A bolha de felicidade dos espíritas
Cláudia Rocha Azevedo
Não é muito clara a informação sobre quem cunhou o termo bolha para designar pessoas que se isolam e nem quando foi usado pela primeira vez, no entanto, ele tem sido utilizado cada vez mais nas mídias sociais para se referir a pessoas que vivem apenas em um tipo de ambiente, por exemplo, o indivíduo que só assiste a séries, ou aquele que não sai do facebook ou ainda aquele que vive no Instagram etc., abdicando da vida social, afastado de todos.
Ao participar de várias casas espíritas, em cidades diferentes, grupos de estudo e grupos pela internet, observa-se um fenômeno muito interessante: a bolha da felicidade, da bondade e da boa intenção. E isso não é necessariamente ruim, é apenas um fenômeno.
Desconectados da realidade política, cultural e social e da subjetividade inerente aos humanos, os espíritas vivem num falso nirvana, apregoando um amor que são incapazes de sentir, enrodilhados pelas questões emocionais que se recusam a olhar. É como se, frente ao espelho de suas próprias dores e dificuldades, eles preferissem olhar para o que está além do espelho, reforçando assim sua bolha.
Imersos em suas questões internas, emocionais, como todo indivíduo encarnado e quiçá desencarnado, preferem levantar bandeiras de paz, de união, de caridade, as quais estão muito longe de poder suportar.
Dividem-se então entre aqueles que sequer cogitam nas questões emocionais e aqueles que cogitam, mas que acham que boa intenção, prece, passes, água fluidificada e ‘trabalho na seara’ são suficientes para curar ou mesmo aliviar, muitas vezes, uma infância negligenciada, desprovida de afetos saudáveis, vítima de violência doméstica, sexual ou de abandono. E mesmo aqueles que não viveram situações tão limites, mas ainda sim têm suas questões, como luto mal resolvido, inseguranças, medos, crises de ciúme, ambiente familiar ou profissional doloroso etc. não percebem a importância de olharem para si mesmos e se lançam a cuidar dos outros, em vez de cuidarem de si, num afã interminável e muitas vezes improdutivo.
Tanto é que muitos cansam do espiritismo e vão procurar outras praias porque apenas o conhecimento espírita, sem seu contexto verdadeiramente humano, acolhedor e como ferramenta de autoconhecimento, não dá conta do imenso complexo físico, mental, emocional, espiritual, social, cultural que cada ser é.
E como isso é observável? De várias maneiras. Uma delas é pela exclusão daqueles que não se encaixam perfeitamente neste modelo romantizado. Tudo vai bem até que alguém, com intenção ou não, provoca um pequeno cisma ou uma pequena marola na relação idealizada e então todo pretenso amor ao próximo, que deveria traduzir-se em acolhimento ao indivíduo, transforma-se em ‘é preciso afastar este cidadão ou impedi-lo de se manifestar, porque ele vai acabar com a harmonia do grupo’, e o que era para ser fonte de crescimento e de amadurecimento transforma-se tão somente em mais um afastamento.
Outra forma tangível é o comportamento de ira de muitos espíritas nas mídias sociais, nestes tempos de polarização, onde atacam até seus pares. Textos reflexivos, como este, que buscam entender a classe espírita e seus componentes também são, às vezes, alvo de uma raiva indefinida. Comportamento muito diferente daquele preconizado por Kardec e por Jesus e que provavelmente é fruto de alguma demanda emocional não atendida, porque não é vista.
Desta maneira, passam-se meses, anos, décadas, e a bolha só cresce e só exclui aqueles que precisam de um tratamento mais individualizado, como acontece com todo ser humano, na realidade.
A sociedade inteira, e os espíritas não fogem a regra, tem dificuldade em dialogar. Diálogo não é brigar, discutir ou debater, é simplesmente se colocar, falar, sem querer convencer ou transformar ninguém, e ouvir. Ouvir de verdade, ouvir o outro e a si mesmo, prestando atenção e respeitando. Simples assim. Exercício este que deve ser feito constante e conscientemente.
Não somos colmeia, comunidade de formigas ou de cupins. Somos pessoas com necessidades únicas que não devem ser negligenciadas e não podemos e nem queremos ser tratados como grupo. Queremos nossa individualidade aceita, respeitada e cuidada, ainda mais tendo em vista o discurso de amor que permeia a comunidade espírita.
Enfim, cuidar da saúde mental e emocional é primordial para um relacionamento verdadeiramente empático, amoroso e transformador.
Publicado originalmente
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