“No futuro, o Espiritismo não precisará mais ser chamado por esse nome”, diz pesquisador e escritor Paulo Henrique de Figueiredo
Entrevista a Manoel Fernandes Neto
Um dos maiores pesquisadores do País, editor, jornalista e criador da antiga revista Universo Espírita, Paulo Henrique de Figueiredo concede entrevista exclusiva para o portal Nova Era e conta sobre seu novo livro sobre Allan Kardec.
Fala dos motivos que levaram ao fim a revista Universo Espírita e reflete sobre os "Cavalos de Tróia" do Espiritismo e de um espiritismo como Ciência.
Diz que o futuro pra Terra é promissor:
" Esse dia será os tempos de felicidade na Terra. E então o Espiritismo não precisará mais ser chamado por esse nome, pois será o senso comum e a ciência do futuro, posse comum de toda a humanidade."
– Você comentou na palestra de um livro de pesquisa sobre Kardec que você está escrevendo, pode nos falar um pouco sobre isso?
Venho de uma família espírita atuante no movimento espírita desde meus avós. Desde criança, frequentei locais como as Casas André Luiz, Federação Espírita, U.S.E., a Casa Transitória do senhor Gonçalves, onde ouvi palestras de Herculano Pires. O Grupo Noel da dona Martinha e o Espírito de Noel Rosa, que meus pais participaram da fundação. Visitávamos a casa do Chico Xavier em Uberaba, em meio aos seus gatos e uma conversa muito interessante.
Quando jovem, lia as coleções que me chegavam às mãos, como Conhecer, Enciclopédia Britânica, Tesouro da Juventude, Grandes Obras da Literatura. Foi quando conheci a coleção da Revista Espírita escrita por Allan Kardec durante dez anos. Ele publicou pessoalmente, mês a mês. Achei fantástico conhecer o cotidiano da construção do Espiritismo. A descrição das reuniões, as investigações, as mensagens, os debates dos quais participavam os espíritos. É como se pudesse voltar no passado e estar lá, no salão da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, em Paris.
Um tema me intrigava, o magnetismo animal. Kardec dizia que Espiritismo e Magnetismo Animal eram ciências gêmeas, e afirmou então que não seria possível conhecer uma sem compreender a outra. Todavia, quase nada havia para se ler sobre esse assunto. Comecei a pesquisar, e descobri que não havia nada traduzido de Mesmer, o criador do magnetismo animal, em português. Consegui as obras originais da Biblioteca Nacional da França, e o doutor Alvaro Glerean, professor da Faculdade de Medicina da USP, traduziu essa mais de uma dezena de obras clássicas da história do magnetismo animal. O resultado desse estudo sobre Mesmer e sua influência sobre o Espiritismo foi a obra “Mesmer, a ciência negada e os textos escondidos”, com a segunda edição esgotada. Devemos ter a terceira edição no próximo ano.
SOBRE O FIM DA UNVERSO ESPÍRITA Pouco do que se publica hoje está em acordo com Kardec. (..) Alguns editores achavam que ao pagar uma propaganda, as matérias e entrevistas seriam favoráveis às suas publicações, o que é comum em revistas. Paulo Henrique de Figueiredo |
Todo esse trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla de recuperação dos conceitos doutrinários originais do Espiritismo, pesquisados por Kardec no século 19. Não é possível compreender a doutrina espírita original sem uma reconstrução da cultura da época. Quais as teorias aceitas então na Física, Química e Biologia? Esse é a pesquisa que empreendi nos últimos anos e devo publicar proximamente.
– Utilizando uma metáfora de Herculano Pires, bem lembrada por você, quais são hoje os principais "cavalos de Troia" do espiritismo?
