Chico Xavier e a Superinteressante
No Observatório da Imprensa, a desconstrução da matéria de capa da Superinteressanter, que fala sobre Chico Xavier. Por José Edmar Arantes Ribeiro, Bacharel e mestre em Física pelo Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP), São Bernardo do Campo, SP.
Por José Edmar Arantes Ribeiro
A última edição da revista Superinteressante (nº 277, de abril de 2010) teve a figura de Chico Xavier como tema de sua principal matéria, que segue da pág. 50 à pág. 59 do número em questão da revista, já referido no título deste artigo. Logo na capa, em sequência a uma pergunta com um erro de concordância verbal, segue outra mal formulada: "Quem foi o homem que fez milhões de brasileiros acreditar em espíritos? Qual o segredo das mensagens que ele psicografou?" (grifo nosso). A revista começa assim, e o mesmo erro de concordância verbal seria repetido na abertura da reportagem em foco, à pág. 50: "Há 100 anos nascia o homem que faria brasileiros de todos os credos acreditar na vida após a morte" (grifo também nosso)…
No índice do número da revista em questão, é afirmado, em relação à matéria em foco: "A Super foi a Minas Gerais descobrir como o médium virou um mito. Encontrou histórias de fé e de mistério – e alguns efeitos especiais." Entretanto, como poderá ser visto em alguns dos itens que discutiremos na subseção "Leviandades" deste artigo, nenhuma pesquisa mais cuidadosa fora feita no sentido de embasar afirmações como a da existência de "efeitos especiais" envolvendo a fenomenologia de Chico Xavier.
Na seção "Escuta", destinada a palavras do diretor de redação da revista, com o título "Com todo respeito", Sérgio Gwercman nos diz: "Respeito você vai encontrar em cada página da reportagem escrita por Gisela Blanco (…) Porque o jornalismo existe nas perguntas (…) É assim que trabalhamos aqui na Super". Infelizmente, não é verdade que encontramos respeito em cada página escrita por Gisela Blanco (basta ver a seção "Leviandades", abaixo). Igualmente, não é verdade que a Super adotara o princípio do questionamento saudável na matéria em questão: a maior parte da reportagem é constituída de afirmações irresponsáveis, que buscam disfarçadamente, porém a todo custo, reduzir a figura de Chico Xavier à de um mistificador carismático.
Nas linhas que seguem analisaremos detalhadamente os problemas apresentados na reportagem em foco.
Os vários problemas apresentados na reportagem serão divididos, a título didático e por ordem de gravidade, em cinco classes: (1) Uma colocação fora de contexto; (2) Um box que nada explica; (3) Informações erradas; (4) Conceitos errados; (5) Leviandades.
Uma colocação fora de contexto
Em meio às suas considerações sobre as repercussões no meio literário da obra Parnaso de Além-Túmulo, psicografada por Chico Xavier e atribuída a espíritos de poetas brasileiros e portugueses, a autora da matéria nos diz:
"A história dividiu o mundo da literatura. Alguns desconfiavam de que tudo não passava de uma fraude. A viúva de Humberto de Campos até tentou na Justiça, sem sucesso, levar os direitos autorais sobre as obras psicografadas do marido. Mas outros o defendiam. `Se Chico Xavier produziu tudo aquilo por conta própria, merece quantas cadeiras quiser na Academia Brasileira de Letras´, declarou Monteiro Lobato" (págs. 55-56).
O trecho sobre a viúva de Humberto de Campos está fora de contexto. Chico Xavier só começara a psicografar Humberto de Campos em 1935, três anos após a publicação do Parnaso. Além disso, o "caso Humberto de Campos" iria ocorrer somente em 1944, doze anos após a publicação do Parnaso! E mais: neste caso, a viúva pedia à Justiça um posicionamento justamente na decisão sobre a autenticidade das mensagens atribuídas a Humberto de Campos. Caso a decisão fosse favorável, a viúva acataria e exigiria os direitos autorais, de modo que este caso não serve para ilustrar a posição daqueles que consideravam que tudo não passava de fraude.
