“Um fanático espírita é uma aberração”, diz Herculano Pires
Por Léia Tavares
Difícil apresentar em tão poucas linhas o entrevistado desta edição. Por onde começar? Jornalista, poeta, filósofo, educador, Herculano Pires está entre os grandes pensadores da Doutrina Espírita. Foi um dos responsáveis pela tradução das obras da Codificação para o português, escreveu mais de 80 títulos entre filosofia, ciência, parapsicologia, poesia, romance e infantis. Era assumidamente um escritor compulsivo.
Nascido em Avaré, interior de São Paulo, em 25 de outubro de 1915, aos noves anos Herculano escreveu seu primeiro soneto; já na adolescência, aos 16, publicou Sonhos Azuis (contos), seu primeiro livro. Durante os anos que se seguiram, Herculano ingressou na carreira jornalística. Escreveu para diversos órgãos da imprensa, tornou-se presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo e fundou o Clube dos Jornalistas Espíritas de São Paulo. Durante quase 20 anos, manteve uma coluna nos Diários Associados com o pseudônimo de Irmão Saulo, na qual divulgou diariamente os preceitos espíritas na imprensa leiga.
Nesta edição, resgatamos uma entrevista que Herculano Pires concedeu ao primeiro Anuário Espírita, em 1964. Naquela ocasião, o jornalista e filósofo foi questionado sobre diversos temas: parapsicologia, tradução das obras da Codificação, filosofia e fanatismo. “Do ponto de vista espírita, um fanático espírita, é uma aberração, porque o Espiritismo, está sujeita ao exame crítico. Onde se fala de crítica, no sentido exato do termo, que é o do exame aprofundado e sereno das coisas, não há lugar para manifestações de fanatismo”, disse o escritor.
Herculano Pires morreu em 9 de março de 1979, após sofrer um ataque cardíaco. Para quem tiver interesse em conhecer mais a seu respeito de sua vida e obra, em São Paulo, foi inaugurada, em 2004, a Fundação Maria Virgínia e J. Herculano Pires. A instituição tem por finalidade conservar o acervo do escritor. A sede fica na mesma casa onde Herculano viveu, e permanece como na mesma época. Lá o visitante pode encontrar livros, fotografias e objetos pessoais de Herculano Pires. Nestas páginas, ao ler esta entrevista, mesmo quem nunca ouviu falar de Herculano Pires consegue perceber a profundidade de seu conhecimento.
Quais os pontos em comum entre Espiritismo e parapsicologia?
A parapsicologia é o estudo científico, por meio de experiências de laboratório, dos fenômenos espíritas. Os pontos em comum são, portanto, o objeto e a finalidade dos estudos, pois tanto o Espiritismo quanto a parapsicologia investigam os mesmos fenômenos e procuram explicá-los. A diferença entre ambos é que a parapsicologia age no plano das ciências físicas, empregando métodos de investigação comuns a essas ciências, enquanto o Espiritismo, como assinalou Allan Kardec, sendo uma ciência espiritual emprega outros métodos.
Por que alguns espíritas conhecedores dos princípios doutrinários do Espiritismo se preocupam com a divulgação dos conhecimentos parapsicológicos?
Considero-me entre os espíritas que se interessam não em demasia, mas de maneira necessária, pelo estudo e divulgação da parapsicologia. Não sou conhecedor profundo da doutrina, mas julgo-me bem intencionado. É claro que, sendo a parapsicologia a primeira ciência oficial, se assim podemos dizer, interessar-se, séria e profundamente, pela investigação dos fenômenos espíritas, devemos interessar-nos por ela. Temos mesmo o dever de acompanhar o seu desenvolvimento e dar-lhe a nossa contribuição. Como diz o professor Joseph Banks Rhine, conhecido como o “pai da parapsicologia”, é ela a primeira ciência a revolucionar o mundo fechado das ciências oficiais, revelando a existência de “um universo extrafísico”. Basta dizer que a parapsicologia já provou, cientificamente, a existência de fenômenos espíritas: a telepatia, a clarividência, a precognição (profecia), e a psicocinesia (ação da mente, e portanto do espírito, sobre a matéria). E com isso se apresenta, também, como nova porta aberta ao conhecimento da realidade espiritual, para aqueles que não querem entrar pela porta do Espiritismo, em virtude de sua formação científico-materialista.
Qual a diferença fundamental entre parapsicologia e metapsíquica?
A diferença entre parapsicologia e metapsíquica não é fundamental, mas superficial. Consiste apenas na metodologia. A metapsíquica enfrentava os fenômenos espíritas por meio da chamada investigação qualitativa. A metapsíquica se interessava pela qualidade dos fenômenos; a parapsicologia, sem poder, evidentemente, deixar de lado o critério qualitativo, interessa-se fundamentalmente pela quantidade, segundo o critério geral da investigação científica materialista. O método quantitativo da investigação parapsicológica consiste na repetição exaustiva das experiências, para a verificação da existência ou não dos fenômenos, por meio de controle estatístico das ocorrências nas bases do cálculo de probabilidades.
Por que Allan Kardec se serviu do método dialético ao organizar O Livro dos Espíritos?
