Por que Deus não criou todos os espíritos perfeitos, para que o mal nunca existisse?

Por Paulo Henrique de Figueiredo, autor de “Mesmer, a ciência negada” e “Revolução Espirita – a teoria esquecida de Allan Kardec”.


 

Há uma fundamental relação entre matemática e filosofia. Platão levava essa relação muito a sério. Aqui não entra quem não compreenda geometria, mandou registrar na entrada da Academia.

No Egito antigo, os detentores de todo conhecimento eram os sacerdotes. Também do conhecimento matemático, que os servia para construir os palácios, monumentos, registrar as variações climáticas, produções agrícolas, populações, e tantos outros que os permitiam controlar e compreender sua civilização com extraordinária precisão por tanto tempo.

Quando esse conhecimento chegou à Grécia, no sexto século antes de Cristo, não havia classe sacerdotal dominante, o que permitiu que a ciência aparecesse de um modo livre entre eles. Vejamos uma passagem de Platão, que cita Sócrates:

“Bem, depois disso, disse Sócrates, quando eu estava esgotado com minhas investigações físicas, ocorreu-me que deveria guardar-me do mesmo tipo de risco que correm as pessoas, quando veem e estudam um eclipse do sol; elas realmente prejudicam seus olhos, algumas vezes, a menos que estudem seu reflexo na água ou em outro meio (…). Assim, decidi recorrer a teorias e a usá-las na tentativa de descobrir a verdade sobre as coisas. (…). Em todo caso, primeiro estabeleço a teoria que julgo ser a mais correta e, então, o que parece concordar com ela – em relação a causas ou a qualquer outra coisa – assumo ser verdadeiro, e o que não, assumo não ser verdadeiro”. (Fédon, 99d-100a).

Sem os recursos da lógica seria impossível construir teorias para compreender as leis que regem o universo. Futuramente, esse seria o caminho trilhado para a formação da ciência moderna. Essa clareza de criar modelos para representar a realidade, confrontado sua estrutura com os fatos, para verificar a veracidade das hipóteses. A figura criada por Sócrates é ótima, estudar a eclipse observando indiretamente seu reflexo na água.

Quando vamos estudar as obras de Allan Kardec é preciso ter em conta exatamente essa fundamentação lógica da construção do conhecimento. Toda a doutrina espírita foi construída pela adição de conceitos formando um todo coerente, lógico,  sem nenhum detalhe equivocado que comprometa a solidez de sua estrutura.

No entanto, nem todos compreendem bem o Espiritismo. Há quem defenda ideias que não estão presentes na filosofia espírita original. Essas falsas interpretações, justamente por serem falsas, ferem a coerência do conjunto, fazendo com que aqueles que ouvem ou leiam esses relatos, percebam uma incoerência, um equivoco lógico. E, se não se derem conta de que não se trata da teoria verdadeira, acusam o Espiritismo de falsidade, ignorância, qualificando-o como uma bobagem que desmerece a atenção séria dos mais esclarecidos.

Certa vez, em 1864, perguntaram a Allan Kardec se Deus não poderia ter criado os espíritos perfeitos, para poupar-lhes o mal e todas as suas funestas consequências.

Como Kardec resolveu essa questão? Não precisou perguntar a centenas de espíritos para que eles respondessem. Com base nos ensinamentos já conhecidos até então, pois esse diálogo já vinha desde antes de 1857, o raciocínio lógico permite chegar a um entendimento adequado:

“Sem dúvida, Deus teria podido, uma vez que é todo-poderoso, e se não o fez, foi porque julgou, em sua soberana sabedoria, mais útil que isso fosse de outro modo. Não cabe ao homem escrutar os seus desígnios, e ainda menos julgar e condenar as suas obras. Uma vez que não pode se admitir Deus sem o infinito das perfeições, sem a soberana bondade e a soberana justiça, que se tem incessantemente sob os olhos as milhares de provas de sua solicitude por suas criaturas, deve-se pensar que essa solicitude não pôde fazer falta na criação dos Espíritos. O homem, sobre a Terra, é como a criança, cuja visão limitada não se estende além do círculo estreito do presente, e não pode julgar da utilidade de certas coisas. Ele deve, pois, se inclinar diante do que está ainda acima de sua capacidade. No entanto, tendo Deus lhe dado a inteligência para se guiar, não lhe está proibido de procurar compreender, tudo em se detendo humildemente diante do limite que não pode transpor. Sobre todas as coisas ficadas no segredo de Deus, ele não pode senão estabelecer sistemas mais ou menos prováveis. Para julgar aquele desses sistemas que mais se aproxima da verdade, tem um critério seguro, que são os atributos essenciais da Divindade; toda teoria, toda doutrina filosófica ou religiosa que tendesse a destruir a mínima parte de um único desses atributos, pecaria pela base, e seria, por isso mesmo, maculada de erro; de onde se segue que o sistema mais verdadeiro seria aquele que concordasse melhor com esses atributos” (Revista Espírita, março 1864).

