Pesquisa Científica ou
Intransigência Religiosa?
Marcelo Henrique Pereira, Mestre em Ciência Jurídica
Do mesmo modo como em outras épocas e para temas análogos, Ciência e Religião duelam em palcos da Sociedade humana, cada qual com seus argumentos, visando a permissibilidade ou a proibição de determinadas condutas humanas. No passado, homens de visão e conhecimento científico, à frente do contexto social e histórico, também construíram teses e demonstraram, por meio de estudos e pesquisas em muitos campos e setores, a imprecisão e a invalidade de diversos dogmas religiosos, construídos sob bases míticas ou místicas com apoio no sobrenatural, e representativos do mistério que envolvia as situações de difícil entendimento.
Muitos destes homens pagaram com suas próprias vidas a ousadia de pensar, experimentar e divulgar suas idéias, mas foram significativos para que outros, após eles, em cenários mais favoráveis e com consciências mais despertas, pudessem esclarecer as coletividades acerca de dados “mistérios” da vida, e facilitar a coexistência planetária.
Talvez um dos temas mais áridos de nosso tempo seja a delimitação dos conceitos de vida e morte. Tanto no seu início, quanto seu termo. Aborto e nascimento, eutanásia e morte “natural” são questões que inquietam inúmeras pessoas, provocando debates apaixonados e acalorados, em que nem sempre os argumentos lógicos e conscientes sobressaem.
Socialmente, o mundo evoluiu bastante. Da formatação de Estados Religiosos, em que o poder político era repartido entre autoridades civis, militares e religiosas, ou em que estas últimas tinham grande ascendência sobre os governos, chegamos ao modelo de Estado Laico, vigente em praticamente todas as Nações do presente, salvo algumas exceções. O laicismo, a propósito, é a doutrina filosófica que propugna pela absoluta separação entre o Estado e as agremiações religiosas, e a neutralidade do primeiro em questões afetas à religião. Tem como valores básicos a liberdade de consciência, a igualdade entre os cidadãos em matéria religiosa, e a origem humana e democraticamente estabelecida das leis do Estado.
É a Ciência, por sua vez, um importante movel das ações humanas, calcada na progressividade dos conceitos e na melhoria de tudo o quanto esteja sujeito às leis físicas. Participa, ela, de uma das maiores batalhas do Ser contra inimigos poderosos: a dor, a doença e a própria morte. Em todas as partes do globo terrestre, pessoas e instituições se dedicam ao desafio de combater e vencer estes “inimigos” da sobrevivência. Vários dos ramos científicos, por sua vez, especializam-se cada vez mais e propiciam um melhor equacionamento das questões que tanto atormentam a Humanidade. Uma delas, sem dúvida nenhuma, é tornar os organismos físico-biológicos mais resistentes às enfermidades e melhorar o nível de qualidade de vida das pessoas. É aí que entra a questão das pesquisas com células-tronco embrionárias.
O Brasil possui, neste particular, uma das legislações mais avançadas do mundo, a Lei de Biossegurança, e os profissionais de nosso país já participam de grupos de pesquisa e projetos de parceria institucional internacional. Pelos termos da legislação brasileira, estão autorizados os experimentos com células-tronco adultas e embrionárias, e estas últimas são objeto de celeuma e de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI n. 3510), que está na pauta de discussão da mais alta corte judiciária brasileira, o Supremo Tribunal Federal (STF). Isto porque uma vertente opinativa defende que tais organismos, originados do processo de fecundação “in vitro”, entre óvulo e espermatozóide humano, conteriam vidas humanas e, portanto, o descarte de embriões fecundados nos experimentos clínicos seria uma hipótese de aborto, a ser rechaçada legal e juridicamente.
No bojo desta discussão está o argumento de que o conceito do bem jurídico “vida” teria início na “concepção”, isto é, com a dita fecundação, mesmo artificial. E a carta constitucional brasileira, como grande parte das similares de outros países protege a vida como bem supremo, punindo, em âmbito criminal, as agressões a ele, em qualquer circunstância, excetuando algumas situações peculiares, de legítima defesa e de guerra, por exemplo.
Assim sendo, o debate que chega à corte judiciária envolve, de um lado, o grupo dos cientistas, dos laicos e daqueles que desejam o progresso das pesquisas (e, entre eles, um considerável número de pessoas que depende dos resultados destas para evitar a morte ou melhorar a qualidade de vida), e os religiosos, cujo argumento maior é o de que Deus provê a vida e tudo o que ocorre se dá por específica “autorização” de Deus, de modo que a incursão humana nestes setores – sobretudo no âmbito de decidir quando e como deve ocorrer ou definir seu término – consiste em agressão às “Leis de Deus”.
