Kardec, viga-mestre do Espiritismo (O homem, a vida, o meio, a missão)
Por Marcelo Henrique Pereira
Como procederíamos nós, se convidados fôssemos para uma reunião onde a atração principal eram mesas que se erguiam do solo, davam pancadas no chão com uma ou mais pernas e, até, dançavam ao som de melodias entoadas por pequenos conjuntos musicais?
Qual seria nossa reação ante a insistência de amigos para visitarmos suas residências, em horários previamente determinados, para presenciar reuniões onde os “espíritos” dos mortos se comunicavam, e tais eventos poderiam trazer informações relativas aos interesses dos presentes?
Como reagir ante a constatação, quando da freqüência a ditas reuniões, acerca da inexistência de fraudes ou mistificações, comprovando-se tratar realmente de comunicações egressas de mortos, muitos deles dizendo da realidade da vida espiritual, da continuidade da vida pós-morte, das relações entre vivos e mortos e da permanência de gostos, simpatias e afinidades?
Estes foram episódios da vida de um homem chamado Hippolyté Leon Denizard Rivail, nos dias de seus primeiros contatos com os fenômenos espirituais. Rivail, a propósito, ao ser informado sobre a possibilidade de haver inteligência e livre-vontade em uma mesa, que respondia “sim” ou “não” a determinadas perguntas, sentenciou: “- Isso é história para fazer dormir. Só acredito se me provarem que as mesas têm nervos e cérebro para poder responder perguntas.”
2. A formação do homem Rivail.
Allan Kardec nasceu em Lyon, a 03.10.1804 e desencarnou em Paris, a 31.03.1869. Seu nome de batismo era Hippolyte León Denizard Rivail.
Filho de pais de classe média, um magistrado e uma professora, estudou na Suíça, no Instituto de Pestalozzi, tornando-se mestre em Letras e Ciência. Integrou-se à linha do pensamento pestalozziano, incorporando ao seu estilo pessoal a didática e a prática recebidas de seu preceptor, dentro de um humanismo aberto e universalista.
Casou-se com Amélie Gabrielle Boudet, que revestiu-se em sua maior colaboradora. Fundou, em sua casa, cursos gratuitos de Física, Química, Anatomia e Astronomia, escrevendo diversas obras de educação e apresentando Planos e Métodos de Reforma do Ensino de seu país, a França. Assumiu a postura de intelectual europeu preocupado com a solução dos problemas humanos, usando uma poderosa ferramenta: a Educação. Sua vocação idealista levou-o para os estudos científico-educacionais, constituindo uma longa carreira e experiência pedagógica.
Destaque-se que, na época, o ensino europeu (e mundial) não revestia-se das especialidades e da departamentalização que hoje imperam, e as universidades constituíam-se em verdadeiros centros de pesquisa ampla, e a formação do indivíduo era muito mais genérica, porém abrangente. Daí dizer-se que Kardec graduou-se com variadas habilidades, tendo escolhido, por força de seu “estilo” espiritual, a carreira do magistério como decorrência de suas experiências anteriores, com a qual mantinha maior afinidade.
3. O “espírito cético” de Rivail.
Rivail era, assim, “[…] um homem cosmopolita, sensível, arguto e naturalmente aberto às influências mais nobres que a história e a experiência lhe ofereciam.”[1]
Na idade madura – pós cinqüenta anos – estava psicologicamente formado e perfeitamente ajustado à sensibilidade de perceber as necessidades de seu tempo, em plena era napoleônica, pós-iluminista. A França já havia despertado para os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, linhas-mestras que hoje são revisitadas pelo Direito e pelas Sociedades, na busca pela garantia plena dos direitos individuais e sociais, no Estado que se cognomina de Responsabilidade Social.
Quem se debruça sobre a biografia do insigne patrono, encontra traços de Rosseau e Pestalozzi, de Lamarck e Darwin, de Comte e Napoleão, de Marx e Engels, todos visíveis revolucionários, para promover a verdadeira revolução “das luzes”, liderando o grande esforço de “[…] construção de uma nova visão de homem e de mundo, humanista e dinâmica, na qual razão e sentimento pudessem, harmonicamente, buscar a verdade.”[2]
Somente ele, naquela época, para perceber a utilidade do novo “modismo”, substituindo a atração frívola e passageira, calcada nas respostas de espíritos brincalhões, zombeteiros e graciosos, por uma investigação séria, compactuada com inteligências luminares do passado (deste e de outros Mundos), capaz de descortinar, para o homem, as verdades que ele próprio, por sua condição investigativa precária, ainda não podia conceber.
4. O contato com os fenômenos e o despertar de sua missão.
Em 1854, Rivail foi convidado a participar de reuniões onde ocorriam fenômenos mediúnicos – as mesas girantes – pelo Sr. Fortier, nas casas das Sra. Roger e da Mme. Plainemaison, onde começou seu estudo, sério e profundo, observando experimentalmente, recolhendo e pondo em ordem os dados recebidos pela fenomenologia mediúnica (psicografia e psicofonia), até publicar, em 1857, a primeira edição, ainda simplificada, de O Livro dos Espíritos.