Os principais cavalos de Tróia do movimento espírita não são pessoas, mas ideias equivocadas, mantidas pela ignorância e também pela ardilosa má intenção de espíritos pseudo-sábios. Kardec já havia anunciado essa atuação e teve que lutar muito para distingui-los, e denunciá-los, do Espiritismo verdadeiro. Haviam grupos espíritas que pretendiam um Espiritismo sem prece, até mesmo sem a atuação dos espíritos, considerando que os filósofos eram mais adequados para se estudar. Teorias equivocadas, quando assim identificadas, são úteis para relevar a lógica e força da teoria espírita. O problema é quando a falta de estudo ofusca a razão, e tudo se mistura, cambiando para a superstição e o misticismo. O cavalo de madeira foi um engenho entregue pelos gregos, com os inimigos em seu interior, para assaltar a cidade de Tróia. Kardec, todavia, afirmava que o pior inimigo do Espiritismo não eram seus detratores e difamadores dos púlpitos ou jornais. Mas os que se diziam espíritas, infiltrados em seus meios, e eram deturpadores dos ensinamentos dos espíritos. Hoje está ainda mais difícil separar o joio do trigo, tão desconhecido está o Espiritismo.
– A revista Universo Espírita ainda hoje é uma referencia sobre jornalismo espírita, porque falava também para fora do espiritismo, para os não-espiritas. Por que terminou o projeto? Quais são as maiores dificuldades com projeto editoriais como este?
CiÊNCIA ESPÍRITA Allan Kardec não passou um ano que fosse sem precisar reafirmar que o Espiritismo não era uma religião, mas uma ciência filosófica, com consequências morais. Paulo Henrique de Figueiredo ( Na foto, livro "Mesmer, a ciência negada e os textos escondidos", de Paulo Figueiredo, Saiba mais) |
A Revista Universo Espírita durou o quanto conseguimos mantê-la. Tivemos um grande apoio dos leitores, mas não havia anunciantes. Um empresário nos procurou, desejando anunciar porque acreditava no projeto e adorava ler a revista. Pediu que falássemos com a sua agência de propaganda, que, por sua vez, contrariando o pedido do empresário, recusou anunciar pois poderia prejudicar a imagem da empresa, envolvendo-a com “religião”. Por outro lado, nossa linha editorial não agradava algumas editoras que publicavam no meio espírita. Nunca fazíamos concessões, publicávamos críticas justificadas, não havia a possibilidade de fazer matérias recomendando lançamentos de livros que não estavam de acordo com a doutrina espírita. Alguns editores achavam que ao pagar uma propaganda, as matérias e entrevistas seriam favoráveis às suas publicações, o que é comum em revistas.
Pouco do que se publica hoje está em acordo com Kardec. Há pobreza não só quanto ao conteúdo relacionado aos conceitos doutrinários, mas inclusive quanto aos aspectos literários. Textos repetitivos, ideias fracas, conceitos absurdos. Os equívocos que foram combatidos por Herculano Pires, Deolindo Amorim, Ivonne Pereira e tantos outros no passado, hoje se generalizam, tomam centenas de tribunas, ocupam folhas de livros, revistas e jornais por todo o Brasil. Muitos centros espíritas estão abarrotados de quinquilharias literárias e bisbilhotices oratórias. Fico preocupado com centenas de pessoas que, após ler Kardec com interesse, procuram casas espíritas para conhecer o Espiritismo, e encontram tudo menos ele. É uma crise. Mas há muita gente boa estudando e pesquisando pelo Brasil afora. Estão nas Universidades, em grupos de estudo e em casas e casebres. Estão espalhados e muitos não se conhecem. Não fazem parte do movimento espírita organizado. São muitos, aos poucos se multiplicam, e tenho certeza que causarão grandes mudanças num futuro próximo. Toda crise é também uma oportunidade.
– Qual o significado da experiência no rádio com o programa Universo Espírita?
Quando nos convidaram para fazer um programa de rádio, não achava adequado tratar do Espiritismo com um monólogo. A natureza da doutrina espírita é a educação, e seu meio adequado de construção é o diálogo. A Rita Foelker, que mora em Jundiaí, escrevia a coluna Filosofia Espírita para crianças na Revista Universo Espírita, liguei convidando e ela aceitou na hora. Desde o primeiro dia de gravação, o programa é um diálogo aberto, espontâneo e de improviso. É assim até hoje, anos depois, contando agora com a participação da Cristina Sarraf e do George de Marco. Passa na Rádio Boa Nova de Guarulhos, na Radio Rio de Janeiro, é reproduzido no Ceará e em Minas Gerais.
