O Céu, o Inferno e a campanha dos ateus
Por Fernando Soares Campos
Em meados dos anos 1990 (infelizmente não lembro precisamente mês e ano), fui convidado a participar da composição de uma mesa de debate no Seminário Arquidiocesano São José, localizado no bairro do Rio Comprido, aqui no Rio de Janeiro. O tema se reportava aos diversos conceitos de Céu e Inferno, conforme as orientações de religiões diversas. A plateia era composta de seminaristas, leigos católicos e convidados especiais. Os integrantes da mesa deveriam se posicionar como representantes de credos religiosos ou simplesmente praticantes de tal ou qual doutrina religiosa. Também participou um notável professor do Instituto, o qual se declarava ateu.
Estavam ali representantes do Candomblé, do Evangelismo Protestante, da Igreja Católica (evangelismo católico) do Ateísmo e eu, estudante da Doutrina Espírita. E na condição de mediador, um seminarista, destacado líder estudantil do Seminário Arquidiocesano São José.
Representando a Igreja Católica, ninguém menos que Dom Estêvão Bettencourt, teólogo, professor do Instituto Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro.
O evento representava, simbolicamente, a última aula do curso de Teologia para a turma de seminaristas que se graduavam naquele ano.
Ao ser convidado para participar do evento, imaginei que, no mundo “avançado” em que nos encontrávamos alunos de cursos de Teologia já haveriam de ter tido acesso a todas as visões de Céu e Inferno pregadas por todas as doutrinas religiosas do mundo. Principalmente pelas mais ativas em território nacional. Ledo engano. Ali, pude deduzir, em vista das perguntas que vieram da plateia, que ignoravam tudo, tudo mesmo, sobre os conceitos da Doutrina Espírita e das outras religiões. Pelo visto, ali o ensino se resumia aos dogmas da Igreja Católica. E os efeitos da função cognitiva do ser humano estariam submetidos simplesmente à aceitação de uma fé cega. (O Espiritismo orienta seus seguidores estimulando-lhes a fé fundamentada em argumentos científico-filosóficos, sobrepondo a lógica à mera emotividade.)
Dom Estêvão Bettencourt foi o primeiro a expor noção do que a Igreja Católica prega sobre o que venha a ser o Céu e o Inferno. E eu esperava que, a esse respeito, ele discorresse sobre duas regiões bem definidas, para onde iriam todas as almas depois da morte do corpo físico. Cada uma sendo admitida em ambiente próprio ao seu merecimento: as virtuosas para um lado, as pecadoras para o outro, de maneira definitiva, para todo o sempre; conforme me fora ensinado quando criança, na Cruzada Infantil.
Mas eis que o eminente sacerdote católico me surpreendeu. Falou de Céu e Inferno como sendo resultado de profundas impressões que o espírito leva na consciência, a qual, depois da passagem para dimensões quintessenciadas (com a morte do corpo carnal), não mais possuía o material denso para encobrir ou dissimular os verdadeiros valores morais que alimentou enquanto encarnada. Naquele estado, o espírito, ou alma, na mais perfeita liberdade de consciência sobre si mesmo e seus atos, seria o seu próprio e único juiz, impondo-se sentimentos de culpa e consequentes remorsos que o levariam a sofrer atrozes dores morais que conseguira evitar na existência terrena; ou, no caso dos que bem procederam durante sua estada na Terra, se rejubilaria entre os justos, aqueles que lhe antecederam na passagem para o Além.
“Ora! – pensei – Mas esse é, basicamente, o conceito de Céu e Inferno de acordo com os princípios doutrinários do Espiritismo.” Em momento algum Dom Estêvão se referiu a Lúcifer e suas falanges espetando tridentes nas nádegas dos pecadores que teriam sido condenadas a viver em regiões infernais bem definidas. Nada de caldeirões ou lagos de enxofre fervente, não falou de monstruosas criaturas do tipo lobisomem torturando a pobre alma por toda a eternidade.
Porém, se na explanação de Dom Estêvão identifiquei aparente concordância entre a visão espírita e católica sobre o destino das almas desencarnadas, o mesmo não aconteceu quando fomos questionados a respeito da criação do ser humano, da reencarnação versus ressurreição e comunicação com os “mortos”.
Conforme a religião católica, o ser humano nasce para uma única existência; a alma seria criada no momento da concepção do corpo e o animaria para jornada única na Terra: nascimento, vida e morte. Depois disso, aguardaria o dia do juízo final, com a ressurreição dos mortos – na oração “O Credo”, os católicos professam a crença na “ressurreição da carne”.
(O problema é quando a gente questiona o porquê de tanta gente nascer saudável, com o corpo em perfeita conformação, algumas externando, ainda em tenra idade, desenvolvido grau de inteligência; enquanto outras nascem com deformações físicas e profundas dificuldades para exteriorizar de forma compreensível o produto de suas funções mentais.)