A questão é tão profunda e complexa que também divide os espíritas. Há, notadamente, o contraponto entre espíritas “científicos” (laicos) e “religiosos”, de modo que os primeiros entendem a realidade de uma co-participação do homem nos “desígnios” divinos, como co-autor e podendo, em inúmeras situações, obrar segundo sua inteligência e tirocíno para a elucidação das questões de natureza física, com a (mais ampla) liberdade de pensamento e de ação, condicionadas, é claro, as decisões ao condão da responsabilidade de cada um, perante as chamadas Leis Espirituais (representadas, em certo aspecto, pelas Leis Morais epigrafadas em O livro dos espíritos). De outro lado, figuram os argumentos restritivos e condicionantes daqueles que entendem que o homem “brinca de ser Deus” e adentra campos que deveriam “seguir o curso natural”, como, por exemplo, a situação de não abortar, em nenhuma circunstância, porque toda gestação seria uma oportunidade (viável e válida) do reencarne de espíritos em evolução, necessitados daquele corpo. Tudo obedeceria, assim, aos desígnios divinos, no sentido de que Ele (o Deus, causa primária, inteligência suprema) estaria presente em tudo e, portanto, a interferência humana seria pedante, vaidosa e descabida.
Ambas as “correntes” espiritistas usam da fundamentação contida em O livro dos espíritos, para alicerçar seu pensamento e construir sua argumentação. No exato momento histórico-evolutivo em que deveríamos estar continuando a experimentação espírita, nos moldes prelecionados por Kardec, há mais de 150 anos, remontando ao critério do Consenso Universal dos Ensinos dos Espíritos (CUEE), submetendo questões a diversos Espíritos, sob a intervenção de distintos médiuns, em épocas e locais igualmente diferentes, inclusive aproveitando as noções científicas e filosóficas de nossa época à consideração das inteligências invisíveis – num esforço de consonância entre o que a produção humana e a informação espiritual possam declarar – preferimos nos basear em dadas “opiniões” deste ou daquele espírito, que se corresponde com o nosso mundo através de dados médiuns, considerados “oficiais”, sem cotejar a necessidade imperiosa de submetermos toda e qualquer comunicação – independentemente da assinatura espiritual ou da personalidade do receptor – ao crivo de Erasto (“rejeitar nove verdades a aceitar uma só mentira”).
O “duelo”, assim, resurge entre nós, talvez não com a característica dos cenários de meados do século XIX, com armas de fogo e regras permitidas pelas leis da época, mas com a contextura de estarem, lado a lado, correntes de pensamento (sob o albergue do conhecimento e da prática espíritas) que, ao invés de procurarem um consenso lógico e um entendimento necessário, persistem na apresentação de verdades dicotômicas, deixando o incauto iniciante ou pouco embasado estudioso espírita, na dúvida sobre “o que” realmente deve ser aceito, entendido e difundido.
Particularmente, no cenário das pesquisas científicas, entendemos que a Ética deva ser a base para os experimentos e os resultados obtidos. Não a moral individual, sujeita aos percalços dos interesses humanos, muitos dos quais escravizados às conquistas derivadas do poder, da honra e do dinheiro. Divisar, com precisão, os objetivos de cada evento humano ou material, entendendo que o homem é personagem principal e não mero títere da “Espiritualidade” ou de “Deus”, deve ser o primeiro passo.
Não podemos continuar reféns do atraso “ideológico” que limita as ações humanas à “autorização divina”, nem, tampouco, adotarmos como regra procedimental a ampla liberdade de ação, cabendo aos homens (legisladores, operadores jurídicos, cientistas e dirigentes políticos) a aquilatação, em padrões aceitáveis, dos limites e das permissibilidades, o “sim” e o “não”, o “certo” e o “errado”, ainda que, no transcurso, seja necessário rever dados procedimentos para adaptá-los a novos delineamentos, novamente egressos do exercício do raciocínio e da moralidade coletiva.
As pesquisas – no Brasil ou em outras plagas – com certeza continuarão ocorrendo e a própria Espiritualidade – em consenso e em conjunto com a Humanidade encarnada – saberá aproveitar a ação consciente e produtiva dos “homens de bem” para promover o progresso. Assim tem sido, e assim continuará a ser… Independentemente dos homens e suas obtusidades…
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