Chico Xavier não é Kardec!

Por Dora Incontri

Não é objetivo deste artigo atacar quem quer que seja, por manifestar opinião contrária à que vou expor. Mas há questões que devem ser tratadas com cuidado para não se tornarem elemento de confusão. A crítica franca, aberta, racional, própria dos postulados espíritas, deve ser praticada, fraternalmente claro, sob pena de imergirmos de novo nas trevas medievais. Onde não houver questionamento e crítica, onde não houver debate transparente, certamente haverá dominação, ignorância, apatia e graves entraves à autonomia da razão humana e ao desenvolvimento espiritual da humanidade.

Como em minhas viagens pelo Brasil afora, sou indagada sobre a polêmica em foco, resolvi manifestar-me publicamente para examiná-la com as ferramentas críticas que tomo emprestado de Kardec.

Que Chico Xavier seja a reencarnação de Kardec não seria uma hipótese a ser discutida, porque se trata de um absurdo tão sem fundamento que deveria chocar o bom senso de qualquer um (já vi até não-espíritas que conhecem superficialmente a doutrina se mostrarem perplexos diante da idéia). Mas já que se trata de uma afirmação na pena de alguns escritores e médiuns, atuantes no movimento, não podemos deixar de analisá-la.

AS AFIRMATIVAS SOBRE REENCARNAÇÕES

Em primeiro lugar, deveríamos evitar a leviandade que tomou conta de escritores e médiuns espíritas nos últimos anos: afirma-se com o maior descompromisso e sem nenhuma demonstração de evidência que fulano é reencarnação de cicrano e geralmente são pessoas famosas, já desencarnadas, ou personagens históricas – que não podem contradizer tais afirmações. É perfeitamente legítimo o estudo de casos de reencarnação, mas eles precisam ser fruto de pesquisa, de preferência de pessoas próximas e, se alguma hipótese for apresentada de personalidades de projeção, deve-se fazê-lo com todo o cuidado, com argumentos bem fundamentados e ainda assim não passará de uma hipótese a ser examinada e comentada por outros pesquisadores.

Um exemplo positivo de um estudo com critério é Eu sou Camille Desmoulins, de Luciano dos Anjos e Hermínio Miranda. São centenas de páginas de pesquisa, em que a personalidade em questão participou, fez regressão de memória, e o autor realizou exaustivas buscas de documentos históricos, etc. Outro estudo sério é o de Hernani Guimarães de Andrade, com personagens desconhecidas – crianças com lembranças de outras vidas – em seu livro Reencarnação no Brasil. (De passagem, fica aqui a nossa carinhosa vibração ao Hernani, desencarnado há alguns dias). Isso apenas para citar autores brasileiros. No plano internacional, há, por exemplo, a excelente pesquisa feita por Ian Stevenson.

Outra forma de estudo de personalidade através de reencarnações foi a realizada pela saudosa e sensatíssima médium Yvonne A. Pereira, no caso de suas próprias vidas passadas. Não houve aí a identificação das personalidades históricas ou a comprovação dessa identidade, mas uma regressão de memória, promovida pelos Espíritos superiores, para mostrar a trajetória evolutiva de um espírito feminino. Trata-se assim de um estudo psicológico através dos tempos, sem compromisso com a evidência histórica. Uma possibilidade interessante e legítima.

O que não pode acontecer – e acontece com bastante freqüência – é simplesmente alguém sair anunciando que fulano foi tal pessoa e aceitar-se isso como fato consumado. Aí exorbita-se do estudo de caso, da pesquisa científica, para se tornar mediunismo inconseqüente e dogmatismo sem fundamento.

O pior é quando tais afirmativas contrariam as evidências mais óbvias e a coerência mais superficial entre uma personalidade e outra, que se supõe ser a mesma.

Ou seja, para falar de reencarnação é preciso usar os critérios próprios do espiritismo: pesquisa científica, coerência racional, podendo-se valer igualmente da intuição mediúnica. Mas se essa intuição vier desacompanhada dos outros aspectos, pode se tornar misticismo.

