Ser um espírita autônomo
Marcelo Henrique
Os últimos anos de pesquisas, investigações e descobertas, aliados aos debates empreendidos no movimento espírita acerca dos textos de Kardec têm nos conduzido a uma esquina do tempo bastante interessante. Dizemos “esquina” para representar, figurativamente, a perspectiva (oportunidade) de decisão, de escolha entre alternativas possíveis.
Eis que muito tem sido descoberto sobre o próprio Codificador, sobre o seu método e estilo de trabalho e, até, sobre o conteúdo de suas obras, considerando que ocorreram alterações significativas em algumas delas, podendo comprometer o que chamamos de teoria espírita fundamental. Por outro lado, como a tendência humana é, quase sempre, a de superdimensionamento, mitificação e endeusamento, muito do que nos chegou, até a década de 1990 sobre a personalidade de Rivail-Kardec esteve quase sempre envolto em uma névoa de “superioridade” e “infalibilidade”. Assim, por exemplo, a cinematografia recente (“Kardec: a história por trás do nome”, Wagner de Assis, 2019), nos revela um personagem profundamente humano, com suas inquietações, receios, certezas, dúvidas, verdades, acertos e erros, aproximando o Mestre dos seus discípulos: nós!
Descortinar esses e outros horizontes é fundamental para o adepto da Doutrina dos Espíritos. Lembremos que Kardec jamais pretendeu dizer “a verdade” ou a “última palavra”. E não consolidou a filosofia com algo estanque e acabado. Duas proposições de Kardec atestam isso: uma, a de que o Espiritismo seria uma ciência filosófica progressiva, calcada na descoberta de novas explicações sobre as questões materiais e espirituais, em que deveríamos, nós, perquirir (perguntar) os Espíritos a respeito de realidades que não existiam no período 1857-1869; e, outra, a de que o Espiritismo deveria acompanhar de perto os progressos das ciências materiais, os quais poderiam validar algumas das teorias espíritas ou avançar em termos de conhecimentos não abordados ou primariamente tratados pela Doutrina.
Levantadas estas premissas, precisaremos caracterizar a autonomia dos espíritas. E o ser espiritual é autônomo, justamente pela principal conquista derivada da consciência de si mesmo: a liberdade de pensar, se expressar e agir, que é conceituado pela Filosofia Espírita, como livre-arbítrio. E, como não há liberdade total, plena, completa, pois que todos os “seres da Criação” se acham sujeitos ao domínio e ao império das Leis Espirituais, podemos dizer, espiriticamente, que, também em relação ao livre-arbítrio há limites.
Mas a limitação de nossas vontades e potencialidades não significa a anulação da liberdade e, por conseguinte, da autonomia.
Vamos a algumas questões pontuais.
A primeira delas é o conceito (e a amplitude ) de Deus. O que é o Deus dos Espíritas? Como ele é simbolizado ou entendido? Que ideia fazemos de Deus? Qual é a incidência dele em nosso existir diário?
Note que as construções filosófico-morais derivadas de visões religiosas, do presente e do passado, são de uma influência (quase) irresistível. E isto repercute na ideia que temos a respeito do “papel” de Deus no Universo (Criação) e na nossa vida individual e coletiva cotidiana.
Expressões como “se Deus quiser”, “graças a Deus”, “seja feita a vontade divina”, “Deus no comando”, “Deus permite”, “Deus limita”, “Deus provê”, “Deus abençoe”, entre outras, fazem parte do nosso imaginário espiritual-vivencial. São uma espécie de mantra, de aura protecional, ou assumem a função de elemento de proteção ou resguardo, assim como podem ter um efeito terapêutico (placebo), de conformação às realidades ou ocorrências da vida.
Em Kardec – isto é, no conjunto das suas 32 obras – também vamos encontrar algumas destas afirmações, marcantemente em páginas assinadas por Espíritos Superiores, concebidas para contextualizar a incidência das Leis Espirituais ao existir humano e planetário, mas que resultam da interpretação (pessoal) daqueles Espíritos e, neste sentido, também se acham impregnados de conceitos das religiões – em especial, a Cristã – que materializa a ideia de um Deus antropomórfico. Então, nestes textos, há um Deus “controlador”, “fiscal” das condutas humanas, “presente”, “atuante” e “aplicador” das leis espirituais a indivíduos ou coletividades.
E, em assim entendendo, ou seja, situando Deus como aquele que interfere decisivamente em nossas vidas, se perde o conceito de autonomia espiritual ou, no mínimo, se reduz o mesmo a um patamar de seres condicionados à “vontade divina”. Ora, tudo é “da vontade de Deus”, inclusive o errar dos dias mais comuns da nossa existência, em que “respondemos” na medida de nossas possibilidades e potencialidades, já que “em a Natureza nada dá saltos”. Não precisamos, nós, de um aguilhão externo, presente na “mão de Deus” para nos fazer voltar ao “certo”, depois de termos experimentado o “errado”. Não é Deus quem “administra” as Leis, enviando benesses ou castigos, ou alterando o curso natural da vida, dos mundos, do Universo. São as Leis Universais! E elas são, utilizando um termo que nos parece bem compreensível, AUTOMÁTICAS, aplicando-se, como disse aquele Carpinteiro, “a cada um segundo suas obras”.