Um box que nada explica
A autora, no box "A Ciência e Chico Xavier", à pág. 56, após dizer que, para cientistas, a explicação da fenomenologia de Chico Xavier estaria em um meio-termo entre a fraude e a hipótese espírita, simplesmente aloca definições de psicose, epilepsia, criptomnésia e telepatia, sem apresentar quaisquer posições de cientistas de que os conceitos mencionados explicariam o caso Chico Xavier!… Não bastasse isso, duas de suas definições estão equivocadas, o que será discutido na seção "Conceitos Errados", mais abaixo.
Informações erradas
1. À pág. 51, a autora diz que a origem de toda a história do fenômeno Chico Xavier foram as cartas dos mortos, e nas páginas seguintes (até a pág. 55) ilustra a afirmação com episódios de pessoas que teriam recebido cartas de seus filhos ou irmãos falecidos. Errado! Chico Xavier começou escrevendo versos de poetas brasileiros e portugueses mortos, que apareceram em Parnaso de Além-Túmulo, obra publicada em 1932 pela Federação Espírita Brasileira que chamou a atenção de vários intelectuais brasileiros pelo estilo dos poemas, fiel ao dos autores aos quais eles eram atribuídos.
2. À pág. 54, é dito que Waldo Vieira fundara um centro de estudos religiosos em Foz do Iguaçu. Errado! O centro fundado por Waldo Vieira é voltado ao estudo da consciência e não tem caráter religioso.
3. À pág. 56, Gisela Blanco escreve o seguinte:
"O que você veria se estivesse na plateia de Chico Xavier na década de 1940? Para começar, um médium sentado em frente a uma cortina, a cerca de 10 metros dos espectadores. (…) Lentamente, vultos brancos apareceriam – os médiuns explicavam que eram espíritos que haviam se materializado".
Errado! Primeiramente, ao que nos consta, Chico Xavier somente iniciara sua atuação pública como médium de materialização em 1952, e pouco tempo depois, em 1953, deixaria de atuar como tal (vide livro Chico Xavier – Mandato do Amor). Depois, nas sessões de materialização o médium mineiro ficava deitado e atrás de uma cortina. Por fim, nestas mesmas sessões, que os vultos eram espíritos materializados podia ser deduzido pelos próprios espectadores.
4. À pág. 57, a autora escreve, referindo-se com ironia aos fenômenos de materialização envolvendo Chico Xavier: "Com shows como esses, Chico foi ficando famoso, graças a reportagens como uma publicada em 1944 por O Cruzeiro (…)". Errado! A reportagem publicada em 1944 pela O Cruzeiro não tratou de fenômenos de materialização envolvendo Chico Xavier. E nem poderia! Nesta época Chico Xavier não atuava como médium para este tipo de fenômeno.
Conceitos errados
1. No final da seção em que a autora trata das cartas de falecidos enviadas a parentes próximos através de Chico Xavier, fenômeno que erroneamente (vide item 1 de nossa seção anterior) fora considerado dentre as primeiras manifestações mediúnicas de Chico Xavier, a autora nos diz o seguinte: "(…) A verdadeira polêmica surgiria no outro filão do médium: os romances" (pág. 55). Entretanto, se lermos os parágrafos seguintes da nova seção ("A Polêmica"), verificaremos que ali o assunto tratado é o livro Parnaso de Além-Túmulo, que é constituído de… poemas e poesias. A autora parece não saber o que é um "romance"…
2. À pág. 56, a autora enfeixou sob o termo "psicose" todos os quadros ditos dissociativos, o que não é aceito pela Associação Americana de Psiquiatria desde 1994 (vide Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), e também considerou "criptomnésia" como um distúrbio da memória, quando não há qualquer razão para categorizar este fenômeno, genericamente, como "distúrbio".
3. Sobre o fenômeno da materialização de espíritos, a autora, Gisela Blanco, às páginas 56-57, escreve o seguinte:
"Registre-se: materializar uma pessoa, ou fazer surgir massa do nada equivalente a um homem de 70 quilos, não seria tarefa fácil. Seria necessário produzir um total de energia duas vezes maior do que é hoje produzido pela hidrelétrica de Itaipu por ano, segundo os cálculos feitos por especialistas e exibidos por reportagens sobre Chico nos anos 70."
