim como erraram os que confundiram a substância espinosiana com o Universo, assim também se enganaram os que confundem a inteligência infinita com o homem finito, e a religião espírita com os formalismos religiosos.

Os atributos de Deus não se confundem com os precários atributos humanos: Ele é eterno, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom. Deus não se confunde com o Universo, pois é o criador e o mantenedor do Universo. Entretanto, ao tratar da justiça de Deus, vemos Kardec empregar uma terminologia antropomórfica, falando em castigos e recompensas, o que tem dado motivo a afirmar-se que o Deus espírita é semelhante ao das religiões.

A explicação desse fato, que à primeira vista parece contraditório, está na questão décima: “O homem pode compreender a natureza íntima de Deus? – Não. Falta-lhe, para tanto, um sentido”. E logo a seguir vem a explicação de Kardec a respeito. Mais adiante, no item treze, encontramos a resposta de que os atributos de Deus, a que nos referimos acima, são apenas uma interpretação humana, aquilo que o homem pode conceber a respeito de Deus, no seu estágio atual de evolução. Kardec, portanto, emprega a linguagem que podemos empregar, de maneira compreensiva, para tratar de Deus. Não humaniza a Deus, mas apenas o coloca ao alcance da compreensão humana.

Não obstante, a natureza suprema de Deus, como inteligência infinita e causa primária, é sempre resguardada. Vemos isso em todo o primeiro capítulo e em muitas outras passagens do livro. No capítulo sobre o Panteísmo, qualquer confusão entre o Criador e a Criação foi afastada. O Deus espírita não é antropomórfico, mas também não é panteísta. Por outro lado, “O Livro dos Espíritos” veda imediatamente o caminho às especulações ilusórias e imaginosas sobre a natureza de Deus.

Uma vez que falta ao homem o meio de compreendê-lo, inútil será tentar a sua definição através de suposições ingênuas ou atrevidas. É o que vemos no item 14º do primeiro capítulo, no estabelecimento de um princípio que define de maneira absoluta a posição do Espiritismo em face do problema, separando-o decisivamente de todas as escolas de teologia especulativa ou de ocultismo de qualquer espécie. Vejamos esse trecho fundamental, podendo o leitor encontrá-lo no lugar próprio deste volume: “Deus existe, não o podeis duvidar, e isso é o essencial. Acreditai no que vos digo e não queirais ir além. Não vos percais num labirinto, de onde não podereis sair.

Isso não vos tornaria melhores, mas talvez um pouco mais orgulhosos, porque acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, pois, de lado, todos esses sistemas; tendes que vos desembaraçar de muitas coisas que vos tocam mais diretamente. Isto vos será mais útil do que querer penetrar o que é impenetrável”.

Deus, como inteligência infinita ou suprema, é o que é. Não comporta especulações ociosas, definições imaginosas. O homem deve conter-se nos limites de si mesmo, cuidar das suas imperfeições, melhorar-se. Basta-lhe saber que Deus existe, e que é justo e bom. Disso ele não pode duvidar, porque “pela obra se reconhece o obreiro”, a própria natureza atesta a existência de Deus, sua própria consciência lhe diz que ele existe, e a lei geral da evolução comprova a sua justiça e a sua bondade. Descartes dizia que, Deus está na consciência do homem, como a marca o obreiro, na sua obra. Os Espíritos confirmam esse princípio, mas vão além, mostrando que a marca do obreiro está em todas as coisas, na natureza inteira. A negação de Deus é, para o Espiritismo, como a negação do sol. O ateu, o descrente, não é um condenado, um pecador irremissível, mas um cego, cujos olhos podem ser abertos, e realmente o serão. Porque Deus é necessariamente existente, segundo o princípio cartesiano. Nada se pode entender sem Deus. Ele é o centro e a razão de ser de tudo quanto existe. Tirar Deus do universo é como tirar o sol do nosso sistema. Simples absurdo.

Mas, pelo fato de não ter a forma humana, de não se assemelhar ao homem, no tocante à constituição física deste, não se segue que Deus esteja distante do homem e indiferente a ele. O Deus espírita se assemelha ao aristotélico, pelo seu poder de atração, mas se afasta dele, quanto à indiferença em relação ao cosmos. Porque Deus é providência, Deus é amor, é o criador e o pai de tudo e de todos.

O universo se define por uma tríade, semelhante às triades druídicas: Deus, espírito e matéria. Vemos isso no item 27, quando Kardec pergunta se existem dois elementos gerais, o espírito e a matéria, e os Espíritos respondem: “Sim, e acima de ambos, Deus, o criador, o pai de todas as coisas. Essas três coisas são o princípio de tudo o que existe, a trindade universal”. A matéria, porém, não é só o elemento palpável, pois há nela o fluido universal, o seu lado fluídico, que desempenha o papel de intermediário entre o plano espiritual e o propriamente material.

Diante dessa concepção, surge um problema de ordem teológica e escriturística. Se Deus não se assemelha ao homem, como entender-se a passagem bíblica segundo a qual ele criou o homem à sua imagem e semelhança? A explicação vem no item 88, quando Kardec pergunta pela forma do Espírito, não daquele que ainda está revestido do corpo espiritual ou perispírito, mas do espírito puro.

Vejamos a pergunta e a resposta no original: “Os Espíritos têm uma forma determinada, limitada e constante? – Aos vossos olhos, não; aos nossos, sim. Eles são, se o quiserdes, uma flama, um clarão ou uma centelha etérea”. Como se vê, o homem, na sua essência, – naquilo unicamente em que ele pode assemelhar-se a Deus: – não é um animal de carne e osso, nem mesmo uma forma humana em corpo espiritual, mas uma centelha etérea. Foi assim que Deus o fêz à sua imagem e semelhança.