O Espiritismo é uma doutrina atual, cotidiana, toca em todos os ramos do conhecimento. O seu estudo é progressivo, diverso. Quando bem compreendido, atrai a atenção dos jovens, provoca questionamento. Seu clima é de entusiasmo e alegria. Acredito que também eram assim os ensinamentos de Jesus. Ele falava usando exemplos do cotidiano, intrigava e fazia rir. Kardec também era uma boa conversa, atendia ao serviçal e ao príncipe com a mesma atenção. Essa é a inspiração do nosso programa de rádio, e por isso é agradável fazê-lo.
– Ainda existe um debate sobre o espiritismo ser ou não ser uma religião formal, com muitos centros ainda a tratarem como tal. Como você vê esta assunto?
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Allan Kardec não passou um ano que fosse sem precisar reafirmar que o Espiritismo não era uma religião, mas uma ciência filosófica, com consequências morais. Nos tempos de Kardec, havia uma compreensão da moral e da religião como temas independentes, que podiam ocupar espaços independentes na cultura. A moral era estudada na Universidade e ensinada nas escolas. Hoje isso não faz parte da nossa realidade atual. A moral filosófica só é conhecida por alguns poucos especialistas em faculdades de Filosofia e as escolas a abandonaram completamente.
Quem mais se interessava em afirmar que o Espiritismo era uma nova religião eram representantes da igreja católica. Isso porque, sendo uma religião, o Espiritismo não passaria de uma nova variação dogmática, em disputa por legitimidade. Não estaria, então, num âmbito de debate, mas ficaria restrito a uma luta de autoridade. Segundo Kardec, o Espiritismo não se opõe ao debate, mas o propõe como ferramenta fundamental da fé racional. O Espiritismo não é para ser aceito simplesmente, mas precisa ser estudado, questionado e compreendido. Não é uma religião formal, mas trata dos temas caros a todas elas: imortalidade da alma, Deus e vida futura. O Espiritismo se opõe tanto à negação do espiritualismo, que é o materialismo, como também ao fanatismo e a fé cega.
– 100 anos de nascimento de Herculano Pires. Qual o significado desse pensador para o espiritismo?
Herculano não foi bem compreendido em seu tempo. Seus estudos sobre pedagogia espírita pareciam o capricho de um estranho filósofo. Suas denúncias eram acusadas de exageradas e desnecessárias. Muitos acusavam suas obras de detalhismo excessivo sob um pretexto de defender o Espiritismo. Por outro lado, Emmanuel, pelo lápis de Chico Xavier, o chamou “o melhor metro que mediu Kardec”.
Hoje, centenas ou até milhares de espíritas o reconhecem como precursor de uma recuperação da obra de Kardec, que apenas timidamente se inicia, mas que certamente será os bastidores de uma grande revolução moral, participando da maior transformação que jamais a humanidade viu.
Não importa se esse processo leve um, dois o três séculos, não importa, pois será uma mudança definitiva. Um dia, feliz para este mundo, todas as crianças nascerão com oportunidade de estudo, trabalho e acesso à cultura. Haverá harmonia e paz, pois todos serão rigorosos em agir desse modo, pois essa é a verdadeira garantia da liberdade. Todos respeitarão os outros, pois essa será a garantia da segurança. Não haverá necessidade do forte abusar do fraco, pois ele compreenderá seu papel de subir o caminho que ele antes já trilhou. Ninguém disputará, pois haverá espaço para todos. Esse dia será os tempos de felicidade na Terra. E então o Espiritismo não precisará mais ser chamado por esse nome, pois será o senso comum e a ciência do futuro, posse comum de toda a humanidade.