No ano seguinte, fundou a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, a primeira instituição espírita do mundo, com fulcro na observação dos fenômenos, no estudo e na difusão (veiculação) das idéias espíritas. Editou a Revista Espírita, verdadeiro laboratório das impressões e escritos egressos das sessões práticas de Espiritismo, além das demais obras constantes da Codificação: O Livro dos Médiuns (1861), O Evangelho segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno (1865) e A Gênese (1868). Deixou vários escritos, os quais foram publicados após sua morte, intitulados Obras Póstumas (1890).
Trabalhou árdua e disciplinadamente durante quatorze anos seguidos, em exemplo de dedicação e renúncia. Herculano Pires, filósofo e escritor espírita brasileiro, acentua na obra Ciência espírita e suas implicações terapêuticas, que a revolução espiritual adveio pelo Espírito de Verdade, que assume a titularidade da autoria espiritual do Espiritismo, mas a ciência espírita (revelação humana) foi obra de Kardec, que a ela se dedicou de corpo e alma, para despertar os maiores pensadores de seu tempo (e, quiçá, do nosso, também), para a divulgação e a reflexão acerca da realidade dos fenômenos espíritas e do conteúdo da doutrina.
5. A obra pioneira.
É patente que O Livro dos Espíritos é considerado pelos espíritas como o “livro de filosofia” do espiritismo. Segundo JONES[3], “[…] a Filosofia é algo que se situa entre a Teologia e a Ciência. Todo o conhecimento definido pertence à Ciência e todo dogma, pertence à Teologia. Mas, entre a Teologia e a Ciência existe um território de ninguém, onde as nossas reflexões, as nossas idéias, os nossos mais simples pensamentos, transitam sem dificuldades, sem formalismos – esta terra de ninguém é uma terra de todos: é o chão da Filosofia.”
E, por conseqüência, completa: “[…] Na visão do filósofo J.Herculano Pires, o Livro dos Espíritos, veículo privilegiado destas idéias inovadoras, mesmo não tendo sido elaborado em linguagem técnica e nem observe as minúcias da exposição filosófica, revela todo um complexo e amplo sistema de filosofia. É, portanto, o arcabouço filosófico do Espiritismo.”
Ao lançar o livro básico, Kardec inscreveu seu nome entre os notáveis de todos os séculos, considerando-se que esta obra já foi objeto de estudo em universidades e centros de pesquisa – e continua sendo, em alguns tópicos – mesmo que, a princípio, a intenção inicial fosse a de ridicularizá-lo.
Estava, pois, lançada a pedra fundamental da Nova Era, sedimentada no intercâmbio produtivo com seres desencarnados, dispostos a ajudar a Humanidade, um instrumento de serviço e de amor.
A partir de seu magistral trabalho, com apoio em Herculano Pires, é possível alinhavar os quatro pontos do chamado “Método Kardequiano”:
“1) Escolha de colaboradores mediúnicos insuspeitos, do ponto de vista moral, da pureza das faculdades e da assistência espiritual (Kardec repassava as respostas obtidas anteriormente ao crivo de outros espíritos, através de médiuns diferentes. Assim é que ele trabalhou com as Srtas. Caroline e Julie Baudin, Japhet, Aline e Solichon, Ermance Dufaux, Sra. Schmidt e Srs. Forbes e Crozet, dentre outros)”;
2) “Análise rigorosa das comunicações. (Kardec diz no L.M. que “não existe uma comunicação má que possa resistir a uma crítica rigorosa” (cap. 24, item 266). E, na mesma obra, ele consigna a orientação de Erasto: mais vale repelir dez verdades do que admitir uma única mentira, uma única teoria falsa (cap. 20, item 230))”;
3) “Controle dos espíritos comunicantes, através da coerência de suas comunicações e do teor de sua linguagem”; e,
4) “Consenso universal: concordância entre as várias comunicações, através de médiuns diversos em diferentes lugares. (A “Revista Espírita” foi fundamental para isso. O LE surgiu inicialmente com 501 questões, em 18/4/1857. Na quinta edição, ocorrida em 1861, já eram 1.019 questões. Kardec era o centro mundial que recebia mensagens e comunicações de todos os cantos, inclusive do Brasil. Kardec escreveria em 1864, no item II da introdução ao “Evangelho segundo o Espiritismo”: “A única garantia séria do ensinamento dos espíritos está na concordância que existe entre as revelações feitas espontaneamente, por intermédio de um grande número de médiuns, estranhos uns aos outros, e em diversos lugares”)”[4].
6. O legado kardequiano.
Costuma-se medir a importância de cada personalidade humana com base no que ela pôde realizar em prol da Humanidade e, principalmente, pelo legado deixado para que os homens de outros tempos o utilizem em seu proveito pessoal-individual e coletivo.
