O grande laboratório de Kardec
A coleção Revista Espírita é um guia seguro para a continuidade da Doutrina Espírita.
Há 162 anos o Codificador deu início a publicação mensal da Revista Espírita- Jornal de Estudos Psicológicos. Foram 11 anos ininterruptos de minuciosa descrição de suas atividades na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Além de fazer parte da obras da Codificação e trazer detalhes que não constam nos outros livros, essas coleção é um guia seguro para a continuidade da Doutrina Espírita.
O Espírita não cansa de explicar aos que se interessam pelo Espiritismo da importância de conhecer, sem pressa, por um estudo dedicado, as obras da Codificação. E são vários livros, começando por O Livro dos Espíritos que resume toda a filosofia, depois O Livro dos Médiuns, A Gênese com comunicações fantásticas do Espírito Galileu, a obra O Céu e o Inferno, onde os dogmas da Igreja se desfazem diante da lógica da lei natural, e O Evangelho Segundo o Espiritismo, normalmente a mais lida de todas, apesar de que seus capítulos utilizam conceitos doutrinários explicados nas outras obras, e que muitas vezes são desconhecidos dos neófitos.
Existem ainda alguns outros livros complementares, como a reunião de escritos encontrados no escritório de Kardec e reunidos em Obras Póstumas, com textos muito interessantes. Curiosamente, a primeira tradução para o português desta obra foi feita por Bezerra de Menezes. Ainda há um livro para iniciantes, O que é o Espiritismo? Depois dessa longa lista, o que desejamos contar é que ela estará ainda incompleta sem outros 12 volumes! Tratam-se da coleção da Revista Espírita, publicada mensalmente desde janeiro de 1858 até décadas depois da morte de Allan Kardec, quando ele voltou à condição de Espírito imortal, em março de 1869. Entre essas duas datas, o Codificador cuidou pessoalmente de cada número.
Ele mesmo explica a importância dessa coleção para a compreensão do Espiritismo: “A Revista foi até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era pois necessário conservar o seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade”, afirmou em Obras Póstumas.
FALE, MEU VELHO AMIGO!
Em 1869, no último ano da elaboração da Doutrina Espírita por Allan Kardec, disse ele na Revista Espírita:
“As comunicações dos Espíritos são opiniões pessoais que não devem ser aceitas cegamente”. Uma conclusão madura, de quem havia dialogado com milhares de Espíritos desde 1855. Não se pode aceitar como verdades absolutas tudo o que vem dos Espíritos. Não basta uma única observação, por isso deve-se perguntar a outros Espíritos, por diversos médiuns, em diversas localidades. Tudo o que dizem deve ser examinado pela razão e pela lógica. Ou seja, antes de aceitar uma teoria, ela deve ser examinada em suas minúcias, não podendo entrar em choque com as leis científicas conhecidas. Todo esse trabalho demanda tempo, dedicação, para alcançar resultados firmes.
Os livros da Codificação foram elaborados seguindo esse rigor da metodologia científica criada por Allan Kardec, publicados depois de muitos anos de estudo e debates, tudo registrado fielmente nas páginas da Revista Espírita. “Quando surge uma teoria nova, fechamo-nos no papel de observador; fazemos abstração de sua origem espírita, sem nos deixar ofuscar pelo brilho de nomes pomposos; examinamo-Ia como se emanasse de um simples mortal; procuramos ver se ela é racional, se dá conta de tudo, se resolve todas as dificuldades”, afirmou o Codificador, na edição de 1860.
Kardec não se deixava impressionar pelo nome anunciado, mas prestava atenção ao que o Espírito tinha a dizer. Quando ele evocou a famoso sábio sueco Swedenborg, que viveu no século 18, ouviu como resposta: “Fale, meu velho amigo”. Kardec, então, disse: “Sinto- me honrado com o título de vosso velho amigo, no entanto estamos longe de sermos contemporâneos, e eu o conheço apenas pelos seus escritos”. Poderia parecer uma grosseria do Kardec responder dessa maneira, mas ele está apenas seguindo um raciocínio lógico, e da fala seguinte de Swedenborg, podemos retirar uma interessante informação: “É verdade, mas eu, eu te conheço há muito tempo”.
Allan Kardec não reconheceu o amigo, pois estava dialogando com Swedenborg limitado pela memória de seu cérebro, outras vivências estavam esquecidas. Já para o Espírito, as vidas passadas estão presentes em sua mente, e os encontros anteriores do sábio sueco com Allan Kardec, em tempos idos, o permitiam chamá-Io amigo.
MICROSCÓPIOS E ACELERADORES DE PARTÍCULAS
Em Obras Póstumas, Kardec explica sua postura: “Trabalho com os Espíritos como trabalho com os homens, são para mim, do mais humilde ao mais graduado, instrumentos de meu aprendizado e não reveladores predestinados”. A comunicação com os Espíritos existe de todos os tempos. Encontramos relatos nos papiros do Antigo Egito. A Bíblia está repleta de diálogos entre os dois planos. Médiuns foram queimadas como bruxas durante a Inquisição. A mediunidade não é exclusividade do Espiritismo, mas um fenômeno natural.
E, assim como o microscópio e os aceleradores de partículas servem à ciência, a mediunidade é um instrumento para a elaboração da Doutrina Espírita. Quando conversava com um Espírito ignorante e mau, Kardec fazia uso desse diálogo para estabelecer um panorama das condições, do sofrimento, e da percepção de estado e do ambiente espiritual no qual o Espírito. Ao debater com um inteligente que tentava enganá-to, aproveitava para reconhecer a figura do Espírito falso sábio, e fez isso com todos, dos mais simples aos mais elevados, para elaborar a Escala Espírita, publicada em O Livro dos Espíritos.
