O Medo à Liberdade

Heloísa Pires | Teme erguer a cabeça em meio ao grande rebanho humano e enxergar-se como um só em meio à massa.

O ser sente-se inseguro na terra; embora não se conscientize disso durante muito tempo, é um ser espiritual. Desajustado no meio material, embora ainda não esteja apto a viver no mundo espiritual, agarra-se ao barro da terra por séculos. Cria vínculos terríveis que o ‘materializam’ e impedem o seu desenvolvimento. Primeiro inconscientemente, entre os animais, quando já apresenta gestos repetitivos e monótonos para realizar certas tarefas, como para preparar-se para o acasalamento. Mais tarde, já no reino hominal, continuará a se valer dos “gestos mágicos” que lhe dão segurança. Os cantos, a dança, dão-lhe a impressão de que domina o mundo e fazem com que se sinta seguro em meio aos seus semelhantes. Falam a mesma linguagem, realizam os mesmos gestos e a insignificância do homem diminui porque é um entre vários, não está só.

Crescendo mais, o ser continua a se valer dos rituais, que surgem também nas festas religiosas (os rituais e gestos repetem os já realizado nos tempos primitivos). Há um aprimoramento na forma de expressão mas a essência, muitas vezes, se repete e o desejo é o mesmo: dominar o mundo, sentir-se seguro, igualar-se aos semelhantes. As grandes festas egípcias repetir-se-ão mais tarde na igreja católica, na igreja ortodoxa, nas festas que homenageiam os esportes entre os chineses e os russos e nas comemorações políticas. Os gestos se repetem nas discotecas, nas reuniões familiares no dia a dia do homem. Se o elefante e o leão marinho realizam urna série de gestos preparatórios para se acasalarem com a fêmea, se os vários animais preparam-se através de uma espécie de dança para os atos importantes de sua vida, isso continua no reino hominal. O fumar, o modo de expelir a fumaça, o escovar os dentes, o espreguiçar, o ajoelhar para rezar, são o ato que fazem o homem esquecer que é um minúsculo pontinho num planeta que desaparece em meio à vastidão universal. O primitivo sabia intuitivamente de sua fragilidade do ponto de vista físico; o homem do século XX tem consciência maior de sua pequenez e sabe que urna simples agulhar enferrujada pode exterminar sua vida.

O homem do século XX procura amarrar-se a imanência, ao barro da terra; teme a transcendência, a visão do homem cósmico que é.

Os prédios enormes que constrói, a ameaça da guerra, do desemprego, das doenças, da vida e da morte, o fazem temer o mundo; reage agarrando-se desesperadamente às sensações materiais, ao corpo físico, corno se assim se eternizasse na terra. O homem do século XX teme a liberdade.

Teme erguer a cabeça em meio ao grande rebanho humano, o enxergar—se como um só em meio à massa. Teme o desconhecido, teme o crescimento que é muitas vezes doloroso. Mas temendo a dor do parto, que lhe permitiria a Luz da Razão, caminha angustiado e inadaptado rastejando no barro da terra. Tenta encontrar a felicidade nas sensações vazias oferecidas pela carne. Sartre já disse que a finalidade da existência é a transcendência, é a capacidade de assimilar as aquisições dos que o antecederam e transmiti-las, enriquecidas aos que vieram depois. Kierkegaard (1) já disse que o torna o Existente diferente do animal é a superação da animalidade; um homem não deseja apenas viver, comer, satisfazer suas necessidades biológicas, um homem precisa de muito mais, precisa crescer espiritualmente.

 

A marca luminosa de Deus dentro do homem, a idéia da existência de um Ser Perfeito, como queria Descartes, impulsiona o ser à transcendência. O instinto de conservação o amarra a imanência. A luta entre os dois pólos provoca a angústia existencial e do processo dialético resulta a síntese do crescimento do ser. Se o homem por um lado deseja crescer, por outro esse voar nas asas do pensamento lhe causa vertigens. Apenas alguns ousam. A maioria continua de cabeça baixa seguindo líderes, deixando que a conduzam como a sonâmbulos que não sabem o que querem. E fácil dirigir e liderar as massas porque é o que elas desejam.

Quando o homem conseguir perder o temor à liberdade, quando conseguir se enxergar como algo superior ao corpo físico, quando compreender sua imortalidade e indestrutibilidade conseguirá libertar-se dos vínculos primários, dos resíduos dos horizontes primitivos; será feliz.. Tendo consciência de sua grandeza do ponto de vista espiritual, não temerá sua fragilidade física. Imortal, Perfeito na essência, nada o dominará. Não mais um ser covarde que se encolhe e se amarra ao barro da terra, mas um indivíduo tranqüilo que se supera as circunstâncias, que sabe a efemeridade do mundo sensível e, que, como Platão, confia no Mundo Inteligível, em outras dimensões, em outras formas de Existências.

O medo à liberdade fez com que o homem se agarrasse às religiões animalizadas, primárias; como que se agarrasse às religiões sociais, com que mergulhasse nas festas do mundo, tentando viver com o os animais irracionais. Mas isso não o satisfaz, sente necessidade de se transcender, de desenvolver sua paranormalidade desenvolver o ser espiritual que é. Soe estão será livre e sereno. Livre de preconceitos absurdos. Da escravidão à matéria, de tudo o que tem impedido o estado ideal de harmonização interior que Buda (2) chama de Nirvana, que Jesus chamou de Reino de Deus e que nós chamamos de domínio interior. Calmo, tranqüilo, integrado à harmonia universal, condutor de seu corpo, de sua mente, do mundo onde vive, ele será feliz. E livre…

 

1 Buda viveu entre os séculos VI e V ª C. (as datas de nascimento e morte são incertas), durante 80 anos. Lenda e realidade mesclam-se na história de sua vida. A versão mais aceita diz que ele nasceu como o príncipe Sidarta Gautama – filho único do rei Sudhodana, do clã dos Sakia, com sua esposa Maya, na cidade de kapilavastu, capital do reino de Kosala, junto ao Monte Himalaia, próximo à fronteira do Nepal – e viveu a infância e a juventude em meio a grande luxo, até o “Grande Despertar”, ou “Iluminação”, depois do que elaborou uma doutrina, cujos ensinamentos foram agrupados por seus discípulos numa obra intitulada “lipitaka”.

2 Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês, iniciou o Existencialismo, corrente de pensamento que tem no homem, em sua existência concreta, o objeto próprio de reflexão filosófica. Nessa existência, em função de uma situação definida, como o “ser no mundo”, sem possuir uma essência abstrata e universal, condenado à liberdade, o homem é o construtor de sua vida e senhor de seu destino, embora seja obrigado a enfrentar as limitações concretas.

Heloísa Pires é Pedagoga, escritora e palestrante. Texto extraído do livro “Herculano Pires, o homem no mundo”, edição FEESP – Federação Espírita do Estado de São Paulo, 1992.

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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