Madalena, a discípula preferida
PAULO HENRIQUE DE FIGUEIREDO |
Revisite o especial sobre Maria Madalena. (Na imagem, cena do filme).
Com a leitura dos Evangelhos gnósticos percebe-se claramente a ameaça que pairou sobre a Igreja em toda a sua história, e que motivou derramamento de sangue na perseguição a quem ousasse contestá-la.
No entanto, a representação do Cristianismo exclusivamente pelos homens, e a concentração do poder nas mãos do Papa, como um sucessor de Pedro, só faz sentido se a vida de Jesus for relatada de forma adulterada. A verdadeira mensagem cristã é uma inevitável ameaça ao poder e hierarquia eclesiástica.
A figura esclarecida, lúcida e audaciosa de Maria Madalena conta uma nova história do Cristianismo. A discípula preferida do Mestre conhecia seus mais filosóficos e profundos ensinamentos.
Enquanto os apóstolos tremiam na dúvida quando Jesus morreu, Madalena, que o tinha visto em Espírito, reergueu-os em sua fé pela certeza da vida após a morte, destino certo de todos. Madalena é o símbolo cristão da igualdade, representando a derrota do patriarcalismo egoísta e orgulhoso do homem preconceituoso.
As mulheres tiveram um papel de destaque nessa visão renovada do Cristianismo. Salomé, Madalena, diversas Marias, e muitas outras, exerciam o dom mediúnico, participavam da missão de Jesus e compreendiam seus mistérios. Conforme explicou em Os Evangelhos Gnósticos, a doutora Elaine Pagels, estudiosa do gnosticismo, compreende que Madalena foi “favorecida com visões e introvisões que, se muito, ultrapassavam as de Pedro”.
Madalena, uma verdadeira apóstola
O escritor Hermínio C. Miranda estudou o assunto com profundidade, e publicou suas análises em O Evangelho Gnóstico de Tomé. “Convém lembrar que, tanto quanto a de Pedro, a mediunidade de Madalena encontra-se bem documentada nos textos canônicos [Evangelho bíblicos]. Em primeiro lugar, porque sua carreira apostolar (e ela foi, de fato e de direito, apóstolo) começa pela chamada expulsão dos demônios (leia-se Espíritos desarmonizados) que a perseguiam tenazmente, o que, por si só, seria suficiente para comprovar nela a existência de faculdades mediúnicas”, escreveu no livro.
Madalena compreendia profundamente as idéias de Jesus. Segundo O Evangelho de Valentino, depois de uma complexa explicação do Mestre sobre a formação do Universo, a evolução de todas as coisas e o futuro da humanidade, Maria Madalena comentou: “Quando tu nos tens dito sempre: os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros. Os últimos são os homens que entrarão primeiro no reino da luz, como aqueles que pertencem às religiões superiores são os primeiros” – e quando Maria acabou de falar, Jesus admirou o que ouviu, porque dava o sentido perfeito do que ele havia revelado. E o Salvador respondeu: “Está bem, Maria. E tu falaste com grande sabedoria, porque essa é a explicação do meu discurso” (Valentino 33:4, 5).
Madalena tinha uma fé raciocinada, e foi apoio firme para os apóstolos e discípulos que temiam e até duvidavam, mesmo Pedro.
A revolta de Pedro
A posição de destaque de Madalena provocou ciúmes entre os homens. Diversos textos gnósticos descreveram a controvérsia provocada por Pedro, quando pediu a Jesus que excluísse Madalena do grupo, considerando que “as mulheres não são dignas de vida” (Evangelho de Tomé, 114). A mentalidade da época considerava a mulher um ser inferior ao homem desde o Velho Testamento. Mas Jesus ensinava que a humanidade precisava superar a desigualdade entre o feminino e o masculino: um dos fundamentos de sua doutrina. Afinal, o espírito é único e essa divisão é somente biológica. Quando Jesus foi preso, os apóstolos se esconderam, Pedro negou por três vezes conhecer o Cristo. Na colina, aos pés da cruz, somente as mulheres mantiveram-se vigilantes. Reunidos após trágicos acontecimentos, os apóstolos temeram e quase se dispersaram: “Como iremos aos Gentios e pregaremos o Evangelho do reino do filho do homem? Se nem sequer ele foi poupado, como seremos nós?” (Evangelho de Maria).