A partir de 1857, com a obra pioneira, Allan Kardec cunhou “[…] um novo conceito de homem, partindo da realidade, para ele fundamental, do espírito. O método que propôs desloca a questão do espírito do terreno da fé para situá-la no amplo campo da experimentação científica. Sistematizando o que chamou de espiritismo, conceituo-o, por isso mesmo, como uma ciência. Não uma ciência estéril, mas geradora de um tipo de conhecimento ética e moralmente transformador, capaz de tornar o homem mais fraterno e, assim, mais feliz. Uma proposta pouco compatível com o nosso tempo. O que, por sua vez, permite ainda se tome seu autor muito mais como mito do que como o grande homem que foi.”[5]
Ao codificar o Espiritismo, Kardec transferiu para os homens a oportunidade de decisão sobre o que desejam ser. Sem liberdade não há atividade criadora nem responsabilidade individual, pressupostos do fundamento ético da Doutrina Espírita.
7. Considerações Finais.
Haveria Espiritismo sem Kardec?
Sem dúvida que sim. O trabalho de conscientização, de humanização, de fraternidade, rotina dos espíritos superiores que nos endereçam esforços no sentido de sua implementação, por certo se vale de inteligências encarnadas e sensíveis para providenciar as “mudanças” qualitativas.
Em todas as épocas da Humanidade foi possível visualizar grandes personalidades, expoentes da lógica, do bom-senso, da verdade e do sentimento, capazes de alavancar verdadeiras revoluções no pensar e no agir. Muitas, entretanto, sucumbiram, ante suas próprias deficiências e idiossincrasias, ou, como é comum verificar-se, deixaram-se contagiar por distúrbios de personalidade ainda comuns em espíritos errantes como nós, dando vazão a arroubos de arrogância, prepotência, orgulho e vaidade.
Kardec, ou Rivail, poderia ter sido um deles. Mas não o foi.
O pedagogo concentrou-se tanto na feitura, na organização, na sistematização do pensamento espiritual, que anulou-se a si próprio (no bom sentido da palavra), chegando, inclusive, a passar desapercebido diante da imensa obra que construiu. Tanto isto é verdade que muitos espíritas, apressados e não-conscienciosos, consideram-no, erroneamente, como um “secretário” dos Espíritos Superiores, um mero “datilógrafo” organizador de pensamentos esparsos ditados por inteligências desencarnadas.
Kardec fez muito, muito mais que isto. Apôs comentários judiciosos em todos os livros básicos, referenciando-os uns aos outros, senão de modo explícito – embora existam alguns desses casos – mas de modo didático. Todavia, o mérito maior do operário Kardec não foi o de “codificar”, isto é, sistematizar seqüencial e logicamente os pensamentos sobre os mais diversos temas e matizes da Espiritualidade. Como costumamos dizer no meio da comunicação social, o mérito de Kardec está nas perguntas, criteriosamente selecionadas e confeccionadas, revivendo o augusto Sócrates em sua maiêutica filosófica. “Quem pergunta quer saber” e Kardec, vez por outra, foi visivelmente “redundante” (para uns), mas metódico e exaustivo (para nós, que passamos a compreender melhor sua obra, a cada vez que sobre ela nos debruçamos). O sucesso de uma entrevista jornalística no presente, não está no gabarito do entrevistado, como única premissa. Que será de um bom tema e de um excelente especialista, se não soubermos, nós comunicadores, extrair dele o manancial de elementos necessários ao deslinde de um dado tema? Kardec foi, pois, exímio na arte de perguntar e, muitas vezes, já pessoalmente satisfeito com as respostas, pensou nos circunstantes, nos leitores, para atrever-se a entabular mais duas, três ou várias perguntas, esmiuçando ainda mais as temáticas.
Por isto e tudo mais, nosso grande contributo de gratidão em relação ao seu criterioso trabalho deveria ser direcionado em dois sentidos necessários e solidários:
1) avivar e manter constante a necessidade do estudo de sua obra, superando a mera leitura ou a interpretação do que “disse Kardec” por parte, apenas de palestrantes ou expoentes da escrita; e,
2) providenciar, urgentemente, a atualização dos escritos dos espíritos (e dos comentários kardequianos) à luz das recentes e constantes pesquisas e descobertas científicas, sem, é claro, desnaturar o pensamento e o trabalho pioneiro do mestre druida, realizando a tarefa que os pós-kardequianos até hoje relevaram ao último plano de suas ações. Que este compromisso, assim, figure entre os espíritas esclarecidos do presente, aqueles que hão de manter vivo e útil o magistral esforço daquele que se converteu no galardão da “Alvorada de Luz sobre as Trevas”.
________________
[1] JONES, Maurice Herbert. A síntese kardequiana
[2] JONES, cit.
[3] JONES, cit.
[4] OLIVEIRA FILHO, Astolfo Olegário de. Allan Kardec e a codificação do espiritismo
[5] MOREIRA, Milton Medran. Kardec: o mito e o homem.