Aqui, a autora mistura alhos com bugalhos. O processo de materialização de espíritos não está relacionado à produção de matéria "do nada". Segundo informações dos próprios espíritos, aceitas e de certa forma já verificadas por pesquisadores da fenomenologia espírita como o russo Alexandre Aksakof (1832-1903), o italiano Ernesto Bozzano (1862-1943) e o brasileiro R. A. Ranieri (1919-1989), o referido processo se daria às custas de "desmaterialização" do médium (em maior escala) e dos participantes das sessões (em menor escala).
Leviandades
1. Em caixa alta na primeira página da reportagem (pág. 50), a autora do texto, Gisela Blanco, nos diz que fora o mito Chico Xavier que fizera brasileiros de todos os credos acreditarem em vida após a morte, que mudara a vida de famílias desconsoladas e que colocara a ciência em busca de respostas para seus fenômenos. A matéria, entretanto, não dá subsídios para tal afirmação. Fora o homem Chico Xavier o responsável por tudo aquilo.
2. Às págs. 52-53, lemos o seguinte (grifo nosso): "(…) Célia representa o público cativo de Chico: as mães. Atrás de notícias dos filhos mortos, elas compareciam em massa nos dois centros que Chico teve (…)." Aqui a autora procura imputar um caráter de sedutor ou algo do tipo a Chico Xavier. Pura leviandade.
3. À pág. 54, vemos em letras garrafais: "Show de materialização de espíritos e truques para incrementar as sessões de psicografia. O lado pirotécnico de Chico Xavier provocou desconfiança". Além do comentário estar desvinculado do assunto tratado nas páginas 54-55, a autora desconhece, ou finge desconhecer, que as sessões de materialização não tinham qualquer conotação de espetáculo. Além disso, levianamente, afirma que Chico usara de truques em suas sessões de psicografia, sem ao menos discutir mais amplamente a questão ao longo do texto sobre o assunto, às páginas 56-57, apenas fazendo referência ao caso de um fotógrafo da revista Realidade que, em 1971, teria visto um assessor de Chico Xavier borrifar perfume no ar…
4. À pág. 56, Gisela Blanco nos diz que a desconfiança dos críticos de Parnaso de Além-Túmulo tinha razão de ser:
"Apesar de não ter ido longe na escola, Chico foi autodidata e leitor voraz durante toda a vida. Colecionou cadernos com recortes de textos e poesias. Comprou livros de sebos em São Paulo. Em sua biblioteca, preservada até hoje em Uberaba, há mais de 500 livros e revistas, com obras em inglês, francês e até hebraico. A lista inclui volumes de autores cujo espírito o teria procurado para escrever suas obras póstumas, como Castro Alves e Humberto de Campos".
Mas tem o seguinte: leitor voraz ou não, a autora deixa de revelar, talvez propositadamente, que a biblioteca de Chico Xavier, que ela afirma ter mais de 500 livros e revistas, foi constituída ao longo de toda a vida do médium mineiro, de 92 anos, e que inclui os mais de 400 livros que ele próprio psicografou!… Além disso, o trecho está fora de contexto, pois o tema tratado era Parnaso de Além-Túmulo, primeiro livro de Chico Xavier, muito anterior à biblioteca que ele viria a formar.
5. Ainda à pág. 56, após dizer que das investidas da imprensa Chico Xavier não escaparia ("Eles queriam explicações não só para a linha direta que Chico dizia ter com as celebridades do outro lado, mas também para alguns shows que o médium andava fazendo por aí"), a autora inicia uma subseção com o título "A pirotecnia", sempre procurando incutir um tom humorístico à sua reportagem. O curioso é que Gisela Blanco fala nesta subseção de uma reportagem de 1944 da revista O Cruzeiro, de uma denúncia de Chico Xavier por um sobrinho e sobre o programa Pinga-Fogo de 1971 do qual Chico participara. Estes tópicos, porém, nada tem a ver com o que ela denomina "pirotecnia". Pirotécnica parece-nos a falta de clareza da autora…
6. Ainda sobre as sessões de materialização de espíritos envolvendo Chico Xavier, à página 56 encontramos: "Os personagens principais da noite eram médiuns de outras cidades, acostumados a rodar o país com seus shows." Como já afirmado no item 3 acima, as sessões de materialização não objetivavam meras mostras espetaculares.