A IDENTIDADE DO EU

Um dos pontos fundamentais demonstrados pelo espiritismo, que aliás se insere plenamente na tradição socrático-platônica-cristã, é a idéia de uma identidade individual, permanente, que está em progresso e mutação, mas guarda um eu reconhecível, com características próprias de personalidade, com memórias e potencialidades particulares. Até os Espíritos puros, que atingiram a perfeição, cuja personalidade nos é difícil examinar, mantêm, segundo a doutrina espírita, ainda e sempre sua individualidade.

Nos estudos criteriosos de reencarnação, essa verdade salta ao olhos: ninguém poderia negar que Luciano dos Anjos é Camille Desmoulins. As duas individualidades são parecidíssimas. Até nos traços físicos. E isso não é tão incomum. Ian Stevenson faz um estudo intrigante dos sinais de nascença. Às vezes, a ligação com a encarnação anterior é tão vívida, que a criança nasce até com marcas do tipo de morte que teve ou algum trauma sofrido.

Assim como na comunicação de um Espírito por um médium, para sua identificação devem entrar uma série de fatores, evidências, muitas inesperadas, aparentemente fortuitas, mas que no seu conjunto conferem uma forte sensação de que a personalidade comunicante é aquela: na reencarnação, dá-se o mesmo. Apenas um quadro de muitos detalhes, coincidências significativas, semelhanças, nos dá alguma convicção de que tal pessoa esteja ali, reencarnada.

Se nos limitássemos a tratar de casos de reencarnação que obedecessem aos critérios mencionados, evitaríamos lançar a idéia no ridículo.

O CASO CHICO-KARDEC

Poderia escrever muitas páginas com todos os pontos de total dissemelhança entre a personalidade de Kardec e de Chico. Em primeiro lugar, estabeleçamos alguns parênteses. O que sabemos de mais sólido sobre outras existências de Kardec – o resto são inoportunas especulações – são as duas que ele aceitava: a de druida e a de Jan Huss (esta, segundo informação que Canuto de Abreu teria visto em seus manuscritos, antes da Segunda Guerra). Mas, nos três momentos conhecidos, dá para notar a coerência de uma personalidade corajosa, viril, segura, austera, de mente límpida e clara (o estilo de Jan Huss é o mesmo de Kardec, simples e cristalino, preciso e firme) e sempre dedicada à educação. Os druidas eram sacerdotes-educadores, Huss foi reitor da Universidade de Praga e Rivail/Kardec foi educador durante mais de trinta anos na França. Quanto ao seu estilo, ele mesmo adverte que não tinha vocação poética, não apreciava metáforas, mas queria atingir o máximo de didatismo e simplicidade. Para isso, tanto Huss quanto Kardec escreveram gramáticas.

Huss desafiou a Igreja Católica e morreu cantando na fogueira em 1415, depois de ter escrito cartas belíssimas da prisão, mostrando sua firmeza e serenidade. Kardec desafiou a Ciência oficial, a religião tradicional e todo sistema acadêmico estabelecido, fundando um novo paradigma para o conhecimento humano, numa síntese genial. Quando estudamos sua vida e sua personalidade, vemo-lo mover-se com absoluta segurança de si, com total equilíbrio, desde os primeiros textos pedagógicos aos 24 anos, até a redação da última Revista Espírita, que deixou pronta antes de morrer. Os próprios Espíritos Superiores o chamam de mestre. O Espírito da Verdade o trata de forma amorosa, aconselhando-o sempre com respeito ao seu livre-arbítrio, à sua capacidade intelectual e à sua estatura moral.

Kardec se ocultou tanto atrás da obra, pela sua extrema modéstia e reserva (que não era a humildade mística de Chico, que se autodenominava verme, besta, pulga, cisco …), que os próprios adeptos do espiritismo não sabem aquilatar-lhe a grandeza.

Agora, analisemos a pessoa Chico Xavier, que conheci desde a minha primeira infância. Trata-se de uma personalidade doce, amorosa, bastante feminina, emocional, mística, com forte vocação literária e poética (ao contrário de Kardec) mas uma personalidade fraca. Basta ver sua relação com Emmanuel. Seu guia espiritual, aliás forte e altivo, sempre manteve com Chico uma postura disciplinar, rígida, admoestando-o se o via fraquejar.

