Almas Gêmeas: o sonho de encontrar a outra metade

Será que existe em algum lugar do Universo esse ser que nos completa, uma alma gêmea? Todos nós teríamos a “outra metade”?

Por Rita Foelker

Os ideais românticos embalaram poetas e músicos. A busca do parceiro ideal, a possibilidade de uma harmonia perfeita no relacionamento com um ser predestinado leva muitas pessoas a projetarem seus sonhos de felicidade na união a dois. Conheça o que o Espiritismo pode nos dizer seguramente a esse respeito, a partir de seus fundamentos filosóficos

A idéia de que existe perdido no mundo um ser especial que nos completa, e o qual haveremos de encontrar para realizar um sonho de felicidade sentimental, surge de uma perspectiva romântica da existência. Muitas pessoas vivem acreditando que felicidade só existe a dois e procuram seu par perfeito na esperança de serem felizes.
Embora o amor romântico e o erotismo pareçam sempre haver existido na humanidade, ambos podem ser vistos como fenômenos sócio-culturais datados, isto é, eles têm um momento específico em que surgiram na história da Terra.

O amor cortês, ou “amor delicado”, é um aspecto da lírica provençal (vinda de Provença, ao sul da França), no século 11, época referente à baixa Idade Média que assiste aos primeiros traços daquilo que modernamente chamamos de” amor romântico”. A poesia trovadoresca do período pode ser considerada como uma explicitação dos comportamentos dos amantes, que vai marcar nossa concepção sobre o que é e como funciona a relação amorosa.

Os poetas e cronistas eram chamados de trovadores e costumavam cantar acompanhados de instrumentos como a cítara, a viola, a lira ou a harpa. As composições poéticas eram chamadas de “cantigas”, das quais podemos citar as cantigas de amigo e as cantigas de amor. Nas cantigas de amor, quem falava no poema era um homem, que se dirigia a uma mulher da nobreza – um amor proibido cujo nome sequer podia revelar – o que tornava a consumação do seu sentimento impraticável.

 

Torturado pela angústia do desejo irrealizado, o apaixonado buscava palavras que expressassem a intensidade de sua aflição e de sua devoção. Nas cantigas de amigo, a personagem central era uma mulher da classe popular, transmitindo o sentimento feminino pelas desventuras amorosas das donzelas. Pela boca do trovador, ela cantava a ausência do amigo (amado ou namorado), a frustração de amar e ser abandonada, em razão da guerra ou de outra mulher.

Mas se voltarmos mais ainda no tempo, encontraremos referências em Platão (4217- 3417 a. C), na Grécia Antiga. Os gregos não tinham ideais “românticos”, mas foram os responsáveis pela noção das metades eternas. Em seu diálogo O Banquete, narra-se um mito que é a origem da noção de almas gêmeas ou metades eternas. Aristófanes, um dos convidados, explica que o ser amado é a nossa “outra metade” há muito perdida. Segundo ele, originalmente, nossos corpos estavam unidos num só. Todos os seres humanos eram homens, mulheres ou andróginos, com dois dorsos, quatro pernas, quatro braços e dois rostos, na mesma cabeça. Esses seres, contudo, tornaram-se tão poderosos e arrogantes que Zeus precisou cortá-los ao meio, dividindo-os em duas metades femininas ou masculinas. A partir daquele dia, cada parte passou a viver na ânsia de encontrar a metade que lhes foi retirada. E ambos pararam de criar problemas para Zeus!

Claro está que andamos até aqui pelo terreno do mito, no caso da narrativa de Aristófanes, e da literatura, quando falamos da poética provençal. E foi na literatura que surgiram os grandes casais como Romeu e Julieta, de William Shakespeare, e Tristão e Isolda, de Joseph Bédier – que reconstituiu um poema do século 12.

Abelardo e Heloísa, contudo, cujas famosas cartas de amor foram publicadas em forma de livro (Correspondência de Abelardo e Heloísa), foram um homem e uma mulher reais, tendo vivido um amor proibido que se tornou uma tragédia, verdadeiramente. Sem dúvida, uma história como a deles poderia nos fazer crer que se tratavam efetivamente de almas gêmeas.

UM FILÓSOFO NAS TEIAS DA PAIXÃO

Pedro Abelardo (1079-1142), filósofo e teólogo, aos 37 anos conhece Heloísa, de 17 anos, e se encanta com sua beleza. Consegue aproximar-se da jovem por intermédio de Fulbert, tio da moça e cônego de Notre-Dame, passando a cortejá-la.

Abelardo dedicava todas as suas horas vagas a ensinar Heloísa, inicialmente na presença do tio Fulbert. Algum tempo depois, confiando em Abelardo, o cônego passa a deixá-los a sós.

