Kardec nas telas brasileiras – um filme e um documentário
Por Dora Incontri
Kardec deve ser sim cada vez mais estudado.
No ano em que se celebram os 150 anos de morte de Kardec, dois filmes serão lançados no Brasil sobre o fundador do espiritismo francês. Um, Kardec, a história atrás do nome, longa-metragem, estreia logo agora, dia 16 de maio, sob a direção de Wagner de Assis, baseado na obra de Marcel Souto Maior, Kardec, a biografia.
O outro é um documentário em 8 episódios, que será exibido na Prime Box Brasil, no segundo semestre, Em busca de Kardec, com direção de Karim Akidiri Soumaïla, cineasta francês radicado no Brasil, com roteiro dele e meu, pela Lighthouse produções.
Ao primeiro, já assisti numa pré-estreia e o segundo, estamos em fase de pós-produção, mas falta ainda um pouco de verba e por isso estamos fazendo um financiamento coletivo pelo Catarse (veja aqui).
Falarei aqui dos dois, com a licença do leitor, com um tanto de paixão. Do segundo, por motivos óbvios, pois estou desde 2013 nesse projeto e só agora ele está nascendo. Do primeiro, porque fiquei muito agradavelmente surpreendida com o resultado do longa de ficção.
A dificuldade de se fazer um filme sobre um grande líder espiritual, é dar o tom certo, para que não pareça proselitismo tosco e para que o personagem não soe como um ser distante, com voz excessivamente adocicada e olhares extáticos. Costumo comentar que o célebre filme da década de 50, Os dez Mandamentos, com Charlton Heston, é ótimo na primeira parte, enquanto o ator interpreta Moisés em seu período egípcio. Depois que ele se converte no Moisés, condutor dos judeus, rumo à terra prometida, a representação de Heston fica ridícula, ele perde a humanidade e assume aquele ar de êxtase forçado.
Pois então, felizmente, tanto o ator Leonardo Medeiros, quanto o diretor Wagner de Assis, acertaram a mão em Kardec. Ele aparece como um ser humano, que chora, se irrita, se cansa. Seu heroísmo, ao enfrentar a igreja e a ciência do século XIX, com todas as perseguições e dificuldades, para demonstrar a existência dos espíritos, se passa de maneira simpática, natural e, por isso mesmo, emocionante.
A atriz que faz Amélie Boudet, a esposa de Kardec, Sandra Regina Corveloni, também ajuda com sua interpretação firme e delicada de uma grande companheira.
Ambos, Kardec e Amélie são apresentados fartamente como educadores – que eram – e fica evidente o caráter crítico que tinham em relação ao autoritarismo político, às injustiças sociais e aos reveses de meados do século XIX, que infelizmente ainda existem em pleno século XXI. Muito oportuna, por exemplo, nesse momento brasileiro de ingerência religiosa em escolas públicas, a cena em que o prof. Rivail se opõe à retomada da educação pela Igreja, quando se ensaiava na França a escola pública laica desde a Revolução Francesa.
O filme retrata um pequeno trecho da vida de Rivail/Kardec, mas o mais decisivo, justo aquele em que ele se defronta com as mesas girantes e decide pesquisar o que havia por trás daquele modismo de salão. Sua intenção de estabelecer um método para analisar os fenômenos se destaca no roteiro.
A ambientação do filme está muito bem feita, somos levados à Paris do século XIX e ainda com a Notre Dame, inteira.
Na mesma época no ano passado, em que Wagner de Assis estava filmando Kardec nas ruas de Paris, estávamos também fazendo nosso documentário com outra perspectiva, mas de certa forma complementar ao trabalho ficcional, que não deixa, como é natural, de ter suas licenças poéticas.
No documentário Em busca de Kardec, não poderia haver licença poética, para narrar a história de Kardec e do espiritismo, da França do século XIX ao Brasil do século XXI. Documentários pedem estrita fidelidade aos fatos e dados bem articulados. E assim, Karim, o diretor-narrador-personagem, entrevistou sociólogos, antropólogos, historiadores franceses e brasileiros, mas também adeptos, médiuns, líderes espíritas. Entretanto, a poesia fica por conta da sensibilidade da narrativa do próprio Karim, que está em busca de sua filha, falecida num acidente e também, por isso, em busca de Kardec e do que a filosofia espírita oferece para o luto de um pai.
Em Busca de Kardec foi filmado em Paris, Lyon, Yverdon (onde o menino Rivail estudou com Pestalozzi) e depois no Brasil, na Bahia, no Rio, em Minas e em São Paulo. No final, ao se deparar com cartas inéditas de Kardec, do arquivo Canuto de Abreu, que estão aqui no Brasil sob a responsabilidade da Fundação Espírita André Luiz, Karim encontra uma surpresa. Mas dessa informação não falarei! Sem spoiler!
O documentário não se furta a mostrar que o espiritismo não se faz num movimento unificado, que ele é multifacetado entre diferentes perspectivas: seja de adeptos que tendem mais para a ciência e para a filosofia, seja por outros que o praticam mais como uma religião, seja pela visão acadêmica, com suas abordagens sociológicas, ou ainda por abordagens mais progressistas. O interessante é que o Kardec de Wagner de Assis, ao retratar o personagem com fidelidade a quem ele de fato foi e ao que ele de fato fez, não vai desagradar nenhuma vertente do espiritismo.
De qualquer forma, penso que Kardec está bem lembrado, bem homenageado com essas duas produções, que podem emocionar os espíritas e informar os não espíritas, dando uma contribuição histórica importante no país, que tem hoje o maior número de espíritas do mundo