Vendem-se lotes em Kepler-1649c

Logo, logo, o anúncio que é título deste nosso artigo poderá ser realidade. Mas o que Kardec fala sobre o assunto?

Marcelo Henrique

Logo, logo, o anúncio que é título deste nosso artigo poderá ser realidade. Afinal, acaba de ser divulgado o relatório da Agência Espacial Norte-Americana (NASA) sobre recentes pesquisas com o telescópio espacial Kepler, que detectaram a existência, em abril de 2020, de um planeta, batizado de Kepler-1649c, a 300 anos-luz de distância da Terra, cujo tamanho é similar à Terra (1,06 vez), recebendo cerca de 75% (setenta e cinco por cento) do total de luz que o nosso planeta recebe do Sol. Assim, cogita-se que a temperatura na superfície daquele orbe seria bem similar à nossa.

Os dados científicos apontam para tal diagnose em face da localização dos planetas, já que situados em uma região nem tão próxima nem muito distante de suas estrelas, o que favorece a existência de atmosfera e temperatura adequadas e bastante disponibilidade de água (provavelmente encontrada na fase líquida em grande parte de suas superfícies), fatores essenciais para a formação da vida, segundo os cientistas.

Estes, os dados.

Imediatamente, ao ler tal notícia, que já foi repercutida por inúmeros veículos de mídia em todo o planeta, impressos ou eletrônicos, me recordei de desenhos animados (como os “Jetsons”) e filmes (“Star Trek” – Jornada nas estrelas, cujo novo episódio acaba de ser relançado nos cinemas), ou as obras de ficção científica de Júlio Verne e Aldous Huxley.
Vida extraterrestre. Colonização do Universo. Contatos com seres de outros orbes e galáxias… Do imaginário para a realidade? Quem sabe…

O fato é que, para os estudiosos do Espiritismo, isto não é nenhuma novidade. Há muito, pelo menos desde 1857, se fala na “Pluralidade dos Mundos Habitados”, axioma que se inscreve no edifício dos princípios espíritas [1] regentes da Vida Espiritual. Tal paradigma espírita está fundamentado nas próprias declarações de Jesus, “Há muitas moradas na Casa de meu Pai” (Jo; 14:2).

Recorda-se o sempiterno desejo humano de alçar voo ao espaço, a partir da invenção de Dumont, o “mais leve que o ar”, em astronaves (pilotadas ou não), e descobrir outros planos onde existissem seres similares a nós, circunstância que povoou os livros de ficção científica e cristalizou-se nas chamadas expedições e viagens espaciais conhecidas, como a que acaba de ser divulgada.

A par do trabalho dos cientistas, pesquisadores e estudiosos, com objeto e metodologia definidas e contando com vultosos e qualificados recursos financeiros e operacionais, a “leitura” dos curiosos de plantão deve estar debruçada sobre conjecturas e probabilidades. Haverá, mesmo, condição de habitabilidade em tais orbes? Teremos condições de conhecer, fisicamente, outros seres de planos similares ao nosso? O que nos afiança a ciência e a filosofia espíritas?

 

O ponto de partida deve ser a teoria espiritista para a catalogação dos mundos: primitivos, provas e expiações, regeneradores, felizes (ou ditosos) e celestes (ou divinos). Partindo da premissa de que a Terra ainda se acha adstrita à condição espiritual de provações/expiações, quais as referências espíritas/espiritualistas sobre a questão do grau de evolução de outros planetas?

Ao tempo do luminar codificador, Allan Kardec, só era possível perscrutar acerca dos planetas que compunham, conforme a Astronomia de então, o Sistema Solar. No tópico “Encarnação nos diferentes mundos”, no capítulo IV (Da Pluralidade das Existências), da segunda parte de “O livro dos Espíritos” (abril de 1857), em nota de rodapé à questão n. 188, ele pontuou: “Segundo os Espíritos, de todos os mundos que compõe o nosso sistema planetário, a Terra é dos de habitantes menos adiantados, física e moralmente. Marte lhe estaria ainda abaixo, sendo-lhe Júpiter superior de muito, a todos os respeitos”.

Depois, na “Revista Espírita”, edição de março de 1858, no tópico “Júpiter e Alguns Outros Mundos”, aduziu Kardec: “Segundo os Espíritos, o planeta Marte seria ainda menos avançado do que a Terra; os Espíritos que nele estão encarnados pareceriam pertencer, quase exclusivamente, à nona classe, a dos Espíritos impuros, de sorte que o primeiro quadro, que demos acima, seria a imagem desse mundo [2]. Vários outros pequenos globos, estão, com algumas nuanças, na mesma categoria. A Terra viria em seguida; […]”.