Kardec serviu-se do método dialético de exposição, mais propriamente chamado de método dialogado, por uma questão de fidelidade ao texto dos Espíritos, que lhe era dado em formas de respostas. Não havia e não há nenhum inconveniente nesse fato. O diálogo é uma forma tradicional e fecunda de exposição filosófica.
Na tradução que você fez de O Livro dos Espíritos, da Lake, há uma note que nega a Doutrina Espírita seja um sistema filosófico (conjunto fechado de idéias concebidas para explicar os fenômenos). Por quê?
Quem nega o caráter sistemático do Espiritismo é o próprio Kardec nos “Prolegômenos” de O Livro dos Espíritos; quando diz que o livro foi escrito “por ordem e sob ditado dos Espíritos Superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, livre dos prejuízos do espírito de sistema”. Isso não quer dizer que não haja um sistema doutrinário espírita, o que seria absurdo. Toda doutrina é um sistema. Mas, há sistemas livres, dinâmicos, e sistemas fechados, estáticos.
Qual a diferença entre esses dois tipos de sistemas?
Os sistemas livres correspondem ao espírito da filosofia; já os sistemas fechados, ao espírito das religiões. Como a filosofia nasceu da religião, e esta era, interpretada sempre de forma rigidamente sistemática, durante muito tempo os filósofos elaboraram grandes sistemas filósofos elaboraram grandes sistemas filosóficos, que fizeram época. No tempo de Kardec, os sistemas filosóficos imperavam. O sistema de Hegel (1770-1831), por exemplo, e o de Tomás de Aquino (1225-1274). E nesse mesmo tempo surgiam dois novos sistemas: o positivismo e o marxismo. Eram o que podemos chamar “sistemas-sistemáticos”, construções dogmáticas do pensamento. Os Espíritos Superiores indicaram a Kardec a inconveniência dessas construções, que encarceravam o pensamento em determinados princípios. Daí a formulação por Kardec de um “sistema não-sistemático”, ou seja, livre “dos prejuízos do espírito de sistema”. Uma doutrina que, à maneira do Evangelho, se constituía de orientações gerais do pensamento. Este é um aspecto que nos revela a perfeita atualidade do Espiritismo, no plano filosófico.
Um fanático espírita pode ser pior que um fanático de outras religiões?
Do ponto de vista espírita, um fanático espírita, é uma aberração, porque o Espiritismo é uma doutrina racional, que não comporta fanatismo. Já vimos que a fé, no Espiritismo, está sujeita ao exame crítico. Onde se fala de crítica, no sentido exato do termo, que é o do exame aprofundado e sereno das coisas, não há lugar para manifestações de fanatismo. Kardec já dizia, porém, que o entusiasmo excessivo é mais prejudicial à Doutrina que as campanhas dos adversários. Se entendermos por fanatismo o exagerado entusiasmo de certas pessoas, não há dúvida que isso é mais prejudicial à Doutrina do que o fanatismo dos que a combatem.
Quais erros os diversos tradutores dos livros de Kardec cometeram?
Erros de tradução sempre existem, mesmo nas melhores obras. Quando traduzi O Livro dos Espíritos, minha intenção não foi a de corrigir os outros tradutores, mas a de trazer uma tradução nova, mais adequada ao estilo atual. É claro que aproveitei a oportunidade para tentar algumas correções, mas o editor me castigou, lançando uma edição mais cheia de erros gráficos de que todas as anteriores. Não foi, porém um castigo à vaidade, pois não pensei jamais em traduzir melhor do que os outros. Pelo contrário, os outros me abriram caminho e muito me ajudaram. As correções que tentei não eram de importância fundamental. Podiam ter sido feitas nas revisões de cada nova edição. Em alguns livros, porém, como A Gênese, há erros mais sérios. Onde Kardec escreveu: “as religiões sempre foram instrumentos de dominação”, saiu em português: “demolição”. Coisas assim podem ser erros gráficos, e não propriamente de tradução. O que falta, como se vê, é mais cuidado com a publicação das obras de Kardec.
Qual o texto mais admirável que encontrou nas obras de Codificação?
Toda a obra de Kardec é um admirável monumento de lógica e espiritualidade. Não obstante, é justo que um trecho ou outro se imponha à preferência do estudante. De minha parte, considero particularmente admiráveis pela fluência e clareza do estilo, a precisão expositiva, a riqueza da argumentação e profundidade conceitual, os seguintes trechos: capítulo V da 2ª parte de O Livro dos Espíritos, intitulado “Considerações sobre a pluralidade das existências”; capítulo I e II da introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, respectivamente intitulado “Objeto desta obra” e “Autoridade da Doutrina Espírita”; e o capítulo VI de A Gênese, intitulado “Uranografia Geral”, comunicação de Galileu através de Camille Flammarioon, um dos trechos mais discutidos, e entretanto menos estudado, de toda a Codificação, revelando profundidade filosófica, e beleza poética do mais alto grau.
Para saber mais – J. Herculano Pires; de Jorge Rizzini Paidéia; Anuário Espírita 1964. IDE.
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