III – A filosofia espírita

Por Herculano Pires

Esta rápida apreciação da estrutura de "O Livro dos Espíritos", em suas ligações com as demais obras da codificação, parece-nos suficiente para mostrar que ele constitui, como dissemos, no início, o arcabouço filosófico do Espiritismo. Contém, segundo Kardec declarou no frontispício, "Os princípios da Doutrina Espírita". É, portanto, o seu tratado filosófico. Embora não tenha sido elaborado em linguagem técnica, e não observe os rigores da minuciosa exposição filosófica, é todo um complexo e amplo sistema de filosofia que nele se expõe.

Ao apreciá-lo, sob esse aspecto, devemos considerar que Kardec não era um filósofo, mas um educador, um especialista em pedagogia, discípulo emérito de Pestalozzi. Daí o aspecto antes didático do que propriamente de exposição filosófica que imprimiu ao livro.

Em segundo lugar, o obra não foi propriamente escrita por ele, mas elaborada com as respostas dadas pelos Espíritos às suas perguntas, nas sessões mediúnicas, com as meninas Boudin e Japhet, e mais tarde com outros médiuns.

Em terceiro lugar, o livro não se destinava a formar escola filosófica, a conquistar os meios especializados, mas apenas a divulgar os princípios da doutrina de maneira ampla, convocando os homens em geral para o estudo de uma realidade superior a todas as elucubrações do intelecto.

Em quarto lugar, o próprio Kardec teve o cuidado de advertir, nos "Prolegômenos", que evitava os prejuízos do espírito de sistema, como vemos neste trecho, em que se refere ao ensino dos Espíritos:

"Este livro é o compêndio dos seus ensinamentos. Foi escrito por ordem e sob ditado dos Espíritos superiores para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, livre dos prejuízos do espírito de sistema".

Como se vê, "estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, livre dos prejuízos do espírito de sistema", e não criar uma nova escola filosófica, o que implicaria toda uma rígida sistematização. Esse propósito vem ao encontro do pensamento dos filósofos modernos, como vemos, por exemplo, em Ernest Cassirer, que em sua "Antropologia Filosófica", referindo-se à incoveniência dos sistemas, diz: "Cada teoria se converte num leito de Procusto, em que os fatos empíricos são obrigados a se acomodar a um padrão preconcebido". Max Scheller, por sua vez, comenta: "Dispomos de uma antropologia científica, outra filosófica e outra teológica, que se ignoram entre si". Kardec esquivou-se precisamente a isso, tanto mais que o espírito de sistema seria a própria negação dos objetivos da doutrina.

Quanto ao problema da linguagem técnica, não devemos nos esquecer de que o livro se destinava ao grande público, e não apenas aos especialistas. Podemos lembrar, a propósito, o exemplo de Descartes, que escreveu o seu "Discurso do Método" em francês, quando o latim era a língua oficial da filosofia, porque desejava dar-lhe maior divulgação. Mesmo que Kardec fosse um filósofo especializado, a linguagem técnica não serviria aos seus propósitos nesta obra.

Quanto ao método didático, não seria este o primeiro livro de filosofia a dele se socorrer. Podemos lembrar, por exemplo, "A Ética", de Espinosa. Kardec inicia este livro com a definição de Deus, como Espinosa naquele, e se não segue a forma geométrica de exposição, por meio de definições, axiomas, proposições e escólios, segue entretanto a forma lógica, através de perguntas e respostas, intercaladas de comentários e explicações. Há, aliás, curiosas similaridades de estrutura, de posição, de ligações históricas e de princípios, entre esses dois livros, reclamando estudo mais aprofundado. Como as há entre o que se pode chamar a revolução cartesiana e o Espiritismo, a começar pelos famosos sonhos de Descartes e a sua convicção de haver sido inspirado pelo Espírito da Verdade.

Yvonne Castellan, num breve, falho, às vezes gritantemente injusto, mas em parte simpático estudo da doutrina referindo-se ao "O Livro dos Espíritos", mostra que: "O sistema é completo, e compreende uma matafísica, inteiramente repleta de considerações físicas ou genéticas, e uma moral". Numa análise mais séria, a autora teria visto que a estrutura é mais complexa do que supôs.

O livro começa pela metafísica, passando depois à cosmologia, à psicologia, aos problemas propriamente espíritas da origem e natureza do espírito e suas ligações com o corpo, bem como aos da vida após a morte, para chegar, com as leis morais, à sociologia e à ética, e concluir, no Livro IV, com as considerações de ordem teológica sobre as penas e gozos futuros e a intervenção de Deus na vida humana. Todo um vasto sistema, sem as exigências opressoras ou os prejuízos do espírito de sistema, numa estrutura livre e dinâmica, em que os problemas são postos em debate.

Lembrando-nos dos primódios do Cristianismo, podemos dizer que o Espiritismo tem sobre ele uma vantagem, no tocante ao problema filosófico. A simplicidade de "O Livro dos Espíritos" não chega ao ponto de nos obrigar a adaptar sistemas antigos aos nossos princípios, como aconteceu com Santo Agostinho e São Tomaz, em relação a Platão e Aristóteles, para a criação

da chamada filosofia cristã. O Espiritismo já tem o seu próprio sistema, na forma ideal que o futuro consagrará, e cujas vantagens vimos acima.

Por outro lado, é curioso notar que "O Livro dos Espíritos" se enquadra numa das formas clássicas e mais fecundamente livres da tradição filosófica: o diálogo. Por tudo isso, vê-se que Kardec, sem ser o que se pode chamar um filósofo profissional, tinha muita razão ao afirmar, no capítulo VI da "Conclusão", referindo-se ao Espiritismo: "Sua força está na sua filosofia, no apelo que faz à razão e ao bom senso".

Capítulo da introdução redigida por Herculano Pires para o "O Livro dos Espíritos", por ocasião da edição especial da LAKE, comemorativa do centenário da obra, em 18 de abril de 1957.

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