7. À pág. 57, a autora escreve:
"(…) Acuado pelas críticas na Pedro Leopoldo de 15 mil habitantes, Chico resolveu fazer as malas e partir para Uberaba, um pólo do espiritismo onde contaria com o apoio de amigos. Mas não adiantou muito. A imprensa seguiu na cola. Em 1971 (…)"
Chico Xavier não saíra "fugido" de Pedro Leopoldo, em decorrência de críticas, como o trecho acima parece indicar. Além disso, ao ilustrar como a imprensa seguiu "na cola" de Chico após sua mudança para Uberaba, ocorrida em 1959, a autora cita uma reportagem de 1971, doze anos após… Se pesquisasse melhor, poderia encontrar uma reportagem anterior muito mais ilustrativa ao seu objetivo de denegrir Chico Xavier, como a publicada em uma das edições da revista O Cruzeiro de 1964.
8. Ainda à pág. 57, referindo-se à participação de Chico Xavier em 1971 do programa Pinga-Fogo, da TV Tupi, a autora escreve: "Por quase 3 horas, o médium foi bombardeado por perguntas. Mas se safou." Ora, safar-se é esquivar-se, escapulir-se, fugir. Assim referindo-se à atuação de Chico Xavier no Pinga-Fogo, a autora parte do pressuposto de que ele teria algo a esconder. Lamentável! Muita falta de imparcialidade.
9. À pág. 58, em garrafais (recurso comum utilizado na reportagem para escancarar as leviandades da autora), lemos: "Órfão maltratado na infância, um piadista quando adulto, vítima de uma série de doenças na velhice. Não foi à toa que Chico Xavier conquistou a compaixão de todo o país." Esta tentativa de desqualificar o real trabalho de Chico Xavier, imensurável, tanto no campo do assistencialismo espiritual quanto material, não foi bem-sucedida. Desde quando ser piadista conquista a compaixão das pessoas? Será que os responsáveis pela matéria não sabem o que significa "compaixão"?…
10. À pág. 59, a autora escreve: "Uma imagem captada pela TV Globo mostrou um raio de sol entrando no quarto do medium [sic] exatamente no dia em que Chico teve uma melhora repentina". Seria mesmo um raio de sol? Cadê as fontes que atestam isto?
11. Também à pág. 59, última do artigo, arrematando o festival de imprudência exibido ao longo de suas páginas, lemos no box "A Indústria de Chico Xavier":
"Dieta do Chico Xavier: revista dos anos 80 publicavam o ritual – meio copo de água pela manhã, com grãos de arroz dentro do copo representando o número de quilos que se quer perder."
Aqui, a matéria procura imputar um caráter ridículo à figura de Chico Xavier e tenta, sorrateiramente, ludibriar o leitor, que poderia pensar que tal dieta fora realmente prescrita pelo médium mineiro, o que não é verdade.
Conclusão
Acreditamos ter deixado claro, pelas considerações acima, que a reportagem "Chico Xavier", veiculada na revista Superinteressante deste mês de abril de 2010 (n. 277), deixa a desejar em quatro aspectos do labor jornalístico de imprensa: ético (vide seção "Leviandades"), cultural (vide seção "Conceitos errados"), investigativo (vide seção "Informações erradas" e itens 7 e 10 da seção "Leviandades") e redacional (vide a "Introdução", as seções "Um box que nada explica" e "Uma colocação fora de contexto", e também os itens 4, 5, 9 e 10 da seção "Leviandades"), e nada mais temos a acrescentar. Como conclusão, apenas uma pergunta: uma revista dessas é confiável?..