Logo se estabelece uma rotina de encontros fortuitos em momentos nos quais Heloísa, supostamente, estaria tendo aulas de arte.

Quando Fulbert descobre o que está acontecendo de fato, ele expulsa Abelardo, mas isso não coloca fim ao caso dos dois, que continua com ajuda da criada Sibylle.

Seu amor proibido conduz a uma gravidez proibida. Para evitar escândalo, Abelardo conduz Heloísa à aldeia de Pallet, no interior da França, onde deixa a amada aos cuidados de sua irmã e volta a Paris. Não suportando a solidão que sente, resolve falar com Fulbert, para pedir seu perdão e a mão de Heloísa em casamento. Para sua surpresa, Fulbert o perdoa e concorda com o casamento.

Ao receber notícia, Heloísa, volta a Paris, deixando a criança com a irmã de Abelardo. Casam-se numa cerimônia secreta, sem troca de alianças ou beijo, numa pequena ala da Catedral de Notre-Dame.

O sigilo do casamento não dura muito, e logo começam a surgir comentários sobre Heloísa e a educação que Fulbert dera a ela. Ofendido, Fulbert resolve dar um fim àquilo tudo, contratando dois carrascos para invadirem o quarto de Abelardo durante a noite e castrá-lo. Após esse dia, Abelardo e Heloísa jamais voltariam a se falar.

Abelardo força Heloísa a ingressar no mosteiro de Santa Maria de Argenteuil, quando esta conta 20 anos. Ela faz os votos monásticos e ingressa na vida religiosa, por amor a Abelardo, que se retira para o mosteiro de Saint-Denis.

Durante muitos anos Abelardo e Heloísa não se viram, apenas trocavam cartas um com o outro. Seu túmulo pode ser visitado em Pére-Lachaise, o mesmo cemitério que abriga os restos mortais de Allan Kardec, em Paris.

UM OUTRO PONTO DE VISTA

Indagados sobre a existência das almas gêmeas ou metades eternas, os Espíritos não deixam dúvidas. Allan Kardec perguntou- lhes em O Livro dos Espíritos: “As almas que devem unir-se estão predestinadas a essa união, desde a sua origem, e cada um de nós tem, em alguma parte do Universo, a sua metade, à qual um dia se unirá fatalmente?” A resposta foi: “Não. Não existe união particular e fatal entre duas almas. A união existe entre todos os espíritos, mas em graus diferentes, segundo a ordem que ocupam, a perfeição que adquiriram: quanto mais perfeitos, tanto mais unidos. Da discórdia nascem todos os males humanos; da concórdia resulta a felicidade completa”.

Kardec então indagou: “Em que sentido se deve entender a palavra metade, de que certos espíritos se servem para designar os espíritos simpáticos? – A expressão é inexata. Se um Espírito fosse a metade do outro, uma vez separado estaria incompleto”.

A ideia de ser uma metade implica em ser alguém incompleto, contudo sabemos que os Espíritos são individualizações do elemento espiritual, constituindo-se em seres completos em si mesmos. Esta condição do ser espiritual está em concordância com o princípio espírita do livre-arbítrio, que faz com que nossas aproximações de outros seres ocorram por livre escolha e, não, por estarem predeterminadas.

No caso das pessoas que escolhemos para ficar juntos, namorar, casar, etc. trata-se também de uma escolha e não de uma imposição externa. E a harmonia no relacionamento é fruto de uma construção diária, não de um decreto divino. O Espírito Calunga, no livro Idéias Fortalecedoras, expõe sua opinião a respeito da seguinte forma: “Um casamento se faz dia a dia, no carinho, na lealdade, na entrega. Como qualquer relação entre as pessoas, ele vai se fazendo ou se desfazendo, dependendo sempre das atitudes”.

 

Caberia perguntar, caso as histórias de Romeu e Julieta, da Cinderela e do Príncipe Encantado tivessem continuidade, o que aconteceria a partir do dia seguinte? Quanto tempo duraria a felicidade conjugal?

Os Espíritos fizeram um comentário muito lúcido a esse respeito, também em O Livro dos Espíritos: “Quantos não são os que acreditam amar perdidamente, porque apenas julgam pelas aparências, e que, obrigados a viver com as pessoas amadas, não tardam a reconhecer que só experimentaram um encantamento material!”.
Resta, então, a possibilidade de uma união feliz entre espíritos simpáticos, aqueles que não foram criados como almas gêmeas, mas que descobrem entre si profundas afinidades e a alegria de estar juntos. Isto, segundo o entendimento espírita, pode ocorrer.