De acordo com a doutrina dos espíritos, o espírito (princípio espiritual) se formaria em milenar desenvolvimento, originando-se embrionário no reino mineral, passado por estágios de evolução no reino vegetal e animal, até encarnar em corpo hominal, simples e ignorante; a partir daí iniciando jornada evolutiva, agora consciente de sua própria individualidade. As multirreencarnações teriam como objetivo o autoaperfeiçoamento, até quando não mais necessitasse da roupagem carnal, passando a viver em corpo de matéria mais sutil, quintessenciada, mas ainda submetido a processo evolutivo.
Em cada reencarnação, o esquecimento das reencarnações anteriores seria estabelecido por natural dispositivo, a fim de que o espírito não se perturbasse com as reminiscências do passado.
Transcrevo abaixo trecho do livro “Nosso Lar”, colônia espiritual levada às telas de cinema, atualmente em cartaz em todo o Brasil, sob o mesmo título do livro psicografado por Francisco Cândido Xavier e ditado pelo espírito André Luiz.
Dois espíritos desencarnados, vivendo na colônia, dialogam, e um deles explica para o outro:
“…antes de tudo, é indispensável nos despojarmos das impressões físicas. As escamas da inferioridade são muito fortes. É preciso grande equilíbrio para podermos recordar, edificando. Em geral, todos temos erros clamorosos, nos ciclos da vida eterna. Quem lembra o crime cometido costuma considerar-se o mais desventurado do Universo; e quem recorda o crime de que foi vítima, considera-se em conta de infeliz, do mesmo modo. Portanto, somente a alma, muito segura de si, recebe tais atributos como realização espontânea. As demais são devidamente controladas no domínio das reminiscências, e, se tentam burlar esse dispositivo da lei, não raro tendem ao desequilíbrio e à loucura.”)
A certa altura, o debate se polarizou entre mim e Dom Estêvão; à época, declarado inimigo do Espiritismo, autor de pequena obra que denota contundente manifesto contra a chamada Codificação Kardequiana, a base da Doutrina dos Espíritos.
Notando que a plateia se empolgava e parecia querer se esclarecer mais e mais sobre os conceitos espíritas, Dom Estevão, certamente incomodado devido a que a maior parte das perguntas era encaminhada a mim, alertou: “Não é porque um sopro de lógica acena para a nossa mente que devemos aceitá-lo como expressão da verdade”. Lógico! Até porque “um sopro de lógica” não pode ser de imediato aceito como lógica plenamente desenvolvida. Mesmo assim, é preferível acompanhá-lo, analisando-o com racionais critérios, a fechar a mente sob a ditadura de um dogma qualquer.
A campanha de ateus e agnósticos no Brasil
Em Porto Alegre, RS, e Salvador, BA, foi deflagrada campanha publicitária institucional, com o uso de outdoors, patrocinada pelos membros da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA), que declaram ter o propósito de combater o preconceito e discriminação que supostamente sofrem por parte de religiosos.
Um dos cartazes mais utilizados pelos ateus que aderiram à campanha na internet veicula a frase “Religião não define caráter”. Certamente um explícito sofisma (argumento ou raciocínio concebido com o objetivo de produzir a ilusão da verdade, que, embora simule um acordo com as regras da lógica, apresenta, na realidade, uma estrutura interna inconsistente, incorreta e deliberadamente enganosa – Houaiss) tomado como verdade absoluta.
O caráter de uma pessoa é moldado sob inúmeros fatores; circunstâncias e comportamentos que, adquirindo características de hábitos ou viciações, podem consolidar ou alterar as características morais dos indivíduos, aquelas que lhe são doutrinadas ainda na infância ou adolescência. O livre-arbítrio lhe faculta escolher os caminhos. A família, a escola, as amizades, a política, as filosofias, as religiões… tudo isso e muito mais, principalmente sua solidão espiritual, aliada, inclusive, a fatores biológicos, constituem a forja de um caráter bom, mau ou intermediário (refiro-me às nuances).
Talvez a frase mais adequada para a campanha da ATEA teria sido “Religião não é o único fator que define o caráter”. Igualmente óbvia, mas um tanto distanciada de conotação sofista.