Vêem-se diversas situações desse tipo, na leitura do livro As vidas de Chico Xavier, de Marcel Souto Maior, que considero a biografia mais confiável e mais bem escrita, porque feita por um profissional do jornalismo, entre tantas que mais parecem relatos de vida de santo da Idade Média, pela linguagem melada, pela louvação exagerada e pelo cunho miraculoso. Basta lembrar de Chico, gritando em pânico, porque o avião em que estava ameaçava cair e Emmanuel, diante dele, dizendo: “Dá testemunho da tua fé, da tua confiança na imortalidade! (…) morra com educação!” . Este o Espírito que enfrentou a fogueira, cantando, sem retirar uma palavra do que dissera? A resposta, o próprio Emmanuel já deu ao Chico certa vez: “Meu filho, você é planta muito fraca para suportar a força das ventanias. Tem ainda muito o que lutar para um dia merecer ser preso e morrer pelo Cristo.”

Noutras ocasiões, os próprios encarnados tiveram de adverti-lo severamente, como no caso da adulteração do Evangelho segundo o Espiritismo, na década de 70, que levou Herculano Pires a escrever um livro, Na Hora do Testemunho, no qual quase obrigou Chico à retratação pública, por ter apoiado indiretamente a edição adulterada.

Chico é, pois, um Espírito bom, em processo de resgate e regeneração, ainda enfrentando conflitos internos e desequilíbrios e tendo necessidade do freio curto de Emmanuel para se manter na linha das próprias obrigações. Nunca, diga-se, ele mesmo se viu ou se assumiu de outra forma. Kardec, ao contrário, já 600 anos atrás não revela conflito, não se mostra abalado por nada. Seu companheiro de Reforma, Jerônimo de Praga, chegou a abjurar, com medo da fogueira. Arrependeu-se depois e enfrentou a morte com galhardia. Mas em Jan Huss não há hesitação ou fraqueza, apenas a altivez do Espírito que já atingiu a estatura de um missionário.

Da mesma forma Kardec. Nem sabemos o quanto ele sofreu e foi perseguido, pois não se queixava. Apenas nas entrelinhas de Obras Póstumas, quando se refere por exemplo à Sociedade Espírita de Paris como um ninho de intrigas, é que de longe vislumbramos o que deve ter passado. Mas nunca o vemos abatido ou choroso.

Quanto à linguagem de Chico é também oposta à de Kardec. Trata-se de uma linguagem literária, ornamentada, própria do médium – pois sabemos que o médium influencia as comunicações. Se Chico não tinha cabedal literário nesta vida, é certo que o trouxe de outras, para se tornar o intérprete de tantos literatos do Além. Se Kardec tivesse escrito, por exemplo, Mecanismos da Mediunidade, seria certamente numa linguagem bem mais objetiva, menos literária e mais digerível.

Vou mais longe. Sem ofensa ou menosprezo pelo grande Espírito de Emmanuel, ele próprio fica bem abaixo da estatura espiritual de Kardec. Basta lembrar que, enquanto Jan Huss estava morrendo na fogueira por criticar os abusos da Igreja e duzentos anos depois, seu discípulo Comenius estava inaugurando a Pedagogia moderna, em oposição à educação jesuítica; Emmanuel – leia-se Manuel da Nóbrega – estava ainda a pleno serviço da Igreja, imerso no projeto de catequese jesuítica. Tanto ele quanto Anchieta talvez tivessem suas críticas ao movimento de que participavam e sem dúvida deram contribuição meritória ao início da educação brasileira. Mas estavam ainda com as correntes mais conservadoras da história, ao passo que Huss (depois Kardec) inaugurara já novas relações entre Deus e o homem, sendo retomado na Reforma de Lutero e aprofundado na proposta educacional de Comenius, que estava a anos luz adiante da proposta jesuíta.

