Precisamos falar de morte…
Por coronavírus e por necropolítica!
Dora Incontri
No mundo contemporâneo, quase nunca se pode falar da morte. Não é de bom tom. A morte a gente hoje esconde, do luto muitos se envergonham. Antigamente, quando morria alguém próximo, carregava-se na roupa um sinal de luto. O doente morria em casa, cercado de familiares. Os velórios feitos na sala, todos participavam, inclusive as crianças. Hoje não. A morte fica à distância. Na UTI, a pessoa morre só. Os velórios, às vezes me choca, são lugares de conversas frívolas – só às vezes, quando parte alguém mais jovem ou mais tragicamente, ouve-se o pranto dos mais próximos.
E de repente, a morte invade o mundo. Não que ela não nos visite todos os dias. Mas agora, são milhares diariamente, a ponto de faltar covas, a ponto de não termos números exatos. Já houve outras ondas de morte na história de séculos atrás ou na história recente: a peste negra, a peste bubônica, a gripe espanhola, as duas grandes guerras… Nesses momentos, os lutos são mais complicados, deixam marcas mais profundas. Morrer um ser amado num leito tranquilo, cercado pelos familiares em despedida (assim morreu minha mãe), é uma dor, mas uma dor pacífica, que se torna saudade amena. Mas perder um ser amado sem se encontrar o corpo mutilado numa guerra ou sem se poder despedir como se deve, como agora com esse coronavírus, aí a dor é mais angustiante e a marca depois terá de ser muito tratada, com assistência terapêutica e espiritual. É o que se chama luto complicado.
Entretanto, essas ondas de mortes coletivas, que nos angustiam tanto, são momentos que nos chamam a pensar na vida e na morte, nossa e do outro, lembrando que se há algo que nos iguala enquanto humanidade é a nossa finitude. Todos vamos enfrentar esse momento. Uma pandemia apenas pode convocar algumas pessoas mais cedo do que o esperado, e convocar muito mais pessoas ao mesmo tempo.
Pensar na morte faz bem, é educativo, é necessário – porque, como diria Renato Russo, é preciso amar as pessoas, como se não houvesse amanhã. Quando temos sempre a consciência de nossa finitude, ficamos mais perto dos que amamos, criamos com mais visceralidade, preocupamo-nos em deixar as coisas terminadas e bem feitas a cada dia. E procuramos uma consciência que esteja em paz, para o grande dia da passagem.
Estou sendo fúnebre? Não, apenas a morte faz parte da vida. E agora nos lembramos disso todos os dias.
Para mim, que sou espiritualista e, mais especificamente espírita, a morte não é o fim, mas apenas um recomeço, uma passagem para outra dimensão da existência. Eu, que sou médium, tenho vivências diárias dessa outra dimensão e dos seres que lá habitam e que continuam nos seguindo de perto. Claro que essa convicção não nos exime do luto por alguém que partiu, mas nos consola e nos levanta o ânimo, lembrando do reencontro que virá, quando a nossa hora chegar.
Quando a morte se apresenta mesmo, não há como revidar, não há como fugir. Ela nos leva e ponto.
Mas há outras espécies de morte – que podem nos afligir: a morte de nossos sonhos, a morte de nossas esperanças, a morte de projetos em que investimos suor e sangue. Todos os brasileiros, conscientes, lúcidos, estamos cientes do imenso número de mortes por coronavírus, que sequer são notificadas, mas também estamos sentindo a morte da nossa democracia (que nunca foi muito viva, na verdade), a morte de nossos projeto de país independente (que nunca foi realizado também), a morte de elementos civilizatórios em nossa sociedade. Bem no momento em que enfrentamos a onda de mortes coletivas no mundo e no Brasil, também temos que lidar com a morte de tudo aquilo que considerávamos princípios e marcos legais e sociais para sermos minimamente uma nação. Por isso, urge uma reação. Porque contra essas mortes, podemos lutar. Quando chega a nossa hora de partirmos dessa para melhor, não há o que nos segure aqui.