Ainda nesta obra, em número posterior, no volume de outubro de 1860, o espírito Georges assim se pronuncia: “Marte é um planeta inferior à Terra da qual é um esboço grosseiro; não é necessário habitá-lo. Marte é a primeira encarnação dos demônios mais grosseiros; os seres que o habitam são rudimentares; têm a forma humana, mas sem nenhuma beleza; têm todos os instintos do homem sem o enobrecimento da bondade.

[…]
Neste planeta a terra é árida; pouca verdura; uma folhagem sombria que a primavera não rejuvenesce; um dia igual e cinza; o sol, apenas aparente, nunca prodigaliza as suas festas; o tempo escoa monótono, sem as alternativas e as esperanças das estações novas; não há inverno, não há verão. O dia, mais curto, não se mede do mesmo modo; a noite reina mais longa […]; o mar furioso separa os continentes sem navegação possível; o vento ruge e curva as árvores até o solo. As águas submergem as terras ingratas que elas não fecundam. O terreno não oferece as mesmas condições geológicas da Terra; o fogo não esquenta; os vulcões são ali desconhecidos; as montanhas, apenas elevadas, não oferecem nenhuma beleza; elas cansam o olhar e desencorajam a exploração; por toda a parte, enfim, monotonia e violência; por toda a parte, a flor sem a cor e o perfume, por toda a parte, homens sem previdência, matando para viver”.

Podem ser buscados em outras obras da codificação e na própria Revue, detalhes sobre a pluralidade dos mundos, nos quais Kardec, prudentemente, teceu comentários ou reproduziu mensagens mediúnicas, de maneira genérica, com anteparo em expressões nada categóricas, utilizando-se, por vezes, de formatações verbais em tempos condicionais e imperfeitos, tal a imprecisão dos dados físicos, não configurando, amiúde, postulados ou princípios doutrinários. De outra sorte, a preocupação maior do mestre lionês foi a caracterização moral-espiritual dos habitantes das diversas categorias de mundos, apresentando, apenas, alguns traços da constituição físico-material dos mundos, conforme os Espíritos lhe apresentaram, sem maiores acréscimos.

 

O trabalho pioneiro do Codificador, de contato com os Espíritos e de recepção e seleção das mensagens obtidas mediunicamente, foi importante para estabelecer a base da Filosofia e da Ciência espiritistas, inaugurando a época contemporânea de atestar o conhecimento espiritual das Leis Divinas. Recomendou Kardec que continuássemos “em conversa” com as inteligências desencarnadas e o modelo de seu trabalho (calcado, fundamentalmente, no Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos [3], enquanto método) deveria ter sido seguido pelos espíritas pós-kardecianos, o que, na prática, não ocorreu, passando as comunicações não serem mais submetidas a crivos de seleção, muito particularmente em face da profusão das comunicações e da ausência daquilo que o professor francês configurou como Comitê Central (do Espiritismo). Instituições ou federações, até certo ponto, tem ocupado o papel e desempenhado algumas das funções descritas por Kardec (em textos como “Constituição do Espiritismo”), mas a história demonstra que houve a descentralização da responsabilidade de aferição das comunicações a cada um dos espíritas sérios e interessados no contexto doutrinário. Em outras palavras, com a multiplicação das “fontes” (livros e textos, mais propriamente), o crivo de seleção cabe a cada leitor e estudioso, na comparação com o edifício doutrinário, já definido nas linhas iniciais deste texto.

Marcha do progresso

Neste sentido, vale recordar de duas observações que se acham contidas na Codificação, que devem ser as balizas para a análise espírita da notícia que nos motivou a escrever este artigo e as demais no tocante a pesquisas, experimentos e teses científicas: a primeira, assinada por Erasto [4] (discípulo de Paulo de Tarso) e dirigida a Kardec, mas que deve ser tomada como bússola para as atividades espiritistas em geral, que aponta para a rejeição daquilo que a razão e o bom senso reprovam (“Mais vale rejeitar dez verdades do que admitir uma única mentira, uma única teoria falsa”); e, a segunda, na dicção do próprio Rivail, ao prescrever os caracteres da revelação espírita, vaticinou a imperiosa e inafastável necessidade doutrinária de acompanhamento do progresso das ciências humanas (“O espiritismo, marchando com o progresso, jamais será ultrapassado porque, se novas descobertas demonstrassem estar em erro sobre um certo ponto, ele se modificaria sobre esse ponto; se uma nova verdade se revelar, ele a aceitará”, grifos do original).