É um fato incontestável que Jesus apareceu primeiramente a Madalena depois da morte, tanto nos textos bíblicos quanto nos gnósticos. Talvez Jesus, sabendo da força e compreensão profunda de Madalena, previa que ela seria o sustentáculo das primeiras horas, e em espírito orientou-a longamente sobre a divulgação de sua mensagem.
Uma mulher firme como pedra
Foi então que Maria Madalena, presente à reunião, tomou à frente de todos, com destemor, e decidida aconselhou: “Não lamentem ou se aflijam ou sejam irresolutos, porque sua graça estará com todos vós e os defenderá. Louvemos sua grandeza, porque ele nos preparou e nos fez em homens”, afirmou a apóstola no mesmo texto. “Quando Maria disse isto, os seus corações mudaram para melhor, e eles começaram a discutir as palavras do mestre”.
Mas Madalena tinha mais a dizer, pois Jesus, em Espírito, confidenciara a ela importantes esclarecimentos. Pedro disse à Maria: “Irmã, nós sabemos que o salvador a amou mais que a outras mulheres. Contenos as palavras do salvador que tens em mente visto que as conhece; e nós não, nem ouvimos falar delas”. E ela respondeu: “O que está oculto de vós dividirei convosco”. Iniciou-se um emocionante e longo discurso, descrito nos Evangelhos gnósticos.
Mas a acolhida do grupo foi fria e desconfiada. Um silêncio perturbador tomou o ambiente. Só rompido porque o apóstolo André, irmão de Pedro, revelando suas dúvidas, disse a todos: “Diga o que pensas em relação ao que ela disse. Porque eu não acredito que o Salvador disse isto. Porque certamente estes ensinamentos são de outro tipo”.
Ainda Pedro incrédulo
A desconfiança vinda do preconceito, imperava. Pedro, titubeante como no episódio das negações, se opôs a Madalena questionando: “Então falou Jesus secretamente com uma mulher, de preferência a nós, e não abertamente? Ele preferiu a nós?”. Tentando fazê-lo voltar à razão Madalena respondeu a Pedro: “Meu irmão Pedro, o que pensas? Que eu pensei isto por mim mesma em meu coração ou que eu estou mentindo com relação ao Salvador?”.
Estes fatos relatados nos Evangelhos gnósticos mostram como o orgulho do homem perde-se caso não se utilize o bom senso. Pedro precisou da lógica e da lucidez de Madalena para acordar do sono dogmático que o mantinha alheio à palavra cristã de igualdade, que se destina a libertar as mulheres da escravidão patriarcal.
O constrangimento e a dúvida pairavam naquela reunião dos apóstolos. Os homens mantinham a indignação por Jesus ter confiado tamanha responsabilidade a uma mulher. Mesmo atualmente, essa atitude do Cristo causa surpresa. Mas o fato é que o Mestre, em Espírito, falando à médium Madalena, dava a primeira comunicação mediúnica do Cristianismo depois de sua morte! Um símbolo fundamental que insere a futura Ciência Espírita, pesquisadora da mediunidade, na tradição cristã; As bases do Cristianismo estavam passando pela primeira prova. Era preciso respeitar as recomendações de Jesus, sem criar desvios que deturpassem sua mensagem profunda de liberdade.
Fez-se silêncio na reunião dos cristãos, e, diante do impasse, foi preciso que Mateus, interviesse, dizendo a Pedro: “Pedro, tu és sempre irascível. Agora vejo que disputas contra a mulher como a adversários. Mas se o Salvador a fez merecedora, quem és tu para rejeitá-la? Seguramente o Salvador a reconheceu muito bem. Por isso ele a amou mais que nós. E nós deveríamos estar bastante envergonhados e deveríamos nos revestir do Homem perfeito, para nos formar como ele nos ordenou, e proclamar o Evangelho, sem publicar uma ordem ou uma lei adicional daquela que o Salvador falou” (Evangelho de Maria). Quando Mateus disse isso, o grupo se uniu e todos começaram a sair para proclamar o Evangelho.