Essa classificação é um instrumento indispensável para analisar a natureza dos desencarnados comunicantes. Depois de muito dialogar, Kardec concluiu que “reconhecem-se a superioridade ou a inferioridade dos Espíritos pela linguagem de que usam; os bons só aconselham o bem e só dizem coisas proveitosas; tudo neles lhes atesta a elevação; os maus enganam e toda as suas palavras trazem o cunho da imperfeição e da ignorância”.
A Doutrina Espírita é, enfim, como toda ciência, progressiva, heterogênea e falível. Ela progride pela criação de hipóteses, a partir dos diálogos com os Espíritos, e precisam estar em acordo com os fundamentos coerentes do corpo doutrinário espírita. Esse foi o método de Kardec, e não será outro o adotado depois dele, seja hoje ou nos próximos séculos.
IDENTIFICANDO OS ESPÍRITOS
Toda essa extensa biblioteca básica do Espiritismo – elaborada pela Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, fundada por Kardec -, abordando todos os ramos do conhecimento, forma um corpo científico, filosófico e religioso. Outras sociedades deram continuidade a esse trabalho, como Gabriel Delanne (1857-1926) na Federação Espírita Belgo-Francesa. As investigações filosóficas de Léon Denis (1846-1927), o trabalho psicográfico de Chico Xavier (1910-2002), ou o grupo de estudos mediúnicos organizado por Herminio Miranda décadas passadas, que permitiu a elaboração de obras como Diálogo com as Sombras e Diversidade de Carismas. Todos esses pesquisadores partiram de um estudo minucioso do trabalho de Kardec para poder contribuir com novas informações e teorias. Não poderia haver uma coerência doutrinária que se pode constatar, nos livros dos Espíritos André Luiz e Emmanuel, psicografados por Chico Xavier se esses espíritos não tivessem se dedicado a estudar o Espiritismo, adequando-se aos conceitos, termos e teorias próprias do Espiritismo, logicamente, experimentados por eles pela observação direta dos fenômenos espirituais.
Diante da profusão de obras publicadas às dezenas, todos os meses, psicografadas ou não, na atualidade, todo leitor deve examinar atentamente o que está em suas páginas, utilizando os mesmos critérios de Kardec. Primeiramente, não se deixe impressionar pelo nome que assina os textos. Em seguida, é preciso estar atento, pois “há Espíritos que procuram fazer prevalecer as suas idéias pessoais. É, pois, útil submeter as idéias divergentes ao controle que propomos” , explicou Kardec na Revista Espírita de 1862.
Quando um Espírito diz uma novidade que nenhum outro disse, nem mesmo nos séculos passados, é preciso estar atento. Primeiro se ela não fere a razão, pois muitas novidades são frágeis quando analisadas por esse critério. Segundo, se um Espírito disser que tem o poder de matar alguém ou destruir meteoros, ou que desvendará mistérios que só o médium pode saber, ou então exigir extravagantes métodos para obter curas ou para dar novas comunicações, trata-se de uma evidente fraude mantida por um Espírito senão perigoso, ao menos gozador. O grande critério dos Espíritos superiores é a mais absoluta lógica.
Quando os Espíritos desejam nos oferecer idéias novas, vão utilizar diversos médiuns em diversas regiões. Não existe nem haverá um privilegiado profeta encarregado dessa função. O trabalho da espiritualidade superior é em grupo, não há entre os que a compõem a vaidade da prioridade ou exclusividade do conhecimento, todos trabalham solidariamente para a elevação da humanidade.
A ATUALIDADE, 150 ANOS DEPOIS
Não há lugar na Doutrina Espírita para apressados, deslumbrados ou novidadeiros, “o Espiritismo só deve caminhar com firmeza, e quando põe o pé em alguma parte deve estar seguro de aí encontrar terreno sólido”, enfatizou Kardec na Revista Espírita de julho de 1866.
Uma leitura atenta da Revista Espírita será agradável e instrutiva para todos espíritas. Nessas páginas é possível conhecer a personalidade de Allan Kardec pela análise de seus artigos, a forma pela qual questiona os Espíritos, a paciente e paulatina elaboração dos temas. O Codificador publicava cartas, artigos de outras revistas e jornais, fossem partidários, críticos ou inimigos da nova Doutrina. Ele nada escondia ou temia e seus comentários subseqüentes às citações são sempre precisos, lúcidos, lógicos e muitas vezes bastante firmes na defesa da Doutrina. Além disso, nas páginas da Revista encontramos análises das filosofias e tradições do passado, onde as teorias espíritas já estavam presentes, como o Budismo, o Taoísmo e Zoroastrismo. Conhecemos ainda o desenvolvimento da medicina, pedagogia e antropologia espíritas, e muito mais.
A Revista Espírita foi o mais importante instrumento de pesquisa, colocou Kardec em contato com o público, informou e instruiu espíritas em todo o mundo, além de servir para defesa da Doutrina nascente. Na atualidade, o espírita que se espelhar nessa obra, terá condições de escapar dos equívocos, desvios, armadilhas e falsos conceitos, que são o joio em meio ao trigo oferecido pela atual literatura espírita, permanecendo como um rico alimento para a alma, quando o tempo fizer a necessária separação .
• MACEDO SARRA é fotógrafo e estudioso da Doutrina Espírita
Publicado originalmente na revista Universo Espírita, edição impressa.
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