A medida da verdadeira lei de Deus é aquela que respeita toda a sua sabedoria e bondade. Quando uma hipótese transparece imparcialidade, vingança, castigo, culpa, revanche, orgulho, qualquer uma dessas motivações humanas, certamente não é um ato divino. Continua Kardec:

“Sendo Deus todo sabedoria e todo bondade, não pôde criar o mal para fazer contrapeso ao bem; se tivesse feito do mal uma lei necessária, teria enfraquecido voluntariamente o poder do bem, porque o que é mal não pode senão alterar e não fortalecer o que é bem. Estabeleceu leis que são muito justas e boas; o homem seria perfeitamente feliz se as observasse escrupulosamente; mas a menor infração a essas leis causa uma perturbação da qual experimenta o contragolpe, daí todas as suas vicissitudes; é, pois, ele mesmo que é a causa do mal por sua desobediência às leis de Deus. Deus criou-o livre para escolher seu caminho; aquele que tomou o mau, fê-lo por sua vontade, e não pode senão se acusar das consequências que disso lhe resulte. Pela destinação da Terra, não vemos senão os Espíritos dessa categoria, e é isso que faz crer na necessidade do mal; se pudéssemos abarcar o conjunto dos mundos, veríamos que os Espíritos que permaneceram no bom caminho percorrem as diferentes fases de sua existência em condições todas outras, e que desde que o mal não sendo geral, não saberia ser indispensável”. (Idem, ibidem).

Muitos falsos profetas alardeiam que Deus castiga aqueles que o desobedecem, outros afirmam que todos os nascidos neste mundo carregam o pecado e sofrem pela ira divina. Outros ameaçam o futuro com penas terríveis, amedrontado, principalmente, as pessoas inocentes, simples, temerosas do que lhes poderia ocorrer após a morte. E, inúmeros sacerdotes e divulgadores religiosos, que deveriam oferecer as palavras de esperança e declamar sobre a bondade e sabedoria de Deus, repetem falsos ensinamentos, criando uma falsa figura de um criador implacável, vingativo, perseguidor.

O Espiritismo tem um ensinamento simples, esclarecedor e que apazigua a todos. Vejamos como Kardec desenvolve essa ideia em seu artigo, clareando a questão:

“Há uma lei geral que rege todos os seres da criação, animados e inanimados: é a lei do progresso; os Espíritos a ela estão submetidos pela força das coisas, sem isso essa exceção perturbaria a harmonia geral, e Deus quis nisso dar um exemplo abreviando-o no progresso da infância. Mas o mal não existindo como necessidade na ordem das coisas, uma vez que não é senão o fato dos Espíritos prevaricadores, a lei do progresso não os obriga, de nenhum modo, a passarem por essa fieira para chegarem ao bem; ela não os submete senão a passar pelo estado de inferioridade intelectual, dito de outro modo, pela infância espiritual. Criados simples e ignorantes, e por isso mesmo imperfeitos, ou melhor, incompletos, eles devem adquirir por si mesmos e pela sua própria atividade a ciência e a experiência que não podem ter no início. Se Deus os tivesse criado perfeitos, teria devido dotá-los, desde o instante de sua criação, da universalidade dos conhecimentos; tê-los-ia assim isentado de todo o trabalho intelectual; mas ao mesmo tempo ter-lhes-ia tirado a atividade que devem se desdobrar por adquirir, e pela qual concorrem, como encarnados e desencarnados, ao aperfeiçoamento material dos mundos, trabalho que não incumbe mais aos Espíritos superiores encarregados somente de dirigir o aperfeiçoamento moral. Por sua própria inferioridade eles tornam-se uma engrenagem essencial à obra geral da criação. De um outro lado, se os tivesse criado infalíveis, quer dizer, isentos da possibilidade de fazer mal, teriam sido fatalmente como máquinas bem montadas que cumprem maquinalmente as obras de precisão; mas então não mais de livre arbítrio, e, por consequência, não mais de independência; teriam se assemelhado a esses homens que nascem com a fortuna toda feita, e se creem dispensados de nada fazer. Submetendo-os à lei do progresso facultativo, Deus quis que tivessem o mérito de suas obras para terem direito à recompensa e gozarem da satisfação de terem eles mesmos conquistado a sua posição”. (Idem, ibidem).

Todos fomos criados simples e ignorantes, e tendo o progresso como lei fundamental, fazemos uso da liberdade para escolher o caminho a tomar. O ponto final será o mesmo para todos, buscar a perfeição relativa. Mas a trajetória é livre e pessoal. Fazendo uso da matemática, do pensamento lógico, e considerando essas leis fundamentais que regem o espírito, podemos chegar a uma conclusão muito interessante. Pela proporção, muitos dos espíritos nem precisam passar pela imperfeição em seu desenvolvimento. Eles progridem passo a passo, acompanham a evolução do planeta onde nasceram em suas primeiras vidas, e usufruem da condição feliz que seu orbe se destina. Sim, isso mesmo, todos os planetas se tornarão felizes, explicam os espíritos superiores nas obras de Kardec.

O planeta Terra também será feliz. Milhões de espíritos que aqui vivenciaram suas primeiras vidas humanas, desde a era primitiva, lutam hoje para prover as mesas com o alimento, elevam as paredes tijolo a tijolo, são os responsáveis pelas conquistas do que chamamos civilização. Todavia, a desigualdade social prejudica muitos, explora a maioria, relega a fome muitos inocentes. Mas a conscientização tem crescido regularmente. A indignação com a violência, exploração e corrupção torna-se geral. Iniciativas solidárias e transformadoras entusiasmam crianças e jovens. Haverá uma revolução moral prevista pelo Espiritismo. Os espíritos simples, que vivem sem grandes imperfeições, trabalhando e lutando pelo bem, herdarão enfim a Terra, como previu Jesus.

Nosso mundo será feliz, finalmente. Isso é certo, como dois e dois são quatro.

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Casa Espírita Nova Era.


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+ Paulo Henrique de Figueiredo