Estes dois referenciais, assim, permitem-nos definir que o Espiritismo não se acha circunscrito ao conteúdo original selecionado e publicado por Kardec (cognominado de Codificação, composto pelas obras básicas e as complementares, incluídos os doze volumes da Revue Spirite) e que novas “revelações” espirituais poderiam e deveriam ser apontadas pelos Espíritos Superiores a nós, encarnados, na continuidade do intercâmbio espiritual dos laboratórios mediúnicos. Especial atenção, destarte, devemos ter para com os resultados das pesquisas científicas humanas, para perceber se, em algum ponto, pela limitação do conhecimento e das interpretações da lógica humanos, vigentes no Século XIX, quando Kardec formulou perguntas e catalogou respostas e enunciados, bem como em face das suas próprias interpretações pessoais acerca dos conteúdos recebidos (o que fica patente nas inúmeras notas, comentários e dissertações de próprio punho, do Codificador), não possa o Espiritismo estar dissociado do conhecimento desvendado pela Ciência dos homens, neste ou naquele ponto. Veja-se que Kardec não atestou, de pronto e definitivamente, que o Espiritismo seria intocável ou imutável. Do contrário, a única condição de permanência e atemporalidade dos conhecimentos espíritas acha-se associada à condição de continuidade das pesquisas e das “revelações”, sob pena de, se assim não se proceder, a Doutrina assumir um caráter dogmático e dissociado da realidade existencial, para ocupar, assim, um lugar apenas no âmbito das crenças e religiões tradicionais.

Em verdade, não podemos nunca olvidar a marcha do progresso humano-científico e a correspondência entre os avanços científicos e o próprio ensino dos espíritos, desde que permitida a complementação daquilo que está sediado na Codificação com novas pesquisas e informações obtidas mediunicamente. Isto, na exata aceitação de que “se o progresso da Ciência superar os princípios e postulados espíritas, que fiquemos com a Ciência”, posto que, segundo orientou Kardec, “fé inabalável só o é aquela que pode encarar a razão, frente a frente, em todas as épocas da Humanidade”.

 

Destarte, cumpre-nos concluir:

1) Os elementos espirituais apostos na Codificação quanto à existência de muitos mundos habitados permanecem, a priori, válidos e irretocáveis;

2) As informações espirituais/espíritas posteriores à Codificação, devem ser analisadas com base nos critérios kardecianos de seleção de informações e não podem estar dissociadas do edifício de princípios espiritistas, o que não as invalida, de pronto, nem as recepciona imediata e obrigatoriamente, cabendo aos espíritas sensatos e estudiosos a aferição das novas mensagens diante dos princípios;

3) As pesquisas e descobertas científicas até o momento não estão distantes das informações trazidas pelo Espírito de Verdade, na reunião dos ensinos por parte de Kardec, recomendando-se que continuemos acompanhando os resultados dos experimentos e os relatórios da agência espacial, para a efetiva comprovação da máxima espírita que remonta a Jesus de Nazaré (“muitas moradas na casa do Pai”); e,

4) No futuro, com a evidenciação da vida de seres encarnados em outros planos, ficará demonstrado, na prática, a certeza e completude dos ensinos espirituais, seja os originários (de Kardec) ou os complementares, atestando a veracidade da Doutrina dos Espíritos.

Por isso, acreditando no teor das mensagens espíritas que integram a Codificação e, acompanhando os resultados científicos, dentro em breve, a Humanidade deverá estar diante de mais uma circunstância fática de comprovação das teses espíritas em nossos tempos. Será a Ciência, uma vez mais, atestando aquilo que o Espiritismo já nos demonstrou desde meados do século XIX, antecipando, portanto, o progresso.

E, aí, você quer comprar um lote em Kepler-1649c?

Referências:

1- Divindade, Individualidade (da alma) ou Espiritualidade, Transcomunicabilidade, Evolutividade e Pluralidade (das Existências e dos Mundos Habitados).

2- Complementarmente, conforme dito alhures, trata-se da condição moral de seus habitantes, com destaque para as paixões sem freio, o último grau de embrutecimento moral, a vida animal bruta, baseada na satisfação dos apetites grosseiros, a ausência de laços sociais, o egoísmo, o ódio, a inveja, o ciúme, a cupidez e a morte.

3-  “A força do Espiritismo não reside na opinião de um homem ou de um Espírito; está na universalidade do ensino dado por estes últimos; o controle universal, como o sufrágio universal, resolverá no futuro todas as questões litigiosas; fundará a unidade da doutrina muito melhor que um concílio de homens” (“Revista Espírita”, maio de 1864).

4-  Item 230, de “O livro dos Médiuns”.

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


Continue no Canal
+ Marcelo Henrique