“Jesus numa moto”
Jesus seria capaz de dirigir uma moto? Sentir a liberdade da estrada?
Por Manoel Fernandes Neto
Gosto muito da canção “Jesus numa moto”, de Zé Rodrix e os irmãos Guarabira. Composta no ano 2000, tornou-se um clássico da música brasileira.
É algo inconcebível para quem é preso à letra e não ao espírito da letra, imaginar o Mestre dos Mestres, tão admirado por tantos religiosos e espiritualistas, dirigindo uma Harley Davison, uma 750, 500. Ou mesmo uma 125 ou uma lambretinha, porque um pouco de humildade não faz mal a ninguém.
Jesus seria capaz de dirigir uma moto? Sentir a liberdade da estrada, em alta velocidade ou em uma cadência contemplativa?
Baseados nas quebras de paradigmas protagonizadas por Jesus e descritas nos Evangelhos, apócrifos ou não, podemos, sim, imaginar isso. Jesus com coragem em uma moto, como quem sobe em um burrinho para adentrar Jerusalém na mais absoluta ironia a todos os reis, tetrarcas e clérigos, com seus formalismos vazios e que dominavam a elite da época. Da época?!?
Bem, as similaridades entre o que convencionamos chamar de elites políticas e sociais são muitas, com certeza. Ontem e hoje as personalidades, costumes e atitudes se repetem em moto-contínuo difícil de ser mudado. Por isso mesmo, também “Jesus numa moto” me alegra o espírito. O inusitado que traça novos caminhos e quebra nossos condicionamentos. Mas vamos à letra da canção, que mesmo sem melodia nos arrebata a novos sentimentos:
Preso nessa cela
De ossos, carne e sangue
Dando ordens a quem não sabe
Obedecendo a quem tem
Só espero a hora
Nem que o mundo estanque
Prá me aproveitar do conforto
De não ser mais ninguém
Eu vou virar a própria mesa
Quero uivar numa nova alcateia
Vou meter um “Marlon Brando” nas ideias
E sair por aí
Prá ser Jesus numa moto
Che Guevara dos acostamentos
Bob Dylan numa antiga foto
Classius Clay antes dos tratamentos
John Lennon de outras estradas
Easy Rider, dúvida e eclipse
São Tomé das letras apagadas
E Arcanjo Gabriel sem apocalipse
Nada no passado
Tudo no futuro
Espalhando o que já está morto
Pro que é vivo crescer
Sob a luz da lua
Mesmo com sol claro
Não importa o preço que eu pague
O meu negócio é viver
Sob a luz da lua…
Mesmo com sol claro…
Preso nesta cela…
Numa pesquisa rápida, no Google, podemos encontrar mestre Zé Rodrix explicando como surgiu a inspiração da canção, quando em um dia de sol ele deteve a atenção no componente de um grupo de motoqueiros conhecidos como “Hell Angels”.
Rodrix explica:
Nisso, quando ele parou, tirou o capacete e era um gerente de banco, um senhor. Um senhor de quase seus setenta anos, aquela cara de gerente de banco, e estava numa moto. Aí falei para o meu filho, ‘olha aí, meu filho, esse aí meteu um Marlon Brando nas ideias e saiu por aí!’, exatamente onde começa a música. (…) Por isso, creio que ‘Jesus numa moto’ é apenas um retrato das pessoas de minha geração que, após amadurecerem, se tornam capazes de ter duas vidas, sendo uma delas aquela que lhes agrada integralmente.
Na declaração de Rodrix pode estar a bússola que nos orienta pelas estradas das nossas vidas, com uma jaqueta de couro e uma luva desgastada. Sem metáforas: temos pouca coragem de fazer diferente. Encarar que não temos controle de quase nada, somente da nossa capacidade de mudar, que ainda estamos presos a formatos ultrapassados, compreensões mofadas. Paralisados diante das oportunidades das novas atitudes. Principalmente aquelas que podem “chocar” o senso comum. Imaginar Jesus numa moto, Che Guevara nos acostamentos e o arcanjo Gabriel sem apocalipse pode assustar os corações menos preparados para novas oportunidades que nos surgem a todo momento.
Amit Goswami, autor de Física da Alma, afirmou em uma entrevista ao Roda Viva, da TV Cultura, em 2007, que metaforicamente a maior frustração no estudo da Física Quântica é o condicionamento. O mesmo fator que no mundo macro nos escraviza sem piedade, em um lugar comum que cultua as falsas certezas, infla o superficial e tenta desprezar quem tem coragem de discordar.
“Jesus numa moto” é continuar a desafiar a falsa beatitude e sabedoria dos fariseus contemporâneos, é curar as feridas em um sábado de sol claro ou à luz da Lua, é ressuscitar nossa coragem de sentar à beira da fogueira, a contar nossos segredos, sem máscaras de cera.
“Jesus numa moto” anda a segunda milha com mais liberdade. Senta à mesma mesa e toma pão e vinho com Lenon, Dillan e Clay. Diverte-se com um “Marlon Brando” nas ideias.
“Jesus numa moto” é nossa convicção de que somos livres para escolher nossos destinos. Discordar, esclarecer e amar é a nossa real força de aprendizado. É a ausência do medo nos encontros com os nossos demônios, no deserto.
“Jesus numa moto” é criar todos os dias o nosso presente, sem ressentimentos do passado e na convicção de que somos aprendizes do futuro.
“Jesus numa moto” é derrubarmos as celas que aprisionam o nosso cotidiano; é sorrir quando nos chicotearem; é confiar no Pai Cósmico, e ter a certeza de que não somos, mas sim, estamos.
Admitamos: quem não quer pegar uma carona nesta moto?
Assista o clipe da música “Jesus numa moto”