Prosseguindo sua pesquisa, Kardec indaga: “Dois Espíritos perfeitamente simpáticos, quando reunidos, ficarão assim pela eternidade, ou podem separar-se e unir-se a outros Espíritos?” A resposta dos Espíritos foi clara: “Todos os Espíritos são unidos entre si. Falo dos que já atingiram a perfeição. Nas esferas inferiores, quando um Espírito se eleva, já não tem a mesma simpatia pelos que deixou”, visto que as razões que aproximam os seres nesses mundos podem estar muito distantes do amor e afetividade sinceros.

Kardec explicou mais adiante que: “A teoria das metades eternas é uma imagem que representa a união de dois espíritos simpáticos. É uma expressão usada até mesmo na linguagem vulgar, e que não deve ser tomada ao pé da letra. Os espíritos que dela se servem não pertencem à ordem mais elevada. A esfera de suas idéias é necessariamente limitada, e exprimem o pensamento pelos termos de que se teriam servido na vida corpórea”

 

Portanto, embora haja espíritos que possam mencionar as metades eternas, isto se deve à limitação de sua compreensão das leis da vida espiritual, mas é também bastante compreensível que isso ocorra, porque as suas comunicações com os encarnados trazem indicações sobre o seu grau de adiantamento.
Não obstante o conhecimento que a Doutrina Espírita nos oferece da questão, reconhecemos que muitas novelas e romances passam uma idéia que agrada ao público, principalmente, porque precisam de audiência e vendagem: a idéia de que a união feliz entre um casal que sofreu agruras de todo tipo é o prêmio final e a realização suprema de duas vidas que foram criadas para estar juntas.

Somos culturalmente influenciados, pelos meios de comunicação, e muitas vezes pela educação que nos foi dada, para achar que a maior ventura que se pode viver é encontrar o amor de nossas vidas e ser felizes para sempre. Algumas pessoas chegam a desejar tanto, e a esperar tanto dessa promessa, que se tomam compulsivas e necessitam de ajuda terapêutica, sendo que hoje já se encontram grupos de apoio para tais casos.

A convivência com o ser amado, contudo, mais que um prêmio, constitui-se numa responsabilidade e um compromisso. Falar em amor, sem a contrapartida dos deveres correspondentes ao sentimento empenhado, é esvaziar o próprio sentido do verbo ‘amar’, que se traduz em gestos e ações concretas. O respeito, a lealdade, a cooperação e a compreensão entram como demonstrações efetivas, como os verdadeiros tijolos com que se edifica diariamente uma relação satisfatória.

“Não basta estar apaixonado por uma pessoa que vos agrada e que tem muitas qualidades; é na convivência real que podereis apreciá-Ia. ( … ) Não se pode esquecer que é o espírito que ama, e não o corpo, e quando a ilusão material se dissipa, o espírito vê a realidade. Há duas espécies de afeição: a do corpo e da alma, e toma-se freqüentemente uma pela outra. A afeição da alma, quando é pura e simpática, é durável; a do corpo é passageira Eis por que muitas vezes os que pensavam se amar com um amor eterno se odeiam quando acaba a ilusão”, explicaram os Espíritos em O Livro dos Espíritos.

Por isso, uma relação a dois que possa ser considerada feliz necessita que se diminua o grau de ilusão e que se aumente o senso de realidade. É preciso conhecer-se e conhecer a outra pessoa profundamente. É preciso entender que está em nossas mãos a opção de ficar juntos por muito tempo, e que isso só acontece na base dos testemunhos diários de afeição e respeito.

 

Não seria demais lembrar que o autoconhecimento pode e deve nos ajudar a perceber as reais motivações ao buscar a companhia do outro. Nosso nível atual de auto- consciência não nos revela necessariamente quem somos e nem o porquê de querermos o que queremos. Muitas vezes, por exemplo, o que nos atrai naquela pessoa irresistível é uma qualidade que desejaríamos possuir e não possuímos. Se soubéssemos mais de nós, entenderíamos o motivo de nossas projeções e nossas preferências ao buscar parceiros. Isso faria nossa busca ter mais chances de ser bem sucedida. O caminho para melhorar nosso relacionamento com amigos, familiares e parceiros, é, por isso, antes de mais nada, um caminho para dentro de nós mesmos.

Cada ser foi criado completo, íntegro, com potenciais latentes de qualidades espirituais que lhe cabe desenvolver. Cada ser realiza por si só sua jornada de progresso espiritual e o equilíbrio emocional é um indício de que estamos progredindo. Nossas parcerias com seres afins são motivo de satisfação e muito podemos realizar quando nos unimos a pessoas e espíritos que comungam com nossos ideais e sentimentos. No entanto, cada um de nós caminha por si, faz suas escolhas pessoais e assume as suas conseqüências perante as leis da vida, individualmente.

RITA FOELKER é escritora com mais de 40 livros publicados, entre infantis e adultos, mediúnicos e próprios.

Texto publicado na edição 56, 2008, da antiga revista Universo Espírita, edição impressa.

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.

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