Com a palavra, as mulheres
Mas a disputa com as mulheres simbolizada no Cristianismo Primitivo, ainda não terminou. E o sofrimento feminino persistiu no transcorrer da história. A Igreja não deu outra opção senão o cruel encarceramento nas celas dos conventos às milhões de mulheres interessadas na mensagem de Jesus. Na Idade Média, centenas de médiuns arderam nas fogueiras da ignorância.
A camponesa Joana d’Arc, jovem e confiante, tomou à frente dos exércitos e salvou a França orientada por sábios Espíritos. A simplicidade feminina venceu a guerra, enquanto os másculos líderes remoeram a incompetência numa atividade reservada aos homens. Mas quando o perigo passou, Joana foi entregue ao inimigo para ser queimada cruelmente.
Também podemos citar Rosa Parker. Em Dezembro de 1955, essa mulher do Alabama, EUA, uma negra de 42 anos, em plena tirania racista, decidiu manter a dignidade e não ceder o seu assento no ônibus para um passageiro de cor branca. O indignado senhor fez um escândalo, o ônibus parou, e, sob os olhares de medo dos negros e de arrogância dos brancos, a polícia a prendeu e multou. Esse gesto simples, alegoria da dignidade de Maria Madalena, iniciou uma revolução no regime racista norte-americano.
Centenas de desbravadores da igualdade entre feminino e masculino merecem registro, como Annie Besant (1847-1933), que foi reencarnação de Giordano Bruno (1548-1600), simbolizando nessas duas figuras históricas a assexualidade do Espírito. Ou George Sand, pseudônimo de Amandine-Aurore-Lucile Dupin (1804-1876), escritora que enfrentou o preconceito nos tempos de Kardec.
A igualdade da mulher é lei natural
Allan Kardec retomou a tradição gnóstica cristã quando afirmou na Revista Espírita de 1866: “Com a Doutrina Espírita, a igualdade da mulher não é mais uma simples teoria especulativa; não é mais uma concessão da força à fraqueza, é um direito fundado nas mesmas leis da natureza. Dando a conhecer estas leis, o Espiritismo abre a era da emancipação legal da mulher, como abre a da igualdade e da fraternidade”. Como Madalena, que foi médium de Jesus, a Terceira Revelação (o Espiritismo; a primeira foi Moisés e a segunda Jesus) começou pelo intermédio das mulheres. Também foi meio de jovens mulheres, as irmãs Baudin e Ermance Dufaux, que os Espíritos responderam à Kardec.
O codificador do Espiritismo afirmou em Obras Póstumas: “A opinião geral manifesta home uma tendência acentuada a voltar às idéias fundamentais da Igreja primitiva e à parte moral dos ensinamentos do Cristo, por ser a única que pode tornar melhores os homens. Essa é clara, positiva e não pode abrir ensejo a nenhuma controvérsia. Se, desde o princípio, a Igreja houvesse tomado esse caminho, seria agora onipotente em vez de estar em declínio. Houvera congregado a imensa maioria dos homens, em lugar de ter sido esfacelada pelas facções. Quando marcharem sob essa bandeira, os homens se darão as mãos fraternalmente, em vez de se anatematizarem e amaldiçoarem, por questões que quase nunca compreendem”.
Ainda há um longo caminho para a humanidade compreender que o espírito é mais real que a matéria. A igualdade vai superar as diferenças: não há brancos, negros ou vermelhos. Não somos homens, mulheres, crianças ou velhos. Ninguém carrega a marca da pobreza ou da riqueza. Não há juiz, catedrático, faxineiro, ou dona de casa. Pela lei da reencarnação somos todos e ninguém. Somos espírito imortal, evoluindo pessoal e socialmente, em busca de condições dignas para todos. Educação, saúde, alimentação, moradia deve-se dispor para todo ser humano que nasça neste planeta. Enquanto houver uma só criança a morrer de fome ou frio, ou um inocente injustiçado, não se estabelecerá o reino de Deus, instituídos nos Evangelhos. Inclusive nos gnósticos, é claro!
Fonte: Revista Universo Espírita nº 32 Ano 3 – 2006