Colocando o problema fundamental de Deus e da criação, “O Livro dos Espíritos” entra pelo controvertido terreno da destinação humana. Sua concepção deísta do Universo é necessariamente teológica. Tudo avança para Deus, do átomo ao arcanjo, como vimos no item 540, e à frente dessa marcha, no plano terreno, encontra-se o homem. Vêmo-lo numa escala evolutiva, na terra como no espaço: do imbecil ao sábio, do criminoso ao santo.

A “escala espírita”, que começa no item 100, nos oferece uma visão esquemática dessa escada de Jacó, que vai da terra ao céu. O estudo da “progressão dos espíritos”, que começa no item 114, nos mostra a necessidade do esforço próprio para que o Espírito se realize a si mesmo, revelando-nos ao mesmo tempo o papel da Providência, sempre amorosamente voltada para as criaturas. No estudo sobre “anjos e demônios”, que se inicia no item 128, defrontando-nos com um debate teórico sobre passagens evangélicas. O problema da justiça de Deus é equacionado à luz dos ensinos de Cristo, no seu verdadeiro sentido.

À seguir, “O Livro dos Espíritos” trata da encarnação dos Espíritos e da finalidade da vida terrena. Combate o materialismo, mostrando a sua inconsistência. Não são os estudos que levam o homem a ele, não é o desenvolvimento do conhecimento que o torna materialista, mas apenas a sua vaidade. É o que vemos no item 148: “Não é verdade que o materialismo seja uma conseqüência desses estudos. É o homem que deles tira uma falsa conseqüência, pois ele pode abusar de tudo, mesmo das melhores coisas”.

Kardec corrobora a tese dos Espíritos: o materialismo é uma aberração da inteligência. É o que nos diz no início do seu comentário: “Por uma aberração da inteligência, há pessoas que não vêem nos seres orgânicos nada mais que a ação da matéria, e a esta atribuem todos os nossos atos”.

E assim prossegue o livro, todo ele impulsionado pelo sopro do espírito, impregnado pelo sentimento religioso, e mais particularmente, pelo sentido cristão desse sentimento. Quando, no item 625, Kardec pergunta qual o tipo humano mais perfeito que Deus ofereceu ao homem, para lhe servir de guia e modêlo, a resposta é incisiva: “Vede Jesus”. E Kardec comenta: “Jesus é para o homem o tipo de perfeição moral a que pode aspirar a Humanidade na Terra. Deus no-lo oferece como o mais perfeito modelo e a doutrina que ele ensinou é a mais pura expressão de sua lei, porque ele estava animado do espírito divino e foi o ser mais puro que já apareceu na Terra”.

A religião espírita se traduz em espírito e verdade. O que interessa a Deus não é a precária exterioridade dos ritos e do culto convencional, quase sempre vazio: é o pensamento e o sentimento do homem. A adoração da divindade é uma lei natural, quanto a lei de gravidade. O homem gravita para Deus, como a pedra gravita para a terra e esta para o sol. Mas as manifestações exteriores da adoração não são necessárias.

No item 653, vemos a clara resposta dos Espíritos a respeito: “A verdadeira adoração é a do coração. Em todas as vossas ações, pensai sempre que um Senhor vos observa”. A vida contemplativa é condenada, porque inútil, assim também a monacal, pois Deus não quer o cultivo egoísta do sentimento religioso, mas a prática da caridade, a experiência viva e constante do amor, através das relações humanas.

“O Livro dos Espíritos” não deixa de lado o problema do culto religioso, que necessita manifestar a sua religiosidade:

Essa manifestação se verifica nas formas naturais de adoração, uma das quais é a prece. Pela prece, o homem pensa em Deus, aproxima-se dele, põe-se em comunhão com ele. É o que vemos a partir do item 658. Pela prece, o homem pode evoluir mais depressa, elevar-se mais ràpidamente sobre si mesmo. Mas a prece também não pode ser apenas formal. Por ela, podemos fazer três coisas: louvar, pedir e agradecer a Deus, mas desde que o façamos com o coração, e não apenas com os lábios.

Temos assim a religião espírita, que mais tarde se definirá de maneira mais objetiva ou direta em “O Evangelho, segundo o Espiritismo”. Uma religião psíquica, como a chamou Conan Doyle, equivalente à “religião dinâmica” de Bergson. No capítulo V da “Conclusão”, Kardec afirma: “O Espiritismo é forte porque se apóia nas próprias bases da religião: Deus, a alma, as penas e recompensas futuras, e porque sobretudo mostra essas penas e compensas como conseqüências naturais da vida terrena, oferecendo um quadro do futuro em que nada pode ser contestado pela mais exigente razão”. Enfim: religião positiva, baseada nas leis naturais, destituída de aparatos misteriosos e de teologia imaginosa.

Para completar o quadro religioso de “O Livro dos Espíritos” temos ainda o capítulo XII do Livro III e todo o Livro IV. No capítulo referido Kardec trata do aperfeiçoamento moral do homem, encara os problemas referentes às virtudes e aos vícios, às paixões, ao egoísmo, define por fim o caráter do homem de bem e conclui com uma mensagem de Santo Agostinho sobre a maneira de conhecermos a nós mesmos. No Livro IV temos um capítulo sobre as penas e gozos terrenos, que é um código da vida moral na terra, verdadeiro catecismo da conduta espírita, e um capítulo sobre as penas e gozos futuros, sobre as conseqüências espirituais do nosso comportamento terreno.

Capítulo da introdução redigida por Herculano Pires para o “O Livro dos Espíritos”, por ocasião da edição especial da LAKE, comemorativa do centenário da obra, em 18 de abril de 1957.

{{texto::pagina=1007}}

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.

Acesse:

#Espiritismo e religião