Nós (espíritas) somos muito pedantes!
Marcelo Henrique
“Meus discípulos serão reconhecidos por muito se amarem” (Yeshua)
Alguns temas são recorrentes. Eles vão e vêm. Mesmo em discussões que, aparentemente, sequer tangenciam alguns conceitos, eles aparecem. E mostram o quanto nós ainda “patinamos” no entendimento das Leis Espirituais e dos reflexos, dela, em nós.
Vamos falar de um tema apaixonante, para os espíritas e, também, para todos que se dizem “cristãos”, ou, mais propriamente, para os que admiram a personalidade ímpar de Yeshua bar Yossef, ou Jesus de Nazaré. Ou, ainda, para mim, e minha proximidade e intimidade com ele, o Magrão.
O primeiro ponto que nos faz entender Jesus segundo o Espiritismo está focado na questão 625, da obra primeira de Allan Kardec, “O livro dos espíritos”. Ainda que a tradução que você tem em mãos, em casa, ou que folheia na casa espírita, geralmente consigne como resposta a “menor” das 1019 perguntas que Kardec apôs neste brilhante livro, a tradução que reputo ser a mais fiel ao original, é diferente. Enquanto na “maioria” a resposta é uma palavra (“Jesus”), a do professor e filósofo de Avaré (SP), é composta por um verbo e um substantivo (“Vede Jesus”). Já escrevemos sobre isso. O original, no vernáculo kardeciano, tinha exatamente a composição que Herculano traduziu. E dela, devemos subentender e interpretar que nossos olhos, em termos do “modelo existencial humano” seria Jesus. Mas que, por extensão interpretativa, outros avatares, missionários, pessoas ímpares, em distintas civilizações, poderiam ser tidas como modelos. E o são, basta apreciar, estudar e entender suas culturas.
O modelo é, claramente, não o “estágio final” de perfectibilidade plena (perfeição relativa), mas possui, em relação aos que o tomam como tal, uma relação de logicidade e proximidade.
Consideremos, assim, incialmente, o estágio planetário de dois mil anos atrás, época em que o Magrão palmilhou as terras da Galiléia, Judéia, Genesaré, Belém e arredores… Um mundo bastante atrasado, inferior, em que a barbárie ainda era uma característica e a civilização – com o progresso das leis e dos costumes humanos – ensaiava os primeiros passos.
Um mundo em transição, considerando a cátedra espírita, entre o “primitivo” e o “de provas e expiações”, compondo, na Escala Progressiva dos Mundos Habitados, o primeiro e o segundo degraus, respectivamente. Além desses existem outros três: o de regeneração (que se avizinha, mas não se sabe quando irá ocorrer, mas decorre da paulatina transformação do anterior, onde nos encontramos), o ditoso ou feliz e, por último, no ápice do processo progressivo (Lei de Progresso, de “O livro dos espíritos”), o celeste ou divino.
Além da regra de progressão, encartada nestes cinco estágios, consequentes, de elevação espiritual, a partir das experiências individuais de cada um, na carne (isto é, estando encarnados em corpos físicos, os Espíritos), há, como substrato de validade e elemento característico e causal, o progresso individual. Assim, Kardec em consórcio com as Inteligências Superiores que o assistiram no trabalho de Codificação da Doutrina dos Espíritos, estabeleceram dez estágios de desenvolvimento, do “simples e ignorante” até o “puro”. A matéria, com o detalhamento necessário, figura na obra inicial, já citada, a partir do item 100, o que recomendamos a (re) leitura, assim como a meditação e o estudo dela decorrentes. E, mais, recomendamos o estudo coletivo, em grupos, núcleos ou instituições espíritas, seja presencial ou virtualmente – dadas as facilidades, de hoje, de utilização de ferramentas cibernéticas, cada vez mais úteis e aperfeiçoadas, verdadeiros instrumentos para o aprendizado e as relações interpessoais.
No nosso caso, recomendamos a participação em nosso fórum virtual de debates e estudos, o grupo “Espiritismo COM Kardec”, na plataforma (rede social) Facebook.
