Ainda vale seguir Kardec depois de 215 anos de seu nascimento?

Foto de Allan Kardec recentemente escaneada por Charles Kempf, até então desconhecida.

Dora Incontri

Homenagear Kardec no dia do seu aniversário é tecer reflexões sobre a pertinência de ainda nos dizermos espíritas kardecistas em pleno século XXI, quando muitas das ideias defendidas em seus livros estão hoje distantes do horizonte acadêmico, rejeitadas e consideradas envelhecidas pela filosofia contemporânea.

Kardec permaneceu no limbo da ciência, da filosofia e da espiritualidade. Filósofos não o reconhecem como tal, cientistas declaram com desprezo que o espiritismo é uma pseudociência e as tradições espirituais muitas vezes excluem o espiritismo de um reconhecimento para um diálogo.

Então, ainda vale seguir Kardec?

A questão se resume no seguinte: ou sobrevivemos à morte e podemos nos comunicar com os que ficaram ou a morte é o final de tudo. Admitida e primeira hipótese, as ideias que Kardec dela derivou – e que hoje são banidas da filosofia contemporânea – podem ser defendidas facilmente. Entre elas, a existência de Deus, o evolucionismo, com uma teleologia na história e da natureza, uma conexão espiritual entre todos os seres do universo, uma ética de se colocar os valores espirituais acima da ganância terrena, e assim por diante.

Kardec pensava haver reunido evidências suficientes de que a vida continua e de que os espíritos se comunicam. Outros depois dele percorreram o mesmo caminho na segunda metade do século XIX e início do século XX e chegaram à mesma conclusão, como William Crookes, Russel Wallace, Gustave Geley, Friedrich Zölnner e tantos mais. No século XX, temos, por exemplo, a importante pesquisa de Ian Stevenson, com robustas evidências da reencarnação. Mas esses e outros pesquisadores de ontem e de hoje foram tão silenciados, ignorados e enjeitados quanto Kardec. A ciência chamada mainstream não abre espaço para esse tipo de pesquisa, porque ela fere paradigmas fortemente estabelecidos, porque não é uma ciência fácil de se fazer no controle e na repetição dos fenômenos mediúnicos, porque não é uma ciência que traga inovações tecnológicas ou produtos lucrativos e muito menos prestígio acadêmico. Talvez haja outras hipóteses explicativas dessa exclusão desdenhosa.

Entretanto, para quem é médium desde que nasceu (como é o meu caso) e vive cercado de fenômenos que outras ciências não explicam e que poderiam comprometer a saúde mental se não fossem aceitos como mediúnicos e se não tivéssemos instrumentos para lidar com isso, o espiritismo deixa de ser uma filosofia do limbo acadêmico, para se tornar uma necessidade e uma possibilidade de equilíbrio e orientação.

Essa é uma das grandes contribuições de Kardec: como estava convencido da realidade do mundo espiritual e do intercâmbio com os espíritos, ele não ficou indefinidamente repetindo experiências para comprovar os fenômenos e nem sequer parou nessa pesquisa inicial. Ele tratou de estudar como funcionava aquilo e de oferecer diretrizes práticas e parâmetros éticos de como lidar com a mediunidade, de maneira segura, saudável e útil.

E nessa orientação, Kardec foi único. Nunca ninguém antes dele e ninguém depois dele fez esse trabalho e de forma tão clara, tão crítica e tão competente. Por isso, acho que o Livro dos Médiuns, muito pouco estudado e aplicado no movimento espírita brasileiro, é o livro de Kardec que permanece irretocável.

Os outros trazem uma visão de mundo, uma filosofia e uma ética que para mim e para muitos fazem sentido, mas precisam ser relidas com seus contextos históricos e precisam ser transpostas para um diálogo com problemas de hoje e visões contemporâneas.

Kardec é pois uma referência, um início, uma base. Um mestre que não se intimidou em querer avançar além da mera apreciação de um fenômeno, mas quis deixar o resultado de seus diálogos com os espíritos e uma filosofia coerente, bem articulada, que pudesse nos ajudar a melhorar a nós mesmos e ao mundo.

 

Há em Kardec a preocupação do educador, de tornar as coisas claras, práticas, aplicáveis, úteis. Há a intenção de um reformador social de querer transformar a sociedade, torná-la mais justa, mais progressista, mais humana, mais fraterna – dentro do horizonte que era possível a um discípulo de Pestalozzi na primeira metade do século XIX.

Por isso, releio, revejo, até critico Kardec em alguns pontos (estou escrevendo um livro sobre toda essa releitura que faço), mas permaneço espírita kardecista – e hoje temos de adotar sim esse adjetivo, já que o espiritismo tomou muitas formas em nosso país. Porque o essencial de Kardec, justamente esse manejo racional e ético da mediunidade, esse entendimento progressista e pedagógico do mundo e da vida, ainda fazem muito sentido para mim e considero que ainda não deu o que tinha que dar como contribuição nesse mundo, porque ainda nem compreendido foi.

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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