Com isso, não estou diminuindo a importância nem da personalidade histórica de Manuel da Nóbrega, nem do Espírito Emmanuel, entidade que respeito e amo muito, nem menosprezando a obra que fez por intermédio do Chico. Mas é preciso reconhecer a superioridade de Kardec, coisa que tanto Emmanuel, quanto Chico, sempre reconheceram. Certo dia disse Emmanuel a Chico – e esta é uma passagem conhecida de todos – que se ele, Emmanuel deixasse Jesus ou Kardec, o pupilo deveria deixá-lo. Ora, o guia se submetia a Kardec, como Kardec poderia ser seu tutelado?

O QUE ESTÁ POR TRÁS DESSA IDÉIA

Tudo isso poderia não passar de uma discussão vazia, simples questão de opinião, sem maiores conseqüências. Mas vejo graves problemas nessa polêmica e só por isso meti-me a falar no assunto. Afirmar que Chico Xavier é reencarnação de Kardec é submeter Kardec ao Chico … logicamente, pela lei da evolução, o mais recente é mais evoluído e portanto vai mais adiante do que o anterior. O que se esconde por trás dessa idéia subliminar, implícita na tese de um ser reencarnação do outro? É que abandonamos, ou pelo menos desvalorizamos, os critérios de racionalidade, objetividade, cientificidade, além dos aspectos pedagógicos e da linguagem clara e democrática de Kardec, com todo seu pensamento de vanguarda – para valorizarmos mais a linguagem melíflua (muitas vezes piegas) de Chico, o espiritismo visto predominantemente como religião e os aspectos conservadores tanto do pensamento do médium, quanto de Emmanuel.

Querem ver um exemplo? Kardec, em pleno século XIX, aclamava todas as conquistas da emancipação feminina. Em artigos na Revista Espírita, apóia a reivindicação do voto feminino, parabeniza as primeiras mulheres a se formarem médicas … exalta a participação intelectual da mulher. Emmanuel não deixa de mostrar, em diversas passagens de seus livros, ranços de machismo lusitano, romano e da igreja, sempre colocando a mulher ideal como a mais submissa e calada possível.

A tese de que Chico seria Kardec desqualifica Kardec e exalta indevidamente Chico Xavier, colocando-o num pedestal de idolatria que nenhum ser humano deve ocupar. E isso está bem situado nos rumos que o movimento espírita brasileiro tem tomado: trata-se de um movimento que exalta personalidades mediúnicas (quando Kardec mal nos deixa conhecer o nome dos médiuns que trabalhavam com ele, porque não se constrói liderança em mediunidade, como os antigos pajés da tribo ou as passadas pitonisas da Antigüidade), preferindo o emocionalismo à racionalidade, o igrejismo ao debate filosófico e científico.

É por isso que meu trabalho tem sido no sentido de resgatar Kardec e seus antecessores diretos: Comenius, Rousseau, Pestalozzi – todas personalidades de vanguarda, com pensamento social avançado, com projetos libertários de educação. É desse caldo cultural que nasceu o espiritismo. Transplantado para o Brasil, ganhou as cores místicas da cultura católica, de herança jesuítica, que formou a nação brasileira. É verdade que apenas um povo com o nosso coração e com a criatividade e a intuição mediúnicas como as nossas poderia acolher o espiritismo. É verdade que Emmanuel continuou a sua obra de primeiro educador do Brasil e fez bem a sua parte, por intermédio do Chico, que também fez a sua. Mas não é por isso que devemos colocar os carros na frente dos bois e perder a raiz pedagógica, racional e consistente que nos identifica. E essa raiz é representada por Kardec, que por todas as razões vistas e muitas outras que não é possível comentar aqui, não reencarnou como Chico, não reencarnou ainda, porque teríamos de reconhecê-lo por sua mente poderosa, por sua liderança equilibrada e segura e por trazer uma contribuição muito melhor que a de Chico e mesmo melhor que a do próprio Kardec, pois senão não haveria razão para reencarnar-se.

Texto extraído do folheto distribuído pela editora Publicações LACHÂTRE,
por ocasião da XI Bienal do Livro, realizada no Rio de Janeiro, retirado do
Informativo Lachâtre, maio/junho de 2003.

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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