Kardec, inclusive, se deixa contagiar, seja por sua própria “bagagem” espiritual – da existência em que codificou o Espiritismo (1804-1869) e das anteriores – seja pela influência dos textos que selecionou como compatíveis com os princípios espíritas (e, neste sentido, podemos vislumbrar o entusiasmo que deve ter sido uma constante naquele homem maduro, ao estar próximo de tantas inteligências luminares que lhe transmitiam respostas verossímeis para as mínimas questões da existência). Quem de nós não seria influenciado? Quem de nós não tomaria, como referência, aqueles escritos, passando a adotar, pouco a pouco, a mesma forma de escrita? Avaliemos…
Falando em influência, vamos buscar outro elemento importante para este artigo: o da influência dos Espíritos (desencarnados) nos atos da existência humana. Isto está no item 459, de “O livro dos Espíritos” e você já deve ter lido “n” artigos ou escutado “x” preleções a respeito, todas interpretativas do (maior ou menor) grau de influência espiritual a que nós, sob a vinculação e restrição do envoltório físico (corpo material), estamos sujeitos.
Neste contexto, há, assim como na temática anterior (Deus), um preocupante limitador dos entendimentos espíritas-espirituais. Ao interpretar a extensão desta influência, podemos nos imaginar em duas situações que, aliás, costumam ser a tônica das conversações entre os espíritas.
A primeira: a de que os Espíritos Superiores irão realizar as “transformações” necessárias no ambiente planetário em que nos encontramos, fazendo “brotar” na inteligência de pessoas influentes de nosso tempo (governantes, legisladores, juristas, cientistas, por exemplo), “fórmulas”, “soluções”, “alternativas”, “descobertas”, justamente porque eles, por estarem à frente, já teriam conhecimentos mais amplos ou vivenciado situações em outros mundos, para contribuir para as situações enfrentadas pelo nosso.
A segunda: a de que este grau de influência seja tão acentuado que nos dificulte a liberdade de pensamento, de escolha e de decisão, a ponto de considerar (quase) tudo como influência negativa (obsessiva), derivada dos nossos desafetos espirituais, tornando-nos, assim, presas fáceis de entidades desencarnadas (que estão, em face de não estarem “na carne”, livres para nos “perseguir” onde quer que estejamos).
No primeiro contexto, que mérito teriam os encarnados, que se dedicam a inúmeras áreas do conhecimento humano em pesquisar, teorizar e aplicar seus conhecimentos? Há que se cogitar do esforço individual, dos seres que estagiam neste mundo físico, para a resolução das infinitas questões do viver, com a mensuração dos esforços e dos resultados obtidos, para a própria esteira de progresso individual, na escala evolutiva.
No último, o vetor para o entrelaçamento de Espíritos é a vontade humana, nos colocando como o ponto de partida de qualquer envolvimento, pela lei das afinidades, com os semelhantes (estando eles, desencarnados ou encarnados). Como a força-motriz é o pensamento (que antecede as palavras e as atitudes), somos nós quem atraímos os afins e damos oportunidade para que eles nos influenciem.
Daí, a afirmativa cabal dos Espíritas, sobre a influência dos desencarnados, principalmente, sobre os encarnados estar centrada no axioma: “mais do que pensais; não raro são eles que vos dirigem”, dada a condição de sermos MUITO INFLUENCIÁVEIS pelas “opiniões” de outrem. Isto é, abdicamos de nossa capacidade de entendimento, análise e decisão para sermos “títeres” dos outros.
Por fim, é necessário dizer que as coisas em geral, de plano, assumem uma posição de neutralidade. Uma faca, um automóvel, um avião, uma garrafa de bebida alcoólica, um instrumento de trabalho, um utensílio doméstico, um elemento de divertimento, concebidos para determinada finalidade, podem, pela ação humana, alterar significativamente a sua função, pelo uso a que a ele dermos. Tudo, pois, é, inicialmente neutro.
O mesmo se dá, idealmente, em relação a pessoas, individualidades, Espíritos. Podemos, como seres imperfeitos que somos, tender para o “bem” ou para o “mal”, de acordo com nossas convicções, interesses, gostos, preferências, simpatias, intenções… Encarnados, em diversas situações da existência, demonstramos isto diariamente. Podemos construir ou destruir. Elevar ou rebaixar. Valorizar ou depreciar. Conciliar ou afastar. Conjugar ou separar.
O que não podemos abandonar, seja em relação a Deus seja em relação aos nossos pares (encarnados ou desencarnados), é a nossa AUTONOMIA! Seja quem você realmente é. Decida sobre si mesmo. Pense e que suas escolhas possam ser as melhores possíveis. Como cantou o poeta, a ideia principal é a de sermos nós os protagonistas de nossa vida (espiritual), já que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. E não o que “outros” queiram que sejamos.
Publicado simultaneamente com o portal ECK