Pois bem, voltemos a Jesus os nossos olhares. Ainda que não possamos tomar como verdadeiras todas as informações que são ditas “sobre” o Mestre, contidas nos quatro evangelhos canônicos, porque elas sofreram forte influência dos cânones da Igreja Romana, que selecionou, dentre quase noventa evangelhos existentes os quatro que seriam considerados como referência para o chamado “mundo cristão”, há elementos que figuram nos relatos de João, Marcos, Mateus e Lucas que são “validados” pelo Espiritismo.
Kardec trata do Rabi, seus feitos, seus ditos e suas pregações, além das curas que prodigalizou, essencialmente em “O evangelho segundo o espiritismo”, em “O céu e o inferno” e em “A Gênese”, embora ele também possa aparecer nas outras obras que ele escreveu, que totalizam trinta e duas. Algumas editoras, inclusive, em publicações mais antigas, chegaram a colocar uma grade comparativa, contendo, em relação aos citados evangelhos (da Igreja) os trechos que teriam correspondência com o Espiritismo. Ou seja, o capítulo e o versículo dos evangelhos que seria tratado no capítulo da obra “evangélica” espírita, acima mencionada em primeiro plano. Notemos, ainda, que na folha de rosto do “evangelho espírita”, consta, expressamente, dito por Kardec: “Contendo a explicação das máximas morais do Cristo, sua concordância com o Espiritismo e sua aplicação nas diversas situações da vida”. Aí está o “fundamento” de não ser possível encontrar algum trecho da bíblia ou do novo testamento que você pode ter em casa – eu, por exemplo, tenho a edição publicada pelos Gideões, para consulta e análise comparada com os trechos das obras espíritas – nas obras publicadas pelo professor francês e, especialmente, em “O evangelho segundo o espiritismo”.
Aquilo que foi “incluso” nos quatro evangelhos canônicos, por força da mística e da mistificação em torno de “Jesus Cristo”, o segundo elemento (personagem) da “Santíssima Trindade”, e que está associado aos dogmas e aos ritos da religião (ou das religiões) dita(s) cristã(s), obviamente, não é e nem será objeto de apreciação do Espiritismo, por absoluta incompatibilidade com as Leis Espirituais (que regem todos os mundos e se aplicam a todos os Espíritos, indistintamente), por serem meras invenções “fantásticas” do homem, desde a fundação da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e, lembremos, muitas das “confirmações” dos “mistérios” contidas nos citados quatro evangelhos, decorrem de “previsões” colocadas no Antigo Testamento, por absoluta correspondência ideológica e religiosa.
Mas, voltemos ao título que demos a esta missiva.
Nós, espíritas, somos muito pedantes!
Não obstante as claras e precisas orientações dadas pelos Espíritos Superiores a Kardec (1857-1869), preferimos, nós, compor um personagem “sobrenatural” para nos referirmos a Jesus de Nazaré, o nosso “irmão mais velho”. Há, no meio espírita, por reflexo e interferência de crenças pessoais e da similitude com as “crenças irmãs” cristãs, uma tendência – forte, marcante e preponderante – de consideração de uma alegada PUREZA de Jesus, em sua estada entre os homens do nosso orbe.
Vencida a premissa fundamental – que também é um cisma no Espiritismo atual, face a existência de duas “correntes” de pensamento, absolutamente incompatíveis entre si, e que não são “novidade” dos espíritas dos séculos XX e XXI, mas, inclusive, remonta ao próprio tempo de Kardec, pois, em paralelo à publicação das obras kardecianas, um advogado francês, Roustaing, também publicou uma obra sobre a natureza de Cristo (aí, entendemos necessário e fundamental não usar o termo “Jesus”), chamada “Os quatro evangelhos: A revelação da revelação”, em que o mesmo é apresentado como um ser agênere, sem corpo físico, “materializado” para viver trinta e três anos sobre a superfície de nosso planeta.
Esta dualidade Jesus X Cristo é uma das questões mais repetidas na “vivência” espírita do nosso tempo. E vamos mostrar que, mesmo que a obra acima mencionada, de Roustaing, não seja diretamente tratada ou estudada, os conceitos que nela estão acham-se fortemente visíveis em nossas práticas espíritas.
A questão essencial é, assim, correlata à NATUREZA de Jesus. Se ele, há dois mil anos, teria sido um espírito SUPERIOR ou um espírito PURO.