Observadores afirmam que a ATEA decidiu-se pela campanha a partir das declarações de um apresentador de televisão, o Datena, da Band, que no seu programa “Brasil Urgente”, teria declarado:
"- Olha, eu continuo dizendo que eu acredito que as pessoas que estão comigo, me assistindo há tanto tempo (12, 13, anos) fazendo esse tipo de jornal, eu acredito que as pessoas comunguem da mesma crença que eu: deus. Não importa se você é judeu, se você é muçulmano, se você é católico, se você é evangélico, vocês acreditam em deus. Eu parto dessa pressuposição. Quem não acredita em deus não precisa me assistir não, gente. Quem é ateu não precisa me assistir, não. Mas se eu fizer uma pesquisa aqui se você acredita em deus ou não é capaz de aparecer gente que não acredita em deus. Porque não é possível, cada caso que eu vejo aqui é gente que não tem limite, é gente que já esqueceu que deus existe, que deus fez o mundo e coordena o mundo. É gente que não acredita no inferno…” (…)
Mais adiante reafirmou:
“Eu não faço questão NENHUMA de que ateu assista o meu programa. Nenhuma. Agora, quem acredita em deus, seja evangélico, seja muçulmano, seja judeu, seja católico, qualquer religião, entendeu, de quem acredita em deus, continue comigo.”
Datena estava totalmente focado na audiência do seu programa, nada mais que isso, num país de muitos por cento de religiosos cristãos. Uma estupidez, a atitude do apresentador.
E ele conclui:
“Se você não acredita em deus, nunca matou ninguém, nunca fez mal pra ninguém, muito bem, parabéns. Mas quem mata com crueldade, quem enterra vivo, quem estupra, quem violenta criança, também não acredita em deus. Não acredita. Pode até falar que acredita mas não acredita. Entendeu?”
Se tiver paciência para ler tudo, acesse a página através deste link:
Fóruns de debate
A campanha da ATEA desencadeou o debate em diversas páginas da internet. Participei de um desses via e-mail. A matéria me chegou através de um dos correspondentes de minha lista, distribuída com os endereços em aberto (c/c). Respondi (a todos) expondo o que achava daquilo. Daí em diante cerca de 30 mensagens se relacionaram à original, expressando-se em proveitoso debate. Mas eis que, entre os debatedores, alguém postou a seguinte mensagem: “Por favor, não confundir ateus (que são pessoas normais que simplesmente não acreditam em Deus) com neo-ateus, que são uma seita de intolerantes bancadas pelo tio Sam. Não tenho nada contra ateus, mas tenho TUDO CONTRA NEO-ATEUS.”
Foi o suficiente para um ateu que participava das discussões ironizar: “Nossa.. neo-ateus financiados pelos EUA para espalhar o caos pelo mundo! E olha que eu acredito em teorias da conspiração…”
Agradeci a informação do mensageiro que trata de supostos “neo-ateus”, insinuando que seriam eles os tais membros da ATEA, e comentei com o segundo:
“…pelo tom e cor de sua mensagem, você acredita naquilo que lhe convém. Inclusive quando se tratar de teoria da conspiração.
Esse aí não seria o único elemento para se estabelecer o caos (na verdade se estabelecer o domínio mais acentuado), são muitos, e o desespero não escolhe caminhos ponderadamente, mas o que estiver ao alcance. Não faz muitos anos, os poderosos ianques deflagraram campanha contra os católicos. O Brasil é um país eminentemente católico, não é de espantar que se utilizem de meios como esse ou de falsos religiosos, a quem eles dão guarida já faz algum tempo. Ou você acredita que aqueles [brasileiros] que foram "presos" nos Estados Unidos, acusados de entrarem no país com dinheiro não declarado, foram vítimas da orientação ideológica dos poderosos da nação americana? Não, nada disso, eles foram tão-somente vítimas incidentais de funcionários da Alfândega, só, nada mais. Mas o tratamento dado a eles não foi o mesmo que se dá a pés-de-chinelo que tentam entrar no ‘paraíso’ ilegalmente.”
Ainda nos anos 1990, testemunhei que um professor ateu era membro do corpo docente do Instituto Arquidiocesano do Rio de Janeiro. Fica difícil acreditar que num país como este exista discriminação sistemática contra ateus e agnósticos. O que ocorre aqui é o mesmo que acontece em todo o mundo: existem pessoas que interpretam muito mal os preceitos religiosos e códigos políticos. Gente, as mais das vezes, intolerante.
A Inquisição se foi, Portugal foi o último país europeu a abolir a ditadura inquisitorial. Lá pelo século XVIII, o Marquês de Pombal, então ministro com livres poderes, influenciou na redução dos poderes do Santo Ofício. Não podemos nem devemos esquecer as barbaridades cometidas pela Santa Inquisição, mas isso é hoje apenas parte da História; mesmo assim, a propósito da campanha dos ateus e agnósticos, muita gente deitou falação evocando o que foi a Igreja Católica.
Talvez nem tanto quanto as ciências, mas filosofias e religiões também são dinâmicas. Foi o que pude deduzir da exposição de Dom Estêvão Bettencourt (setembro de 1919 – abril de 2008) no evento em que participei.
Bom, a quem se dispôs a ler até aqui, eu agradeço e vou ficando cá com meus botões, a perguntar: Existem realmente muito mais coisas entre o Céu e o Inferno do que possa imaginar nossa vã filosofia?