Muito já se escreveu e se escreve, hoje em dia, a respeito disto. Com tentativas de defesa de uma ou de outra tese, utilizando-se de excertos, trechos transcritos, desta ou daquela obra, assinadas por vultos espirituais (que se comunicaram via mediunidade e tiveram seus relatos “aprovados” por Rivail), ou por dissertações da lavra do próprio Kardec. Ou seja, dependendo do intérprete, encontramos frase que podem validar a tese de quem defende a existência corporal de Jesus, como espírito SUPERIOR, mas não, ainda, puro, e os que se perfilam como adeptos de outra tese, a de que Jesus já se encontrava na última condição de espiritualidade, possível, ou seja a de espírito PURO.
Já escrevemos outras vezes sobre tal temática, tendo como pano de fundo e base fundamental o contido na parte da obra kardeciana que se propõe a explicitar, uma a uma, as fases de progresso individual do Espírito, ou seja, de cada um de nós, desde a criação divina, até os níveis mais elevados, futuros, de cada um de nós, seres imperecíveis, finitos, com origem (criação) mas sem fim.
O ponto que ainda não tratamos em outros escritos, nossos, e que, também, ainda não vi ser tratado por nenhum articulista espírita – e me perdoem, caso alguém já tenha, especificamente tratado, pois não é do meu conhecimento, pois não possuo o dom da onisciência – está associado à natureza da missão espiritual de Yeshua neste planeta.
Ora, se Jesus foi UM dos modelos para a Humanidade, tendo ENCARNADO, ou seja, se utilizado de uma vestimenta material (corpo físico) para o desempenho de suas “tarefas” junto aos homens daquele tempo – e para o futuro – precisamos retornar aos conceitos que já foram apresentados, inicialmente, neste texto, para demonstrar onde está o PEDANTISMO ESPÍRITA.
O que era a Terra há dois mil anos? Com os parcos registros históricos e, também, arqueológicos, disponíveis, temos o quadro destacado de início: um planeta com seres bastante inferiores, povos bárbaros que disputavam, entre si, a hegemonia sobre territórios, que dizimavam seus “inimigos”, os escravizavam e em que a força física era superior à intelectualidade, em quase todas as situações. Poucos valores morais em vigência e a ideia de obediência a vultos militares, imperiais ou religiosos. Quase nenhum espaço para a filosofia e a liberdade de pensamento, por consequência. Neste cenário, em que a Terra estaria tentando deixar para trás o estágio inicial de desenvolvimento dos mundos (primitivo) para se caracterizar no segundo degrau (o de provas e expiações), qual seria a razoabilidade de vir um espírito “dos mais desenvolvidos”, em “condição mais adiantada dentre as conhecidas”, um ser PURO?
Mais natural seria receber, como orientador, como conhecedor das Leis Espirituais e para fazer jus ao único título que ele aceitou ser chamado pelos discípulos – Mestre – que fosse um espírito SUPERIOR.
Vejamos a definição que os Luminares que trabalharam com Rivail, dão a este termo: “Segunda classe. Espíritos Superiores — Reúnem a ciência, a sabedoria e a bondade. Sua linguagem, que só transpira benevolência, é sempre digna, elevada, e frequentemente sublime. Sua superioridade os torna, mais que os outros, aptos a nos proporcionar as mais justas noções sobre as coisas do mundo incorpóreo, dentro dos limites do que nos é dado conhecer. Comunicam-se voluntariamente com os que procuram de boa fé a verdade e cujas almas estejam bastante libertas dos liames terrenos, para a compreender; mas afastam-se dos que são movidos apenas pela curiosidade ou que, pela influência da matéria, se desviam da prática do bem” (isto figura no item 111, de “O livro dos espíritos”).
Jesus, assim, pelo que dele conhecemos, conforme os textos incluídos na Codificação, era uma personalidade ENCARNADA que reunia “ciência, sabedoria e bondade”, proporcionando, a partir dos seus ensinos e, também, dos fenômenos espirituais que ele protagonizou (curas e outros, de efeitos físicos), “as mais justas noções sobre as coisas do mundo incorpóreo, dentro dos limites do que nos é dado conhecer”.
Mas é o trecho final deste quesito (111) que mais importa e tem relevância: “Quando, por exceção, se encarnam na Terra, é para cumprir uma missão de progresso, e então nos oferecem o tipo de perfeição a que a humanidade pode aspirar neste mundo”.
É esta, de fato, a condição real de Jesus de Nazaré. Encarnar POR EXCEÇÃO no nosso planeta, para cumprir, nele, uma missão de progresso, coletiva, oferecendo-nos o “tipo de perfeição a que a humanidade pode aspirar neste mundo”.
A CONEXÃO PERFEITA entre a parte final da questão 111 e a contida na questão 625, utilizando-se, inclusive do mesmo conceito fundamental (tipo de perfeição aspirada), é de cristalino entendimento.
Mas, os espíritas PEDANTES querem que seja, Jesus, o ser “mais perfeito entre os perfeitos”, o PURO ESPÍRITO, porque NINGUÉM pode ser superior a Yeshua, porque, se fosse, se existisse alguém, neste planeta, que já tivesse vindo ou que virá, toda a pedagogia do Mestre estaria sob suspeição e poderia (ou pôde) ser suplantada por outro. Imagine, por exemplo, o que diriam os seguidores de Krishna, de Sidarta ou de Gandhi, para ficarmos em três pequenos exemplos de avatares, quando lhes dissermos que “Jesus é mais”. Ou, em paralelo, se conhecemos MUITO MAIS do que fizeram e ensinaram esses três personagens – ou dois deles, já que Gandhi esteve integrado à cultura ocidental, sendo, pois, posterior a Jesus e por ele, também influenciado – e “descobrirmos” que, talvez, um deles possa ser SUPERIOR a Jesus, em ciência, sabedoria ou bondade”? Seria como “a casa caiu”, entre os espíritas?
Jesus é um personagem apaixonante. É, certamente, uma das mais lúcidas inteligências que já pisou neste nosso “planetinha azul”, e sua teoria aliada à prática aplicada são-nos, sim, uma das referências mais marcantes. Não é à toa que, na própria Introdução de “O Evangelho”, Kardec compõe um ensaio magistral sobre a relação do Espiritismo com as doutrinas, incialmente, na História, de Sócrates e Platão, e as de Jesus, formando, entre elas, um vínculo indissociável.
Veja que Kardec não remonta a Moisés, embora reconheça a validade dos livros que o legislador do Antigo Testamento tenha deixado à Humanidade, sobretudo “os dez mandamentos”, mas vincula o pensamento espiritista ao de Jesus (e não ao Cristianismo, que é diferente daquele porque está repleto de dogmas, sacramentos, rituais e liturgias) e à filosofia grega de Sócrates e seu discípulo Platão.
Menos, senhores espíritas! Bem menos!
Caso contrário este pensamento (ou analogia) vinculado a outros – como por exemplo a chamada “destinação espiritual do Brasil”, como “pátria do Evangelho”, “coração do mundo”, “terra de promissão”, etc., nos aproxima ao velho e corroído conceito de “terra prometida”, aspiração até hoje dos judeus palestinos.
Precisamos ser mais fraternos entre nós e para com os demais adeptos de outras filosofias, seitas ou religiões. Necessitamos ser mais razoáveis em relação aos fundamentos da própria Doutrina Espírita. Carecemos de sermos mais humildes e menos vaidosos ou presunçosos, achando que os “espíritas” têm melhores informações sobre as Leis Espirituais. Conhecimento é prática. É o que fazemos dele. É como utilizamos este conhecimento para nossa própria “libertação” das amarras do mundo físico, alçando compreensão e sabedoria em nossos vôos.
Jesus, Espírito SUPERIOR nos deixou apropriada e singular mensagem, que vige até hoje. Kardec, Espírito PRUDENTE (veja a Escala Espírita, a propósito, no item 110), complementou a pedagogia de Jesus e explicou seus feitos, apresentando-nos as Leis Espirituais e seus reflexos sobre os Espíritos.
Está mais do que na hora de tentarmos nos aproximar “em espírito e verdade” dos demais seres que transitam neste plano, ao invés de continuarmos erigindo muros (ou altares) para nos diferenciar dos que nos são, como ele, Yeshua, nos apresentou, irmãos. E quando disse: “meus discípulos serão reconhecidos por muito se amarem”. Sem pedantismo, portanto!